e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 27 de novembro de 2010

Alegria e fé servidas naquele palco


São raros os artistas que chegam à maturidade exibindo, em relação ao seu ofício, boa forma estética e vigor existencial. No Brasil destaca-se a cantora Maria Bethânia. Chama-se “Amor Festa Devoção” o seu novo DVD. Nele, ela canta as canções dos seus dois últimos CDs (“Tua” e “Encanteria”), além dos antigos clássicos que pontuam a maioria dos seus shows: “Rosa dos ventos”, “Explode Coração”, “O que é o que é”, “Reconvexo” ...

“Amor Festa Devoção” possui o pique e a cadência harmônica de antológicos shows como “Drama 3º Ato” (1971). Como acontece no belo “Brasileirinho” (2002), neste DVD de 2010 a direção e cenografia de Bia Lessa dão o tom imagético. Descalça como sempre, Bethania pisa firme e macio no tapete vermelho. Pisa macio nas pétalas. Macio ela fala e contempla a platéia. Mais doce está o seu canto. Suas palavras são degustadas numa dimensão exata, explorando nuanças e embaladas por gestos miúdos que dizem muito. Essa maciez vocal somada a esse gestual preciso gera sutilezas infindas.

De olhar doce e matreiro, Bethania já não corre tanto pelo palco. Ela move-se sutilmente no ritmo das canções, dialogando com sua banda de forma certeira, sob a regência do eterno Jaime Além. Num tempo no qual grandes nomes da MPB perderam parte da intensidade vocal e mesmo da postura elegante e vital que esbanjavam em cena, as aquisições afirmativas do canto de Bethania, aos 64 anos, é um sopro de vida em meio a tanto barulho e tantos corpos jovens correndo pelos palcos.


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

sabor urbano



O que mais comove neste homem que adentra o ônibus vendendo biscoitos Wave, não é a perna que lhe falta. Comove-me a resignação expressa no material da sua voz. A forma como ele indaga ao único passageiro que o atende, acerca do sabor que lhe convém: “abacaxi, limão ou morango?” Uma certa elegância - no tom, na exatidão e no ritmo dessa pergunta - faz dele um homem.

domingo, 21 de novembro de 2010

Silêncio

Lido muito bem com o silêncio. Foi ele sempre um personagem importante em minha vida. Isso me incomodou durante anos, já que a maioria das pessoas prefere alarido. É consenso que a maioria fala muito e faz bastante barunho. Hoje faz mais ainda. O aparato tecnológico (que eu curto pra caralho) amplificou os sons, e o silêncio tornou-se artigo de luxo. Por isso, seja em Pureza (RN) ou Alto do Frade (RJ), sempre inventei os meus exílios repletos de silêncios.
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Atravesso a sonora e bela rua das Laranjeiras, no Rio, com saudades dos silêncios da Glória. Lá reli Camus dizendo que um homem é um homem muito mais pelas coisas que ele cala do que pelas coisas que ele diz. Lendo esse autor estrangeiro, acionei o silêncio viril. Ampliei o respeito pelo espaço produtivo do silêncio, percebendo ser no espaço silencioso que muitas coisas são ditas.
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Com o tempo, somos exímios leitores do silêncio. Passamos a distinguir os silêncios leves dos pesados. Descartamos os climas caóticos e elaboramos os silêncios produtivos. Nossa atitude perante o silêncio alheio diz muito da nossa identidade. Ouçamos este silêncio, my dear. Tomara que ele dê frutos neste quintal das Laranjeiras que, como canta Nando Reis, "satisfeito sorri".

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

ciclo canino

Sem cais nem canil, encara com fé a sombra de antigos espelhos que carrega nos ombros. Lembra o cachorro que é um rio cujas águas amolecem ossos e pedras. Seus cheiros e rosnados agasalham quando o contexto pede silêncio viril.

Para viver este ciclo canino, desenvolvo uma metodologia animal. Uso líquidos de uma mulher que me amou e fez do meu corpo obra de arte. Foi ela quem nomeou o canil que trago no peito. Antes dela, provei chás de uma moça que enxugava dorso de montanha em dia de chuva.

Agora, nutro-me de Clarice Lispector e seus animais. Clarice é bicho corajoso. Confessa que certa vez apaixonou-se, de cara, por Dilermando – um cachorro com cara de brasileiro encontrado numa rua da Itália. Resultado: pagou (isso: pagou) e levou o cão para casa. Rolou a partir daí uma narrativa de cheiros, comidas, abanos, gestos obscenos e, claro, beijos disfarçados. As visitas – coitadas – ficavam passadas.

Segundo Clarice, cachorro cheira as coisas para compreendê-las. Diz ela que eles não raciocinam muito, mas são guiados pelo amor dos outros e deles mesmos. Clarice é a autora brasileira que mais entende de bichos. Em sua obra eles constituem uma simbologia do ser. Por isso ela saca no cão um bicho misterioso que sente tudo, menos a noção do futuro.

Na sua escrita, cachorro tem fome de gente. Tem desejo. Aprendi com Clarice e TT que, às vezes, para abanar o humano é preciso contatar nos lábios o Cão que te deseja. Principalmente quando você e esse Cão usam os mesmos remédios
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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Bella, 1925-2010


Transcrevo abaixo o texto da professora Viviane Lima (UFRRJ) anunciando a morte da professora Bella Josef (UFRJ). Fui, com alegria, seu aluno. Com Bella fiz leituras memoráveis de autores como Benjamin e Cortázar. Ela ensinou-se que o romancista preenche "os silêncios da história".


Prezados colegas,

Com muito pesar, comunicamos o falecimento da Profa. Bella Jozef. Presidente de honra da APEERJ e membro da diretoria em seis ocasiões, era professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de onde fora Catedrática. Autora de inúmeros livros e artigos sobre a Literatura Hispano-Americana e formadora de várias gerações de professores e pesquisadores, Bella Jozef deixa, sem dúvida, um grande legado na história do hispanismo brasileiro.

Entramos em contato com ela, nesta semana, para que pudesse ser entrevistada por alunos do Prof. Nonato Gurgel (UFRRJ - IM -DTL) e, com carinho, aceitou a proposta. A generosidade com que tratava o conhecimento sempre irá nos tocar.

O sepultamento ocorrerá no Cemitério Israelita do Caju, na próxima
sexta- feira, dia 12, às 11 horas.

Profa. Viviane C. Antunes Lima (UFRRJ/APEERJ)
Diretoria da APEERJ (2010-2012)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

falou amizade

Na canção “Língua”, Caetano Veloso é bastante provocativo ao cantar “e quem há de negar que esta lhe é superior?”. Quem responde a essa indagação acerca de uma suposta superioridade da amizade sobre o amor é o escritor Jorge Luís Borges: "Não sei se a amizade é muito diferente do amor. Talvez não. ...É possível que a amizade seja superior ao amor." (Dicionário de Borges).

Quem também celebra com ênfase o sentimento da amizade é o poeta Paulo Leminski. Ele amava línguas e artes marciais, e utilizava nas suas relações amigáveis os mesmos elementos da sua atuação estética e disciplina marcial: magia, estratégia, tática e técnica. Chama-se “De homem para homem” o texto no qual o poeta tematiza a amizade. Esse texto encontra-se no livro póstumo Gozo Fabuloso. Nele Leminski narra de forma ágil e afetiva:

"de homem para homem quem trança os laços é a ação. Sobretudo, a ação por excelência, que é a guerra, o conflito real, matar ou morrer. ... o western é uma exaltação da amizade entre os homens, do afeto gerado na ação conjunta, na fraternidade do combate... "


domingo, 7 de novembro de 2010

Poesia contemporânea


Poeira, estrada, carros em alta velocidade, um homem fugindo e outro voltando para casa na hora errada. Uma mulher que nunca olha para trás, o mercado negro da memória e um telefone que insiste em não tocar. Isso, sem falar de Tony Bennett, “o maior cantor do mundo”, como reconhece certa voz amiga também presente no livro de Leonardo Gandolfi. Entre tiros e datas por esquecer, a suspeita é a mesma. De um lado, o trabalho arbitrário da poesia. De outro, o caráter decisivo do mistério.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Nas tetas de Ana

I don't like: sua leitura marginal acerta minha paz. Fere meu silêncio viril. A letra desce da torre de marfim e, de olho no chão grotesco e banal onde a vida trisca e pulsa, nenhum oh! se ouve: a poesia é vivida no ato.
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Atos, fatos; não convições. A poesia está nos fatos, diz Oswald - pai dos marginais. A poesia está no copo lavado na pia, no corpo macio ao lado. Cobra laranja ligada é "bom pacaralho".
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Recolhendo os restos de leituras e conversas, esta poesia ouvida, escrita, tem o luxo de ser também vivida. Ou apenas vivenciada, como sugere Cacaso em seu livro Beijo na boca e outros poemas (1985). O texto dele é um intertexto explícito com "Poesia", de Chico Alvim, e "Antiode", de joão Cabral de Melo Neto. Reza o credo poético do mineiro cheio de lero:

Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo
E viva nós