para Gilberto Gil - "Diadorim noite neon"
que completa 70 anos este mes e curte Carminha
I – Pedagogia dos
afetos e traições
Ainda não vi
ninguém lendo no núcleo zona sul de Avenida Brasil. Chama atenção o fato de ser
Tufão, o craque suburbano, o leitor. Primeiro, Nina sugere para ele a leitura do
escritor checo Fanz Kafka. Em sua prosa, o ser degradante que se perde de si
sugere o roteiro de Tufão ao perder-se de Monalisa. Mas ele não saca o recado
de Nina: ela deseja que, ao ler “A metamorfose” (1915), o craque perceba ser
numa barata que Carminha o transforma, impedindo-o de ler o real a sua volta.
Machado de Assis
surge, na novela, em dose dupla para “leitores de alma já formada”: “Memórias
póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1899). Os dois romances trazem
para a narrativa a senha da traição de Carminha. Mas o jogador não se toca.
Nina tempera cada vez mais o cardápio literário: manda ele ler de Gustavo
Flaubert o livro “Madame Bovary” (1856) – romance que possui o adultério como
tema. Nesta prosa onde um médico rural é traído pela esposa, o burguês é um
vilão cujos instintos e emoções dão o tom da narrativa.
A educação
sentimental de Tufão é lenta, mas sofisticada. A pedagogia dos afetos e das
pequenas traições, aplicada por Nina, leciona alguns dos melhores romances da
literatura moderna produzida no Brasil e no mundo. Não sei da formação de Nina
nem o motivo do seu bom gosto literário. Mas sei uma senha irônica: saída do
lixão, ela foi educada na Argentina – país onde leitura de livro é um
hábito bem mais cotidiano do que por aqui.
II – Kafka,
Machado, Flaubert e Rosa
Depois de ler Kafka,
Machado e Flaubert, o craque lê o Guimarães Rosa de “Grande Sertão: vereda”
(1956). “Diadorim é a minha neblina” – diz Riobaldo, o personagem que rememora
numa prestação de contas infinitamente desfalcada, onde nenhum dos “itens”
fecha. Sertão é “onde os pastos carecem de fechos”, sabe o jagunço. Os dados
também não fecham na cabeça de Tufão. Travestida de defensora da moral e dos
bons costumes, Carminha encarna uma Diadorim que não chove. Sua neblina adia.
Engana-se bem quem nela se molha.
Será a próxima
leitura de Tufão “A paixão segundo G H” ou outro
título da Clarice? “Fragmentos de um discurso amoroso”, do Roland
Barthes? Algum romance do Graciliano ou Camus? Sábato, Cortázar, Aira ou
Piglia? Quem sabe, o próximo romance do craque seja acompanhado da leitura da
própria Nina, cujo rango ele degusta e cuja identidade ele vem assoletrando em
pequenos goles.