e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 29 de setembro de 2009

As Cidades Visíveis III

Nas sacadas dos sobrados/Da velha São Salvador/Há lembranças de donzelas,/Do tempo do Imperador./Tudo, tudo na Bahia/Faz a gente querer bem/A Bahia tem um jeito,/Que nenhuma terra tem!

(Dorival Caymmi, "Você já foi a Bahia?")

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

As Cidades Visíveis IV

Ouro Preto nos olha. Mas a cidade não se entrega ao primeiro olhar de quem a vê. Seus mais de trezentos anos emprestam-lhe a segurança de quem sabe ser o tempo pai da forma. Suas torres, fachadas, treliças, janelas e vãos (fechados ou luzidios) espreitam-nos, possibilitando um diálogo óptico através do qual mais somos vistos do que vemos. Em Ouro, a luz é sem data, diz Cecília Meireles. Uma luminosidade suave (nunca indecisa) namora a pele secular das paredes – lição que nos ensina serem a leveza e a superfície os princípios vitais da existência, da criação.

"Ouro Preto chama Paris"

(Milton Nascimento e Wilson Lopes, "Coisas de Minas")

domingo, 27 de setembro de 2009

As Cidades Visíveis V

Paris é um grande salão de biblioteca atravessado pelo Sena.

(Walter Benjamin, Rua de Mão Única)

Paris... é uma cidade que se consulta como uma encliclopédia...

(Ítalo Calvino, Um Eremita em Paris)

Ninguém deveria morrer sem ver a luz de Paris

(Maria Bethânia)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

As Quatro Estações

Em alguns lugares de MG, como Ouro Preto, podemos viver num único dia as 4 estações. Com certas pessoas não é diferente: todas as estações podem ser vividas num curto espaço de tempo. Mesmo que, no inverno, o corpochova e a almacolha. Mesmo que, no verão, o corpo-árvore e a alma-nave. ...o corpo adube e a alma (a)flore na primavera. E, no outono, o corpo urre e a alma grite. Mesmo que. Mesmo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Primavera

Um amigo poeta e professor recorta trechos do meu texto "Caio 68", publicado na Revista Terceira Margem 19, UFRJ. Diz ele por e-mail:
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Selecionei esses trechos de seu artigo, muito bom!, sobre Caio 68, que me tocaram direta ou indiretamente:


* Trata-se de um imaginário que elege o desejo como algo produtivo e que contém elementos técnicos e maquínicos...

* O século XX, dando mais ênfase à visibilidade e, portanto, bem mais cinematográfico do que literário...

* Como Clarice, ele filia-se a uma linhagem literária onde a repercussão dos fatos e as possibilidades epifânicas da linguagem dizem geralmente muito mais que os próprios fatos da narrativa.

* ...os põe em contato com o lado romântico e desejante de cada um em plena modernidade irônica.

* Quem também escancara a marca desse discurso da perda e do desencanto oriundos em grande parte da quebra das utopias e do fim dos projetos grupais...

* Seus personagens decidem plantar morangos em pleno edifício metropolitano. São gestos e coisas de quem, como leitor de Clarice Lispector, acredita em “pequenas epifanias”. A partir dessa crença cria-se outra visibilidade. Outras categorias de visão. Outras formas de traçar roteiros.

* ... engendrando esta narrativa do olhar invisível. São eles: a melancolia lusa, a sensualidade afro-tropical e algumas gramas da dramaticidade espanhola, seus “vendavais de ciúmes e impulsos homicidas”...

* Eles sabem que para colher o sim dos morangos, é preciso remover o mofo do olho, o fungo do corpo e ter fé no musgo da paisagem, como leciona a narrativa do olhar invisível.

sábado, 19 de setembro de 2009

De máquinas e sonhos

“No filme Matrix... o nome do líder da resistência contra as forças maquinizantes que criam uma ilusão do real é, parodoxalmente, Morfeus, nome do deus grego do sonho. “Bem-vindo ao deserto do real” é a saudação de Morfeus a Neo (Novo), o herói cuja missão será salvar os homens da dominação maquínica.

... poderíamos ver nestes nomes uma sugestão de que o novo se instauraria através do sonho ou que este é uma forma de resistência ao processo de consciência-máquina, a racionalidade, que cria a ilusão do real. Se Morfeus é o mestre de Neo, isso pode sugerir que os desejos deste têm no sonho uma possibilidade de realização.

Ana Santana Souza, A Nação Guesa de Sousândrade

Pílulas de Matrix



Morfeu para Neo:

Se tomar a pílula azul, a história acaba, e você acordará na sua cama acreditando no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha ficará no País das Maravilhas e eu te mostrarei até onde vai a toca do coelho. Lembre-se: tudo o que ofereço é a verdade...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Mel, Waly Salomão

Ó abelha rainha

Faz de mim um instrumento

De teu prazer, sim, e de tua glória

Pois se é noite de completa escuridão

Provo do favo de teu mel

Cavo a direta claridade do céu

E agarro o sol com a mão...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O cheiro continua



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Para Regina Pinheiro, musa de Geraldo Spinelli e amiga querida
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O post sobre cheiro rendeu e-mails, scraps no orkut e comentários aqui no blog. Amâncio Bolaño disse que o cheiro gera pensamentos que geram sentimentos. Com base nisso este chileno garante que escolheu a sua esposa. Da Espanha, minha querida ex-aluna Favo de Mel assume pertencer a uma seita que cultua diariamente o Deus Cheiro. Ela diz que não vive sem.
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O comentário do filósofo Geraldo Spinelli registra a emoção despertada pelo comentário de Vânia, e lembra o cheiro de Jundiaí - um dos cheiros mencionados no orkut pelo poeta Aluísio Barros. "O orvalho da noite/ brinca na luz do luar" - Assim o poeta potiguar inicia a sua lembrança aromática de Jundiaí, lembrando das frutas e dos doces de Dona Nozinha. Deus conserve por perto os bons cheiros. A seguir, o comentário do filósofo.


"Imagine o que um cão não sabe através dos olores/odores ? e mais amigo Nonato, o cheiro do sexo é muito marcante, seja das secreções que jorram, seja do corpo de quem está conosco. Acho mesmo que o homem se apaixona não porque a mulher é feia ou bonita, ou por qualquer outra característica, o homem se apaixona pelo cheiro da mulher. Neruda, no Confesso que viví logo no inicio, fala do cheiro da chuva. Essa coisa de cheiro é tão forte que ao ler o comentário de Vania fiquei emocionado. Lembra-se do cheiro de Jundiaí ? Um abraço de Geraldo Spinelli Júnior"

sábado, 12 de setembro de 2009

Cheiro














Para Telma que adora cheiro

Acho que devo a Jung a primeira notícia que tive acerca do cheiro. Digo: do poder do cheiro. Com o autor de Memórias, Sonhos e Reflexões (Autobiografia escrita com Aniela Jaffé) aprendi ser o olfato o sentido que mais remete à memória. Desde então, comecei a ler o mundo também pelas narinas. Ligado desde cedo ao universo literário, senti ratificado em vários autores essa força poderosa dos olores.

Literatura é cheia de cheiros. Talvez seja Proust o padroeiro do olfato. Ele ensina que a nossa memória encontra-se fora de nós: no cheiro do quarto abafado, no olor exalado ao cair da chuva, na fruta descascada, e por aí vai. Na literatura brasileira, Roberto Drummond é um dos autores que mais possuem obsessão pelo olfato. A ponto de escrever O Cheiro de Deus. Em matéria de aroma, Roberto só perde para outro mineiro também Drummond: "Tem gente que tem cheiro/ de colo de Deus,/ de banho de mar/ quando a água é quente e o céu é azul."

Grifei de vermelho no Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar, ao ler o “cheiro avinagrado” do cesto de roupas da família de Pedro. Cheiro que lembra os olores de fumo e alho exalados pelo corpo de um personagem de Sábado, o belo romance inglês de Ian McEwan. Tem mais cheiro a seguir...

Cheiro II



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E o lance do aroma entre Maria e Jesus? Este é narrado por Paulo Leminski ao biografar o filho de José. Segundo o poeta, Maria derramou uma substância aromática nos pés de Jesus, e enxugou-o com seus cabelos. Citando o evangelista João, Leminski diz que “a casa encheu-se do cheiro do nardo.” A esse "literal derramamento de Maria sobre Jesus", Leminski chama de "estranha metáfora de uma ejaculação às avessas..."

Cheiro de corpos, livros, roupas... Cheiro de alimentos. A vida reside nas narinas. Como esquecer o cheiro anunciado na consistência do chocooky? Covardia. Assim, na madrugada, dá saudade desse cheiro com sabor de chocolate.

Minha tia de Caicó diz haver uma estreita relação entre cheiro e identidade. Segundo ela, “o cheiro não nega a essência.” É o que demonstra uma personagem de Victor Ruis: "Pelo cheiro passei a entender o mundo in-visível ao meu redor."

sábado, 5 de setembro de 2009

volta, Belchior






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I

Foi o poeta Leonardo no entanto Gandolfi d’água quem primeiro avisou: “Belchior sumiu”. Achei que era pegadinha e perguntei como. “Sumiu”, respondeu o poeta. Depois li nO Globo e soube que saiu no Fantástico. Era verdade: ninguém sabia onde estava o cantor cearense que abandonou a medicina e optou pela música. O cavaleiro andante dos sertões do Nordeste, o trovador eletrônico do Brasil, o Dom rapaz latino-americano...

Esse sumiço, para os fãs e para alguns que atuam nas áreas ligadas às artes e culturas, chega sempre de forma dúbia. Sumir, para muitos que criam, tem a ver com o mito do artista genial. Aquele que é fernandopessoamente ("Suave é viver só") inadaptado. O ser que se retira de cena por não suportar o convívio com a raça humana. Exemplar mor dessa condição na era moderna é o escritor norte-americano J. D. Salinger. Sua obra mais conhecida é o romance The Catcher in the Rye ("O Apanhador no Campo de Centeio" no Brasil e "À Espera no Centeio" em Portugal), livro publicado em 1951. Desde 1965 ele não publicou mais uma linha. Continua “desaparecido”. E vendendo. Greta Garbo é outro mito que curtia exilar-se.

II

Há no Brasil um caso semelhante, guardadas as devidas ressalvas. O escritor Raduan Nassar retirou-se da cena literária. Optou pela criação de galinha no interior de São Paulo. Isso após escrever um livro genial: Lavoura Arcaica – considerado um dos três melhores romances da década de 1970 (qual seriam os outros dois livros, hein Leonardo?, hein Gardel? hein Ector?). Hilda Hilst é outra que viveu "sumida" na Casa do Sol, até morrer em 2000. Dizia que tinha uma maldição. Reclamava do descaso da crítica com a sua vasta produção. Caio Fernado Abreu, que viveu uma época na Casa do Sol, criou uma personagem que sintetiza esta noção do sumiço na literatura contemporânea: a cantora de Onde andará Dulce Veiga.

III

Sumido, Belchior fez-me lembrar da adolescência no internato, onde comecei a escutar suas canções. Sempre recheadas de referências literárias (Poe, Baudelaire, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Joyce, João Cabral...), suas letras marcaram a minha geração. Além dos 16 discos solos, ele gravou 2 cds musicando poemas do Drummond. Após assistir a um dos seus shows, disse, no camarim, que ele havia chegado aos anos 90 (numa alusão a alguns companheiros de sua geração que permaneceram nos anos 70). Ele respondeu-me: "agora eu quero chegar aos 90 anos". Então, Belchior: volta. 63 é cedo para sumir. "Volta. Vem viver outra vez..."

ANTOLOGIA


No corcovado quem abre os braços sou eu
Copacabana esta semana o mar sou eu
Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel e o que é paixão

Paralelas


John, eu não esqueço (oh no, oh no)
A felicidade é uma arma quente, quente, quente

Comentário a Respeito de John


anjo, herói, prometeu, poeta e dançarino
a glória feminina existe e não se fez em vão
e se destina a vir ao gozo a mais do que imagina
o louco que pensou a vida sem paixão

De Primeira Grandeza


Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol
Quando você entrou em mim como um Sol no quintal

Divina Comédia Humana


E eu quero é que esse canto torto,
Feito faca, corte a carne de vocês.

A Palo Seco

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Ando pós-modernamente apaixonado pela nova geladeira.
Primeira escrava branca que comprei, veio e fez a revolução.
Esse eterno feminino do conforto industrial injetou-se em minha veia,
dei bandeira!
e ao por fé nessa deusa gorda da tecnologia gelei de pura emoção!

Balada de Madame Frigidaire


Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem
Tem essa pressa de viver
Meu bem, mas quando a vida nos violentar
Pediremos ao bom Deus que nos ajude
Falaremos para a vida:
"Vida, pisa devagar meu coração cuidado é frágil;
Meu coração é como vidro, como um beijo de novela"

Coração Selvagem


Meu pai não aprova o que eu faço.
Tampouco eu aprovo o filho que ele fez.
Sem sangue nas veias, com nervos de aço,
Rejeito o abraço que me dá por mês.

Lira dos Vinte Anos


Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão

Pequeno Mapa do Tempo


Como Poe, poeta louco americano,
Eu pergunto ao passarinho:
"Blackbird, o que se faz?"
Raven never raven never raven
Blackbird me responde
Tudo já ficou atras
Raven never raven never raven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais

Velha Roupa Colorida



Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade,
disso Newton já sabia! Cai no sul grande cidade
São Paulo violento, Corre o rio que me engana...
Copacabana, zona norte
e os cabares da Lapa onde eu morei

Fotografia 3 x 4


Minha voz quer ser um dedo
na tua chaga sagrada.
Uma frase feita de espinho,
espora em teus membros cansados:
sensual como o espírito

ou como o verbo encarnado

Sensual

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Cânone do Conselheiro














"Conselheiro vinha de muitas caminhadas, desde o nascimento em Quixeramobim... leitor assíduo das histórias de cavaleiros andantes, de Carlos Magno e os Doze Pares de França, da Demanda do Santo Graal, dos Cavaleiros da Távola Redonda, das lendas da Bela Infanta, dos amores de Dom Carlos de Montealbar, da Filha do Rei de Espanha, que lia em folhetins e almanaques...
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Conselheiro era lido de muitos livros, revistas e almanaques... Estudara os conceitos de Santo Agostinho... Preferia a Suma Teológica de São Tomás de Aquino... "
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Ele conhecia os livros bíblicos, do Gênesis ao Deuteronômio... rezava com os folhetos das Horas Marianas e da Missão Abreviada...
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Trechos do décimo romance de Moacir C. Lopes, autor de A Ostra e o Vento. Publicado em 2007, 110 anos após a tragédia de Canudos, este vigésimo primeiro livro do autor - cearense que nem o Conselheiro - antecipa as comemorações dos 100 anos da morte de Euclides da Cunha (15/08/1909).