e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 28 de setembro de 2013

Festival do Rio 2013




Para quem curte cinema e literatura, o “cardápio” estético é dos melhores. São 380 filmes. Comecei por Invadindo Bergman. Gostei bastante dos depoimentos dos cineastas e do cenário escolhido – a casa, isolada numa ilha, onde o cineasta sueco viveu cerca de 40 anos; mas senti muita falta de... cinema.



Até o dia 10 de outubro, tem tela para todas as tribos. Selecionados da programação, os títulos a seguir são de filmes e documentários cheios de letras e referências culturais: O retrato de Dorian Gray na imprensa marron, Gore Vidal e os Estados Unidos da Amnésia, O espírito de 45, Google e o cérebro humano, Encantadores de histórias e Tatuagem.

 
O Brasil aparece bem na fita. Autor de vasta filmografia envolvendo letras e telas - Sermões, Bras Cubas, Miramar - o cineasta  Julio Bressane lança Educação sentimental. Além deste, outros títulos internacionais prometem: Salinger, Stuart Hall e os Estudos Culturais, Mishima: uma vida em quatro tempos, Em Berkeley e Fragmentos de dois escritores.
 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Cândido G2



O vento varre. Há tempos, a paisagem é um estado de alma repleta de lirismo sem nenhuma explicação.  Pela janela, mesmo nublada, a manhã sinaliza: a primavera estala na ramagem, assim: "Uma rosa de Guimarães/ nos ramos de Graciliano". O resto é Bandeira: o vento varria folhas, varria flores, varria frutos. Em qualquer estação, o vento varre, escreve árvore, nem sempre dá fruto. 

 

domingo, 15 de setembro de 2013

a trilha sonora das coisas

 
 
Para Lara A


Hermeto Pascoal é todo música. Música em estado bruto. Seja do palco ou da platéia, ele retira, ao vivo, o melhor do som dos seres. De ouvido, das antigas.
 
 
No diálogo que empreende entre o piano e os demais instrumentos, o multiinstrumentista colhe e divide, com os seus músicos e com os ouvintes, a alma sonora – geralmente inaudível, esquecida – dos homens e das coisas simples.
 
 
Aos 77 anos, de pé durante mais de uma hora, o músico rege, no Rio, uma sinfonia moderna que sugere ouvidos desautomatizados. Através deles, Hermeto conecta-se com o pulsar e os fonemas que a platéia lhe devolve, numa vibração que tonifica quem toca e quem ouve, seja clássico, jazz, bossa nova ou baião.
 
 
Nessa sinfonia que relê a memória musical do ouvinte, alguns objetos de uso cotidiano – como a chaleira de metal ou o porquinho-cofre de barro, no balanço de suas moedas –, anunciam a melodia que existe em todo utensílio ou fala.
 
 
Tocados pelo corpo de Hermeto, esses instrumentos e linguagens revelam uma musicalidade multiétnica, ancestral, onde  homens, bichos e coisas se tocam. Musica atemporal do Olho d`água, onde nasceu o compositor alagoano, na trilha sonora do mundo.

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Lobo bélico


I

 
Os cus de Judas foi publicado por Lobo Antunes em 1979. Detentor de vários prêmios, o romance é uma narrativa feita dos estilhaços de vozes e fragmentos de imagens lidas pelo autor na guerra de Angola. Um livro escrito de ouvido atento ao “...silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala...” (p. 34).

 
Como médico e escritor, Antunes viveu nesta guerra colonial portuguesa o medo e a perda, além da sua falta de justificativa. Por isso, em seu romance “os homens caem”, morrem. Terminam feito peixes findando nos confins, nos Cus de Judas. Apesar das quedas e mortes, o narrador não esquece a vida, o sonho: “...mas já imaginou o espaço que sobra para o sonho, não um sonho de mobílias, doméstico, conjugal... ...o sonho à Infante D. Henrique feito de mares desconhecidos, de mostrengos e de especiarias...” (p. 126).


Além dos sonhos e pesadelos, o livro de Lobo Antunes é repleto de seres famintos e aflitos. Personagens cujas existências parecem pautadas no ritmo da “aflição de pedras que respiram”. As falas estilhaçadas do narrador e os nacos de imagens desta guerra africana alimentam uma linguagem fragmentada de diferentes tons. Dessa linguagem, ecoa a dicção nobre – herdada principalmente da literatura do século XIX –, assim como uma boa taxa da oralidade contemporânea que nos circunda.

 
II


Essa oralidade, em Os cus de Judas, é bastante sedutora. O autor seduz o ouvido de quem lê com expressões do tipo “percebe”, “sabe como é’, “escute”, “já reparou”... Essa sedução lingüística é motivada pela noção de diferença que se inscreve desde a especificidade espacial proposta pela guerra, e tem o outro como parâmetro. Ela parece, essa sedução, típica de um narrador que assume estar “a fim de se escutar a si próprio nos ouvidos dos outros”.

 
Neste romance-testemunho, o leitor é bastante convocado. Ele transita literalmente nos "cenários em ruínas" da guerra. Adentra suas derivas sem luz, e visita trevas de suas próprias entranhas. O leitor transita pelos desvios e deslocamentos de uma narrativa atravessada – toda ela – por dois “ingredientes” explosivos, de ruptura, presentes em toda colonização: cultura e violência.


Antunes escreve uma narrativa bélica, de busca. Nela, dualidades infindas e atemporais se cruzam: a história e a identidade, amor e guerra, grotesco e sublime, desejo e morte, memória e testemunho. Todos esses núcleos temáticos ajudam a ler o que lateja na prosa do mundo. Eles podem re-encantar o homem-pós-guerra que, mesmo não acreditando em si, escreve: “me encanta: posso ainda considerar-me um homem para mais tarde... (p. 125). Essa descrença em si é destrutiva, cita nomes, é narrada de forma radical, assim:

 
“Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados... ...Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de troca? A esses, os Camilos Torres, os Guevaras, os Allendes, apressemo-nos a matá-los porque o seu amor combativo nos incomoda...” (p. 136).


sábado, 7 de setembro de 2013

Saramago canino



... chega ao seu destino, antes lhe ladraram cães desaforados...

José Saramago, Viagem a Portugal, 1995

 
... Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas [Ensaio sobre a Cegueira]... Se no futuro puder ser recordado como "aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher", ficarei contente. Se alguém procurar naquilo que eu tenho escrito uma certa mensagem, atrevo-me pela primeira vez a dizer que essa mensagem está aí. A compaixão dessa mulher que tenta salvar o grupo em que está o seu marido é equivalente à compaixão daquele cão que se aproxima de um ser humano em desespero e que, não podendo fazer mais nada, lhe bebe as lágrimas.

Entrevista de José Saramago do Jornal Público, 2008


... o cão prometido por Obama às filhas será precisamente um cão de água português. Trata-se, sem dúvida, de um importante trunfo diplomático de que Portugal deverá tirar o máximo partido para bem das relações bilaterais com os Estados Unidos, subitamente facilitadas graças à presença de um nosso representante directo, diria mesmo um embaixador, na Casa Branca. Novos tempos se avizinham. Tenho a certeza de que se Pilar e eu formos aos Estados Unidos, a polícia das fronteiras já não seqüestrará os nossos computadores para lhes copiar os discos duros.

O Caderno de Saramago, 26 de Fevereiro de 2009