e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

letras “com sabor de fruta mordida”


 

Para Marília Gonçalves,
leitora de Palmira Wanderley

 

... bongava pelas confeitarias algumas frutas...

Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma

 

Sempre gostei de frutas. Com o passar do tempo, aumentei o consumo. O paladar e o olfato, maduros, voltam a bongar e saborear – repetidamente – as mesmas frutas da infância: manga, melancia, laranja... Principalmente a pinha. Conhecida como ata ou fruta de conde, saboreio, com freqüência, sua simbologia dual expressa na dureza do caroço negro e na delicadeza da carne branca.

 

Frutas avivam o paladar e a memória. Tornam o cotidiano menos amorfo e indolor. Comestíveis e ornamentais, elas aumentam o nosso apetite pela vida. Fazem pensar nas relações entre o corpo e os “cenários alimentares” (Ilza Matias). A escrita nasce nestes “cenários”. Brota do “galho” onde “a fruta/ toda pronta/ espera em tremores/ o marfim de um dente/ que a devolva inteira/ a condição de semente” (Diva Cunha).

 

A semente, seus cheiros e sabores abundam nos solos frutíferos. Formas e seivas da fruticultura rendem uma espécie de estética frutífera ligada ao universo agrário, onde se cultiva até “um pomar às avessas” (João Cabral). Os frutos – símbolo da abundância – simbolizam muito dos nossos desejos. Por isso, podem render uma saborosa escritura onde o que falta – como na “fruta mordida” – produz o sabor.

 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Cidade dos Reis: conversa de rua nas veredas da ficção



Neste quarto livro de Carlos de Souza, uma das primeiras coisas que chamam a atenção do leitor é a delimitação do espaço narrativo. A noção de espaço urbano é recortada nas idéias de cultura e poder afirmadas no título. Logo nas primeiras páginas fica claro como esse espaço sugere – e às vezes determina – a ação da narrativa. Fica claro, como diz a voz que narra, ser a cidade o espaço da “alma potiguar em ação”.

 

Cidade dos Reis atravessa a “alma” de Jonas – o personagem que nasce no primeiro dia do século XX. O livro pode ser lido como uma biografia apaixonada de Natal na travessia do século XX. Jonas em natal. Ambos se atravessam – a cidade, o personagem. A narrativa é centrada nele e suas ações, embora a personagem principal esteja anunciada desde o título: um espaço que, segundo Cascudo, nunca precisou ser vila, povoado ou distrito: já nasceu cidade.

    

Antenado com a oralidade fragmentada do seu tempo, Cidade dos Reis é uma “conversa de beira de calçada” cheia de derivas. Uma conversa sortida de ficção, história e alguma memória sertaneja: “O sertão está dentro da cabeça de cada um”, lê-se no capítulo 11. Uma conversa de rua, uma sopa de letras feita de camarão e jerimum. Rango nutrido de alguma poesia, um vasto “silêncio oceânico” e a brutalidade produzida pela moral dominante ao longo de um século.

 

Cidade dos Reis é uma “conversa” repleta de re-começos. Conversa de quem aprendeu a repetir re-começo. Memórias de um narrador que conta e reconta que é uma beleza. Ficções fragmentadas sem o rigor da gravata que burocratiza a informação, matando a narrativa. Nenhuma que se compare com a narrativa centenária de Jonas, cujas crises e mutações perpassam os 20 capítulos deste romance que atravessa o século XX e seus espaços bélicos.

 

Transitando pelas tradições cultuais da nação potiguar, o livro registra nossos “primeiros bafios da modernidade” até o Plano Real do governo FH, quando o personagem Jonas estanca a sua travessia urbana. Neste trânsito, afirmam-se algumas das mais importantes metamorfoses políticas ocorridas na sociedade potiguar e na vida cotidiana de Natal, no decorrer do século, cujas três primeiras décadas são recortadas até mais ou menos o capitulo 10.

 

Essa modernidade alcança o seu apogeu no capítulo 13. Nele surgem lendas e narrativas da ocupação americana durante a segunda guerra, quando Natal absorve outros hábitos culturais e a população urbana incorpora aos seus ouvidos e paladares novos ritmos e sabores.  Outros gestos e palavras.  A cidade fabrica outro imaginário.

 

Essa modernidade natalense pode ser aferida logo no capítulo 4. Nele o leitor tem notícias da belle époque potiguar, ao ver registrados os primeiros lampiões de gás acetileno que iluminavam as ruas das Rocas, Ribeira e Cidade Alta.  O bonde elétrico e o telefone depois. Outras figurações modernas atravessam o romance, como o sonho de Manuel Dantas, e o registro de suas conferências, cujas visões oníricas perpassam o imaginário potiguar de quem produz arte e cultura desde as vanguardas do início do século XX.


os mártires de Cunhaú e a “aspereza das mantilhas”

 

Cidade dos Reis é um livro cujas narrativas transitam principalmente entre o referente histórico e os planos míticos e culturais. Repleto de registros orais, causos antigos, lendas urbanas e ditos populares, o romance apresenta procedimentos comparativos da maior relevância estética e cultural ao reler, por exemplo, a história de Natal frente às histórias de outras cidades, como Recife – outro espaço urbano que ganha relevo nas aventuras existenciais de Jonas. Nestas releituras, o autor realça as diferenças culturais entre o domínio holandês em PE e no RN, e o leitor percebe a diferença entre as águas que correm no Potengi e noutros rios. “A literatura era um rio de águas transparentes...”, lemos no último capítulo.

 

Mergulhado nestas “águas”, o autor recorta um cânone de inscrição potiguar, onde são audíveis as vozes de autores de diferentes contextos e estéticas como Nísia Floresta, Auta de Souza, Henrique Castriciano, Palmira Wanderley, Jorge Fernando, Lenine Pinto, Myriam Coeli, Luís Carlos Guimarães, Bosco Lopes, o próprio Carlos de Souza e Câmara Cascudo, dentre outros.

 

Natal Cascudo. A cidade lida, inscrita pelo seu autor. A biografia de Cascudo, os seus livros, sua recepção crítica. As relações do autor com o Integralismo e sua adesão ao Modernismo paulista. Esses núcleos temáticos perpassam o romance, na medida em que avançam as aventuras afetivas e “profissionais” de Jonas, o “comerciante” leitor de Zila e Cascudo.

 

O paralelo entre o personagem principal e a narrativa do profeta bíblico é um dos achados deste romance polifônico onde a literatura coexiste com a memória e o texto bíblico, e onde um outro cânone – o cânone da traição, na tradição literária ocidental – é recortado nas letras de Shakespeare, Machado, Eça e Flaubert. Além destes autores, o autor dialoga com Dostoievski – outro escritor realista a quem ele recorre, quando necessita refletir ou estetizar a maldade humana que reina na Cidade... repleta de informação e poesia.  Na travessia desta Cidade..., o leitor encontra tanto os mártires de Cunhaú, da guerra do Paraguai, da guerra de Canudos e da segunda guerra mundial, como depara com um recorte vocabular – poético e violento – que mensura, mesmo no universo religioso, a “aspereza das mantilhas”.

 

lendas, ventos, conversas

 

Nesta Cidade dos Reis os homens criam lendas. Produzem ventos. Na audição desses ventos e lendas ouço algumas das figurações mais consistentes da literatura potiguar contemporânea. Repleta de restos dos discursos do senso comum (precisava mesmo de tanto lugar comum?), essa “conversa” aviva algumas das paisagens mais afirmativas da história norteriograndense. Aviva e diz muito do Brasil, a partir das narrativas e lendas criadas nesta esquina americana, cujo povo ganhou a “alcunha de Papa-jerimum”.

 

Carlos de Souza anota os nomes da terra. Dá nome aos bois. Põe “a alma potiguar em ação”. Não sei se os seus personagens sabem o preço de suas escolhas, mas pelas curvas da história e veredas da ficção, sua linguagem ajuda o leitor a configurar uma identidade lingüística e espacial nesta esquina silenciosa do continente. Por isso esta prosa deve ser lida nas escolas do Rio Grande do Norte. Parodiando Jonas e seu final, a Cidade dos Reis “interessa ao resto do Brasil”.