e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 13 de abril de 2013

Dispositivo de luz e cor


notas sobre o romance Claros sussuros de celestes ventos (2012), de Joel Rufino



Com cerca de trinta títulos de ficção publicados, Joel Rufino é um dos principais escritores da antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil, organizada por Eduardo de Assis Duarte. Nesta antologia, Joel é lido como um escritor que constrói “um inusitado diálogo entre ficção e história.”   
 
Este diálogo continua rentável. Claros sussurros de celestes ventos, quarto romance do autor, é um livro urdido com experiência narrativa, literária e histórica. Um romance repleto de descrições poéticas e referências ao universo da poesia. Nele, o professor de Literatura Brasileira estetiza, dentre outros, a vida e a escrita produzida por autores negros no contexto sócio-político do Brasil no final do século XIX, criando intertextos com o que se lia e ouvia nos primeiros anos da nossa república tropical: Schiller, Schuman, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Blake, Rimbaud...
 
O livro remete a um contexto estético e cultural bastante afirmativo para as nossas Letras, como as origens do nosso Modernismo e a fundação da ABL, dentre outros. Por isso, o texto de Joel pode ser lido como uma espécie de memórias estéticas do Brasil no final do século XIX e inícios do século XX – tempos nos quais as certezas absolutas produzidas pelo Positivismo e seus lemas progressistas começavam a ruir.

 
O texto pode ser lido, também, como um conjunto de micro narrativas biobibliográficas. Micro narrativas repletas de figurações da vida cultural e dos problemas sociais concernentes àquele contexto pós Império, como a escravidão, as desigualdades sociais e as contradições políticas do regime republicano. Tempos nos quais “a república era uma planta fraquinha.”

 
O romance constrói-se a partir de memórias e relatos baseados na vida e na obra de autores negros que compõem o nosso cânone literário até o início do século XX: Cruz e Souza, Lima Barreto, Raul Pompéia, Machado de Assis, Mário de Andrade. Essa afirmação da escrita e da cor em Claros sussurros..., remete ao “dispositivo de luz” sugerido pelo próprio autor no capítulo “O fabricador de diamantes”. Neste, o poeta Cruz e Souza, estetizado como João da Cruz, tenta acalmar a sua amada Núbia, cujo “temperamento entorta muito para a África”.

 
Em sintonia com essa negritude, acrescentamos, ao “dispositivo de luz”, a cor sugerida próprio texto, a fim de ratificarmos o que parece ser um dos objetivos do autor: a criação de uma escrita calcada na noção da diferença e que, em conexão com a história, inscreve o universo subjetivo dos negros. A narrativa transforma-se num dispositivo de onde emana a consciência da historicidade literária e da materialidade cultural da linguagem. Esse dispositivo não funciona como regra ou artigo de lei, mas, como registra o dicionário Aurélio, um “conjunto de meios dispostos para certo fim”.

 
Narrativa de perdas, quedas e internações de personagens marginais mergulhados na experiência histórica e cultural do seu tempo, Claros sussurros... é um texto repleto de poesia. Como a poesia flagrada na descrição de um palacete suburbano, assim: “mas o que lhe dava a graça, graça selvagem, eram janelas de frente para o oceano, de onde nasciam, nas madrugadas de ressaca, sargaços, pernas de bonecas irlandesas, botas desoladas.”

 
O autor domina os procedimentos narrativos, produzindo uma linguagem de ritmo marcante que ajuda muito na ação da leitura. Seus cortes e modos de pontuar podem ser mensurados na precisão dos diálogos, e na forma como aproveita a abertura do romance como gênero permanentemente em mutação, acolhendo em seu formato outros gêneros e outras formas estéticas, como as cartas, as lendas urbanas e até panfletos anunciando curas, como lemos no belo capítulo “O fabricador de diamantes”.


Tomara que esse diálogo entre ficção e história renda ao autor outros romances.  

 

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