e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Cercado de Letras

 
Toda a literatura dos sobreviventes relata esse entorpecimento.
Bernhard Schlink, O Leitor


Amor, Analfabetismo e Auschwitz.
Não necessariamente nessa ordem, são esses os principais ingredientes do filme O Leitor.
O diretor Stephen Daldry demonstra habilidade, no diálogo entre Letras e telas, desde As Horas, filme que narra a vida da grande escritora inglesa Virgínia Wollf.
 
Baseado no livro homônimo do escritor alemão Bernhard Schlink, O leitor é um filme que afeta a respiração de quem vê. A história é carregada de três ingredientes produtivos e perigosos: a política, a poesia e o erotismo. A narrativa é escrita numa linguagem clara e direta, numa forma linear, às vezes até um pouco previsível. Mas essa história – repleta de visibilidade e incertezas, como a maioria das narrativas modernas – não é nada previsível.
 
O romance narra a história de  um garoto de 15 anos. Ele conhece as farpas e o mel – do amor e dos fatos – ao envolver-se com uma mulher de 36 anos. Ela é ex-vigilante. Uma mulher que encaminhava judeus para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas. Ele, um jovem (futuro estudante de Direito) que lê Homero, Rilke, Cicero e Horácio, vivendo numa família cercada de Letras (seu pai é professor de Filosofia e sua irmã estuda Literatura).
 

Verdade e Lei
 

A ficção de Schlink se desenvolve numa Alemanha pós-guerra, na década de 40 do século XX. Esse contexto destroçado traduz-se, no filme, através de cores sóbrias sugerindo, em alguns trechos, a melancolia que perpassa algumas imagens de Schlink. O contexto bélico, os sobreviventes e suas memórias são os referentes através dos quais as questões políticas e sociais se inscrevem.
 
Essas questões que remetem ao holocausto, e ao entorpecimento, aparecem principalmente no livro, e menos no filme. São muitas as indagações que atravessam a narrativa de Bernhard Schlink: o que é o direito? Quais os papéis do advogado e do promotor numa sociedade pós-guerra? Quais os limites do “distanciamento profissional"? São questões complexas que solicitam o leitor e seu repertório cultural. Como deve ser feita a leitura do nosso passado histórico? O que fazer com o medo, o entorpecimento e o horror que invadem violentamente o nosso cotidiano fragmentado e moderno?
 
Enfim, a grande pergunta que atravessou todo o século XX, e continua ecoando em nosso imaginário social: o que as gerações seguintes devem fazer “com as informações sobre as atrocidades dos extermínios dos Judeus?”
 

A tigresa e o filhote-pedrinha
 

Voltemos ao plano dos afetos. Entre os dois amantes rola sexo, leituras (Guerra e Paz) e uma infinda "batalha verbal". A tigresa Hanna tem um “corpo cheio de força e confiante”. Por isso, ela doa para o seu “filhote”-"menino"-“pedrinha” dois elementos raros na juventude: segurança e decisão. Em troca, Michael lê. Ele lê principalmente a nuca, as pernas, o corpo inteiro da amada. Lê também os livros em voz alta. Ele é um exímio leitor. O leitor atende aos pedidos dessa estranha funcionária do bonde, cujo passado bélico ele só conhecerá futuramente num tribunal público.
 
Quanto mais lê, mais ele se submete às ciladas dessa Lilith no vigor da sua maturidade feminina. As brigas e os descompassos produzem mais intimidades. Mergulhos em águas turvas. Trevas e traças de uma história cujo futuro ninguém sabe, ninguém vê. Bombardeios de palavras e beijos. Cenas de sangue e poesia se alternam e aproximam o casal que goza e grita de prazer enquanto trepa. Essa relação paradoxal e conflitante entre eles parece ser uma metonímia histórica das próprias relações políticas num país descompassado pela guerra.
 
Sem efeitos grandiloquentes nem ritmos alucinantes, O Leitor cria ritmos. É o tipo de filme que afeta. Afeta a respiração de quem vê. Isso, por um motivo atroz: aquele que narra e lê – belo, resignado, cheio de memórias – mostra que a verdade e a lei, em alguns contextos, não se encontram. São coisas bem distintas.
 
 

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Cara de quem nutre fantasma



I – o etnólogo vira personagem
 
Meu nome é Buell Quain. Antes de me transformar no personagem principal do romance “Nove Noites”, do Bernardo Carvalho, eu era um etnólogo americano. Fascinado por ilhas, desertos, viagens, só entrei no livro do Bernardo porque vim parar no sertão central do Brasil. Andarilho solitário, eu gosto de escrever cartas. Adormeço embalado por histórias. A minha é curta. Uma historinha que acaba aos 27 anos, como você vai ler: não ultrapassa esta lauda. Uma vida, uma página. Ao contrário da ficção, não são páginas da vida.
 
II – o suicida arrasta um fantasma no seu rastro
 
Um amigo me define como um cientista suicida que bebe, fuma e faz do corpo um laboratório. Para ele, o meu silencio carrega um segredo. Sou um homem que arrasta um fantasma aflito no seu rastro. Nos anos 30 do século XX, vivi entre os índios krahô no sertão de Goiás. Nas tribos, à noite, o mundo ecoava em ondas que dilatavam a minha escuta, e eu passei a suportar a diferença sem nem perceber. O silêncio ficava carregado do que eu ainda não era. Não sabia que jamais seria.

III – Da América do Norte para Goiás passando pela Lapa
 
Nasci na América, no futuro do pretérito: seria. No Brasil, morei numa pensão da Lapa, no Rio de Janeiro, a capital do país. Depois vim morrer em Carolina – uma cidadezinha morta no interior de Goiás, sabendo que o bloco da família não viria atrás. Sem nenhum desejo de ser governado pelos mortos, e com a fome de quem atravessou o sertão sem água nem pele, eu vi: a realidade é o que se compartilha na sede e na superfície. Descartes eu deleto; vale a razão de Deleuze: o mais profundo é a pele.