I
O poeta consagrado elogia minha rede. Sua vida e obra abrangem os mais variados gêneros. Ele saca a sarna da vida. Não é mais um sem cais nem canil. Encara a sombra de antigos espelhos que carrega nos ombros. Erra uma vez e foi lindo. Mas não vai passar: já passou. Enquanto escuto o poeta, o cachorro ao lado aproxima-se. Encosta a cara em meus lábios. O que deseja esse bicho sugar da minha boca? Esse Cão não teme a mim. Lembro do cachorro que é um rio cujas águas amolecem ossos e pedras. Bebo o que me resta: essa tentativa de beijo animal. Seus cheiros, os conheço bem; seu rosnado, agasalha quando o contexto pede silêncio viril.
O poeta consagrado elogia minha rede. Sua vida e obra abrangem os mais variados gêneros. Ele saca a sarna da vida. Não é mais um sem cais nem canil. Encara a sombra de antigos espelhos que carrega nos ombros. Erra uma vez e foi lindo. Mas não vai passar: já passou. Enquanto escuto o poeta, o cachorro ao lado aproxima-se. Encosta a cara em meus lábios. O que deseja esse bicho sugar da minha boca? Esse Cão não teme a mim. Lembro do cachorro que é um rio cujas águas amolecem ossos e pedras. Bebo o que me resta: essa tentativa de beijo animal. Seus cheiros, os conheço bem; seu rosnado, agasalha quando o contexto pede silêncio viril.
II
Para viver este ciclo canino, desenvolvo uma metodologia animal. Uso líquidos de uma mulher que me ama e faz do corpo obra de arte. Foi ela quem nomeou o canil que trago no peito. Antes dela, provei chás suicidas da moça que enxuga dorso de montanha. Ouvi cão sem dono mais uma boca que rumina afetos caninos. Essa, curte Ribeira, Lapa, Beco do Rato, faunas noturnas. Nutre-se de Clarice Lispector e seus animais . Clarice é bicho corajoso. Confessa que certa vez apaixonou-se, de cara, por Dilermando – um cachorro com cara de brasileiro encontrado numa rua da Itália. Resultado: pagou (isso: pagou) e levou o cão para casa. Rolou a partir daí uma narrativa de cheiros, comidas, abanos, gestos obscenos e, claro, beijos disfarçados. As visitas - coitadas - ficavam passadas.
III
Segundo Clarice, cachorro cheira as coisas para compreendê-las. Diz ela que eles não raciocinam muito, mas são guiados pelo amor dos outros e deles mesmos. Clarice é a autora brasileira que mais entende de bichos. Em sua obra eles constituem uma simbologia do ser. Por isso ela saca no cão um bicho misterioso que quase pensa. Sem falar que ele sente tudo, menos a noção do futuro. Na sua escrita, cachorro tem fome de gente. Tem desejo de (ser) homem. Aprendi com Clarice e TT que, às vezes, para abanar o humano é preciso contatar nos lábios o Cão que te deseja. Principalmente quando você e esse Cão usam o mesmo remédio, as mesmas formas. Tudo isso para responder as mesmas perguntas que os questionários da existência e do cotidiano repetem, sem dó, para quem optou por si, por ser só. Mesmo quando o humano rosna ou ri - lindo - por perto.
10 comentários:
Por falar em bichos, acabo de ler "O gato por dentro", de W. Burroughs. Encanta. É meio triste às vezes, mas belinho. Termina com isto: " Somos os gatos por dentro. Os gatos não podem andar sozinhos, e para nós há apenas um lugar".
O meu gato continua me chamando de 'ãe', 'ãe'... Tomara que não ponha o M nunca... Acho que só sou isso mesmo: ãe... (acho que vou guardar esse textinho... )
Mas o principal: muito bom o seu falar de Clarice... "Diz ela..." -Parece conversa de porta de bodega. Bom mesmo. Assim você distancia a coisa erudita... beijos.
Nival querida
Concordo com Gurroughs: somos os gatos por dentro. Estou iniciando uma Estação animal, e como vc é doutora em bichos, vou escrever depois um texto chamado "ãe" em hommage ao seu gato e suas fotos.
bjs
N Gurgel
Nival querida
Concordo com Burroughs: somos os gatos por dentro. Estou iniciando uma Estação animal, e como vc é doutora em bichos, vou escrever depois um texto chamado "ãe" em hommage ao seu gato e suas fotos.
bjs
N Gurgel
Nonatinho fiquei emocionada.Foi a mais bonita homenagem que recebi.Clarice,tinha um cachorro chamado Ulisses,perguntaram a ela qual o significado da morte ,Ulisses me procurando pela casa.Lígia Fagundes Telles adorava os gatos,tinha uma chamada Iracema,seu xodó.Resta-me Aninha,a branca mais abusada de Natal.Quem sou eu sem ela....Me dá o norte quando chego em casa cansada,a branquinha dorme comigo é isso e fundamental para meu equilíbrio.Deta fez uma música pra Peto,ela também tem sensibilidade pra sacar o afeto dessas criaturinhas,afinal vc e Deta não são desse mundo.Amo vcs dois.Bjsssss
Nonato, que texto lindo! É assim mesmo que sei me expressar. Na primeiríssima pessoa, deixando à flor da pele o sentido da minha subjetividade. Lindo demais, assim parafraseio Ana C, quando falava de Augusto (o de Campos), transcriando os provençais. Tetê deve ficar a mil. Beleza, beleza mesmo. João
Gostei do texto e do blog!
João, Tetê e Bruna, espero que retornem a esse canil de letras.
bjs
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