Para a senadora Fátima
Bezerra (RN) e as orientandas do PARFOR (RJ)
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Num
país com alta taxa de evasão escolar e alto índice de analfabetismo, como ainda
acontece no Brasil, um programa pedagógico dessa amplitude possui importância
fundamental. Desde a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 205, sabemos
que a educação é um direito de todos e dever do Estado. Em sintonia com o texto
constitucional, o PARFOR
é vinculado ao MEC (Ministério da Educação e
Cultura) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) e, em parceria com as Secretarias estaduais e as Prefeituras
municipais, o referido programa contempla as cinco regiões do Brasil. Isso não
é pouco. Como estudante de graduação, não lembro nenhum programa educacional
dessa amplitude, ao cursar Letras em Caicó-RN, nos anos 80, quando a ditadura
militar dava os seus últimos suspiros, graças a deus e a tia Lica que torcia
muito por isso.
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O PARFOR possui como público alvo os professores
da educação básica, profissionais em exercício nas redes públicas de ensino.
Destes professores, torna-se imperativo ressaltar, além das atividades
de docência e demais experiências pedagógicas, os
diferentes contextos multiculturais e os roteiros existenciais por eles
trilhados até chegar ao universo acadêmico. São roteiros inéditos para a entrada
no universo acadêmico. A vivência comunitária dessas experiências educacionais,
o trânsito por estes contextos multiculturais e seus diferentes roteiros de
vida transformam estes profissionais num público diferenciado bastante especial.
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Este público requer dialogismo perene e uma metodologia de
ensino conectada às suas demandas e ao mundo contemporâneo.
São discentes que avisam, até quando em silêncios raros, que os tempos são
outros. Outros ruídos. Vivemos tempos de inclusão. A universidade precisa
repensar os seus saberes e a sua extensão. Ela precisa rever os moldes
medievais nos quais se baseia, na maioria das vezes, os modelos que possuem por
base a repetição, a imitação do igual, da semelhança. Este saber excluía a
diferença. Trata-se de um saber que permanecia enclausurado entre muros
distantes da comunidade. Saber dos tempos antigos de isolamento.
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Acerca
da formação e da qualificação destes professores que se transformam em alunos e
nos fazem questionar estes saberes, é importante ressaltar algumas dificuldades
enfrentadas por quem deseja ingressar no PARFOR. Ecos do que ouvimos em sala de
aula sugerem que o processo seletivo nem sempre é uma etapa simples. O acesso
ao programa ainda é pouco incentivado. Parece que algumas prefeituras ou
secretarias de educação divulgam pouco, ou sequer divulgam o referido programa.
Acontece até de, algumas vezes, estes órgãos governamentais dificultarem o acesso
dos professores ao programa.
Durante
os últimos cinco anos venho lecionando para as turmas deste programa; o que
marcou definitivamente a postura profissional e a metodologia que utilizo
como professor do curso de Letras. Constato que as cidades de Nova Iguaçu,
Japeri, Belford Roxo, Queimados e São João do Miriti se destacam, no PARFOR de
Letras, como municípios de onde advém grande parte dos nossos alunos.
II – Clarice aos sábados e Cazuza
no Museu
Coordenado
nos cursos de Letras do IM – Instituto Multidisciplinar, com lisura e
eficiência pela professora Dra. Lucia Helena, do DL – Departamento de Letras da
UFRRJ, o PARFOR é composto, em sua grande maioria, por turmas de corajosas
mulheres de cores, comportamentos e etnias bastante diferentes. Embora
reconheça a presença produtiva dos homens que retornam à sala de aula, através
deste programa, quero registrar aqui a coragem e a determinação feminina frente
ao PARFOR. Muitas destas mulheres são mães ou avós que criam, ou criaram filhos
e netos, e que voltam à sala de aula como alunas de graduação no universo
acadêmico. Isso é maravilhoso e faz diferença.
Outras alunas são solteiras ou sozinhas, mas todas trabalham. Com elas vivifiquei profissionalmente alguns momentos marcantes dos meus trinta anos de magistério em cidades do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro. Pensando nesta trajetória acadêmica, como esquecer, por exemplo, de um programa cujas aulas me fizeram ler Clarice Lispector, aos sábados pela manhã, com uma turma de alunas interessadas na floração da prosa moderna na Baixada Fluminense?
Nenhum professor é o mesmo, depois que ouve da aluna Neide Chatinha que Macabéa não sabia enfeitar a realidade. Nenhum professor continua inalterado depois que outra aluna leciona para ele a forma como a cartomante da novela sugere, para Macabéa, o envolvimento com mulheres. Mestre é quem de repente aprende, viva Guimarães Rosa. Há mais de 20 anos releio A Hora da Estrela, mas nunca havia percebido essa sugestão homossexual por parte da mulher que joga cartas no livro de Clarice.
Além dessas leituras que considero bastante produtivas e até inusitadas, tenho com as turmas do PARFOR as memórias comuns de uma viagem pedagógica. Viajamos para São Paulo, a fim de ver e ouvir Cazuza, cuja vida e obra foram expostas no Museu da Língua Portuguesa em 2013. O mesmo museu que expunha atualmente a vida e a obra do escritor e etnógrafo potiguar Luís da Câmara Cascudo e que, infelizmente, acaba de ser destruído no incêndio deste final de 2015. Museu paulista pegando fogo, convenhamos, parece uma metáfora acesa do momento político e cultural do país em chamas. Mas voltemos ao PARFOR, programa que me fez unir Clarice e Cazuza num mesmo semestre. Experiência que os une no museu e na Baixada.
Exímio leitor de ficção, Cazuza amava a prosa interrogativa e meio psicanalítica de Água Viva – livro publicado em 1975 por Clarice Lispector. Desta autora que tinha a nostalgia de não ter nascido bicho, Cazuza musicou trechos da belíssima crônica “Que o deus venha”, texto que compõe o livro póstumo A descoberta do mundo. Cazuza é letra, crônica, verso. Letra pop. O seu som tem a ver com a sensibilidade e a percepção das alunas para quem o PARFOR é um sonho, e por isso não pode acabar. Cazuza celebra o ser e o sonho: “quem tem um sonho não dança”. Seus versos cantam o fedor burguês. Gritam para o país mostrar a sua cara. Sua escrita subjetiva e cortante começa a ser acolhida pela academia como trilha musical da era da redemocratização do Brasil.
III – Mudanças como educador e
cidadão
Atuo
no PARFOR como orientador de monografias e professor de quatro disciplinas: Teoria
da Literatura, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Introdução às
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. No exercício destas disciplinas,
algumas figurações certeiras dos seminários e das aulas ficaram gravadas como prêmios.
Lembro, com alegria, a leitura comovida que a aluna Cristiane de Souza fez do
escritor português Walter Hugo Mãe, demonstrando a sintonia de sua sensibilidade em conexão com os temas e as culturas do seu tempo. Lembro
também das perguntas infindas de Débora Alves, repletas de curiosidade e
ironia, acerca dos conteúdos literários, e do seu crescimento visível durante as
apresentações dos seminários em grupos.
Guardo para sempre a descoberta do mundo feita por Ercília, ao ler a literatura feminina. E como não lembrar os roteiros de leituras traçados pelas duas alunas quem têm Silvana como nome, ambas tendo como objetos de estudo a obra do escritor carioca Lima Barreto? Como esquecer as crônicas sobre saúde, escritas por Scliar, lidas por Noemi, e o nosso projeto gastronômico de construirmos uma padaria num possível terceiro tempo? São fragmentos de falas, imagens e leituras que marcam além da sala de aula. Pequenas epifanias na Baixada fluminense, onde atuo como professor universitário desde o início do milênio quando dava aulas na UNIGRANRIO, em Duque de Caxias. Baixo Baixada onde transito catando fragmentos do saber, da poesia e da fé. Espaço onde vivo momentos de troca e aprendizagem.
Creio
que a experiência com as turmas do PARFOR me transformou como professor, como antigo
leitor de Paulo Freire e Magda Soares, e até mesmo como cidadão, já que alterou
a percepção multicultural e ideológica. Ampliou a sintonia com o magistério
hoje, formado que fui nos anos 80, ao final da ditadura militar, quando o
contexto político não permitia a possibilidade de um programa produtivo e
democrático como este. O PARFOR exigiu de mim, como educador e orientador, uma pluralidade
de métodos, discursos e leituras que eu não sabia, diferentes das leituras e
metodologias que utilizo, desde 2009, nos cursos regulares de graduação da
UFRRJ.
O
trabalho acadêmico com estas turmas exigiu principalmente um exercício de
agilidade, concisão e clareza que pareceram ampliar as possibilidades
profissionais, em sintonia com a fragmentação e a rapidez características deste
milênio eletrônico e virtual. Tudo isso na esteira do que propõe o escritor
Ítalo Calvino em seu belo livro Seis propostas
para o próximo milênio.
IV – A universidade precisa rever seus paradigmas
As aulas para estas turmas intensificaram as leituras em torno dos Estudos Culturais, das teorias culturais de Walter Benjamin e de filósofos afirmativos como Michel Serres. As teorias que sedimentam os Estudos Culturais, sabemos, evidenciam a necessidade de entendermos as conexões entre diferentes culturas, linguagens e contextos, além de preconizarem a releitura da História e dos cânones estéticos e culturais que movem as comunidades e periferias.
Essas
teorias sugeridas pelos Estudos Culturais possuem fortes relações com o público
alvo do referido programa educacional, ao atestar a importância de atentarmos
para o lugar de onde falamos, e ao questionar as funções do intelectual e, de
certa forma, as funções do próprio professor, no contexto histórico e cultural contemporâneo.
Para que serve um intelectual num universo em crise, dividido em guerras
políticas e religiosas, cuja noção de realidade muda a cada instante?
O
PARFOR evidencia a necessidade que a universidade possui de mudar. Mudar e repensar
os seus currículos e as suas metodologias de ensino milenares. Sabemos que
muitos dos paradigmas universitários provêm da Idade Média, quando surgiram as
primeiras universidades europeias, como a de Coimbra, no centro de Portugal,
cujos prédios seculares são, até hoje, protegidos pela estátua imensa de Dom
Diniz, o rei que gostava de agricultura, o antigo poeta das “naus a haver” que
Fernando Pessoa canta lindamente em Mensagem.
Sabemos também que alguns conteúdos e saberes universitários são repassados, muitas vezes, sem a problematização sugerida pelo contexto histórico e cultural dos alunos, e por isso são conteúdos de valia discutível para os dias de hoje, quando a vigência do multiculturalismo e os aparatos tecnológicos e virtuais exigem outras formas de percepção e leitura de mundo. Por isso, enquanto professor do PARFOR, vários foram os momentos de questionamento em torno da minha metodologia educacional e demais práticas docentes, como a avaliação, tendo por base o que vivi com estas turmas e a antiga formação acadêmica. Como lecionar Camões ás 8 h da manhã, numa universidade periférica, enquanto os autos e motos trafegam velozes pela via Dutra?
Embora o PARFOR do curso de Letras não tenha conseguido formar novas turmas para 2016, continuo ligado ao referido programa, como orientador de sete alunas: Débora (Polegarzinha, do Michel Serres), Martha (A paixão segundo GH, de Clarice Lispector), Roselaine (o heterônimo Ricardo Reis), Tatiane (O Fernando Pessoa de António Tabucci), Priscila (o Jesus de Paulo Leminski), Márcia (Desabrigo, de António Fraga) e Noemi (lendas na literatura infantil de Clarice Lispector).
Estas
alunas são orientadas em trabalhos finais de monografia de curso. Elas dão
muito trabalho e proporcionam alegrias também. Rs. Enquanto houver demanda, torço
para que o PARFOR, além de outros programas educacionais de grande alcance
cultural, como o PIBID, seja mantido nas universidades brasileiras pelos órgãos
governamentais que regem a nossa educação.
Rio de Janeiro (RJ) e Baía Formosa (RN), 2015
7 comentários:
Maravilha, Nonato!
Vivenciei experiência semelhante, indo formar professores estado do Rio adentro.
Forte abraço!
André Gardel
Querido, estou em completa sintonia com você. Lembra quando lhe disse que me apaixonei pela educação? Foi por essas e outras. Peço licença para compartilhar.
Estimado professor Nonato, estou emocionadíssima com o seu texto! Lembrei-me de tudo que vivi e aprendi na Universidade proporcionado pelo PARFOR, programa que me possibilitou a formação tão sonhada e que me fez refletir sobre a minha vida como pessoa e profissional.
Em uma de suas aulas professor, me derramei em lágrimas por me achar incapaz e aquém diante de meus colega, mas existe uma força maior que me impulsiona e que me faz seguir. Hoje formada, refaço algumas leituras do curso e enxergo coisas que durante as aulas eu não entendia, acho que ainda estou em processo de aprendizagem e, este é constante não é mesmo?
Compreendo sua inquietação para com o modelo metodológico educacional existente e concordo com os seus anseios de mudanças. A experiência da graduação como aluna do PARFOR, em uma Universidade da Baixada me mostrou isso. Também espero professor, que o PARFOR não acabe para que muitos, como eu, possam beneficiar-se da educação de que tem direito.
Um abraço,
Nívia.
Valeu, Gardel, forte abraço
Ana querida
Gosto de saber da nossa sintonia em torno da educação e da poesia.
Fico feliz e agradecido por vc compartilhar o meu texto.
bjs
Cara Nivea
O seu texto diz o que eu gostaria de escrever.
Obrigado por compartilhar as mesmas expectativas
em relação ao Parfor. Volte sempre.
Abraço
A você todo carinho e admiração meu querido professor pelas sabias palavras e por me apresentar uma literatura incrivelmente bela, por me fazer acreditar ainda mais na educação e demonstra que o incentivo ao Parfor se faz necessário cada vez mais. Sua eterna aluna (PARFOR) Silvana Ramos- curso de Letras Por/Lit na UFRRJ/IM
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