e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 30 de julho de 2011

“voz cheia de carne”

“A poesia salva porque recolhe os fragmentos”. Gosto muito dessa assertiva do nosso mais jovem imortal da ABL, o escritor Marco Lucchesi. Penso nele ao ler Trans (Cosacnaify, 2011) – o livro de Age de Carvalho que li de uma tacada.

 Essa recolha dos fragmentos, feita pela poesia, me faz reconhecer neste livro um ritmo que vem das águas e dos ventos. Ventos nos quais se ouve de tudo: da voz do homem (“Ave, teu pênis loquaz, falador”) até as vozes de deus nos ventos do norte (“e deus ali, silvestre”).  Além do homem e de deus, ouvem-se, dentre outros, águas infindas, "o ar cerrado" e montanhas que se movem.

Esses ritmos eólicos e aquáticos que ouço em Trans não remetem a nenhuma dimensão natural nem metafísica ou ontológica. Porque dialogam com a pele, esses ritmos sonorizam uma “memória/ em viagem/ selada na carne”. Essa "memória" gera uma voz. Uma “voz cheia de carne”, colhida entre fragmentos de nomes de pessoas e lugares (às vezes em excesso), mas que faz toda diferença.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Oswald hotel

Um canibal compõe a balada
do pau brasil e deste hotel
cujo mármore branco refrata
o vermelho neon de uma esplanada vã

Antigos funcionários chuvosos
apagam com bocegos a noite
e avivam a mancha que o espelho tece
aos olhos passantes no hall

Macio, o sonho outra vez voa
das letras de Ana, Caio, Eli,
da prova dos nove do carpete
puído de onde brota o sol




São Paulo, 1998

segunda-feira, 25 de julho de 2011

da condição dos avessos


Para Fátima Jácome, Alemanha


Ela morreu em Londres, na madrugada de sábado passado, 23 de julho. Na sexta, 22, publiquei aqui no blog um texto chamado “enumeração de férias”. Como sugere a técnica de enumerar, listei neste texto as pessoas, as obras de arte e as coisas que andam me trazendo algum alento em meio a pedreira cotidiana que nos ritma.


Duas dessas pessoas que alentam os meus dias compõem o segundo verso da minha enumeração de férias, que diz: “Cida Moreira no piano tatuando Amy Whinehouse”. Refiro-me ao belo cd “A dama indigna”, de Cida. Neste cd de 2011 ela canta vários autores e interpreta canções de vários idiomas. Uma das canções que mais curto é “Back to Black”, de Amy Winehouse, que Cida berra com vigor e ritmo de quem transita entre brasas, brisas e sabe-se lá o quê.


a  condição torta de quem foi ao chão


A voz de Amy e suas tatuagens sempre me interessaram muito. O seu jeito torto também. Quem sabe o que é ter um pai ou uma mãe tortos, sabe do que estou falando. Quem leu o anjo torto da poesia que mandou Drummond ser "gauche" na vida, também sabe a que me refiro. Assim como também sabe quem conhece o sertanejo "desengonçado, torto" de Euclides da Cunha. Pau que nasce torto.



Além de ter ritmo e vozes ímpares, Amy era meio torta. Ás vezes, mancava. Chegava a tropeçar. Tropeçava no palco como caía na vida. Tortos, mancos, caídos são seres que me lembram os personagens abissais de Ana C ("eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal") ou os personagens absurdos de Camus ("é preciso imaginar Sísifo feliz").

Seriam os serem que vingam aqueles que imaginam feliz o homem, a pedra que ele carrega e sua queda? Quem também conhece “o esplendor da queda e a violência dos abismos” são os adolescentes. Por isso eles, os adolescentes, se pintam e se tatuam como Amy. Eles cantam Amy. Eles a amam na condição torta de quem foi ao chão. Assim como ao chão vão não apenas os adolescentes, mas todos os que cantam procurando “Back” em qualquer idade...


Ao seu modo bela e insuportavelmente humana como a maioria das cantoras que criam linhagens – Billie Holliday, Edith Piaf, Dalva de Oiveira, Janis Joplim ou Maria Bethania – Amy repetia o seu credo negando. Negando como faz num dos seus últimos refrões: “no no no...” Sabemos que essa negação, desde Freud, é bastante sedutora. Diz muito do seu contrário. Essa negação parece traduzir as marcas e as formas de um corpo que, entre o brilho do olho e o grotesco da carne, destoava, a cada palco, das bundinhas saltitantes e saradinhas embaladas pela mídia.

Intensa como a vida de Amy, fica sua voz. Uma das primeiras a compor a trilha sonora do século XXI.  Um beijo, Amy.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

enumeração de férias

Wood Allen chovendo “Meia noite em Paris”
Cida Moreira no piano tatuando Amy Whinhouse
Os caminhos ocultos do parque no diário de Robert Walser

Oswald, e a massa comendo seus biscoitos finos em Paraty
Biscoitos macios de Minas onde João criou a batida, a bossa
E a nova das alunas de teoria lendo Aira e Hall na Rural

“O Idiota” de Dostoievski no palco do Jardim Botânico
Freud, Allen e Coltrane plays the blues como presentes de niver
Verdes, uma camisa e uma chaleria de cujo vidro se vê o chá

Para ler, águas potiguares e “Terras Proibidas” de Luiza
E os Anseios Crípticos do Leminski lendo um grito
amordaçado nos silêncios de Graciliano

sábado, 16 de julho de 2011

Concurso de Poesia

Participei nos últimos dias, como jurado virtual, de um concurso de poesia. O referido concurso está sendo promovido pelo blog Autores SA. Nesta etapa na qual atuo como jurado convidado, os 11 poetas concorrentes trabalham um dos temas recorrentes nas minhas leituras e pesquisas: O Sertão.

Como leitor de poesia, achei interessante essa experiência de ler e comentar virtualmente os 11 poemas, atribuindo notas. Meus comentários e notas estão registrados no link a seguir, onde o editor e escritor Lohan Lage publica uma pequena entrevista nossa: http://autoressa.blogspot.com/2011/07/comentarios-notas-e-anuncio-do-campo_15.html

sexta-feira, 15 de julho de 2011

os escritores e a gramática - 0



Me fascina muito as contaminações.  Em Portugal temos um sentido de propriedade muito grande, a língua fica mais ortodoxa, mas patrulhada. Nos outros países, a língua se contamina com muito mais facilidade, e isso, para um escritor, é um patrimônio. Procuro livros brasileiros para saber o tamanho da língua.



valter hugo mãe, O Globo, 15 de Junho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

os escritores e a gramática - I



 ... o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar brasileiro sem si amolar com a gramática de Lisboa. Dar cada um a sua solução pessoal de falar brasileiro pra que depois um dia os gramáticos venham a estabelecer a gramática do Rio de Janeiro. Está certo. Vejam bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “ se opondo à gramática de Lisboa”. Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, nem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente.  Se trata de ‘ser’. O brasileiro tem direito de ser...

Mário de Andrade, “Gramatiquinha da fala brasileira”, 1928 





Enquanto não se reconhecer a especificidade do português brasileiro dentro do conjunto de línguas derivadas do português quinhentista transplantados para as colônias, enquanto não se reconhecer que o português brasileiro é uma língua em si, com gramática própria, diferente da do português europeu, teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas.


Marcos Bagno, “Polêmica ou ignorância?”, 2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

os escritores e a gramática - II



... qualquer classificação é opressora... toda a superfície do discurso ... é regida por uma rede de regras, de contingências, de opressões, de repressões mais ou menos pesadas ao nível da retórica, sutis e excessivas ao nível da gramática...


Roland Barthes, Lição, 1978

quinta-feira, 7 de julho de 2011

os escritores e a gramática - III

Pronominais*

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro


Oswald de Andrade, Pau Brasil, 1925


* O poeta canibal continua devorando os modernos e contemporâneos. Este seu poema faz pensar nas celeumas recentemente criadas em torno do livro do MEC sobre o ensino da nossa língua.

Homenageado da FLIP 2011, o poeta que funda a nossa modernidade foi assim lido por Antonio Cândido, ontem em Parati: "Era um homem que tinha traços de gênio." Além de genial, Oswald é bastante sintático e afetivo. Como demonstra o Serafim Ponte-Grande: "Perdeu a sintaxe do coração e as calças."

quarta-feira, 6 de julho de 2011

os escritores e a gramática - IV

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
...
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.



Paulo Leminski, "O assassino era o escriba" in Caprichos & Relaxos, 1982

terça-feira, 5 de julho de 2011

os escritores e a gramática - V

... é na sintaxe que pinta o meu desejo.




Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta, 1999

segunda-feira, 4 de julho de 2011

os escritores e a gramática - VI

Os adjetivos passam, e os substantivos ficam.




Machado de Assis, "Balas de Estalo" in Gazeta de Notícias,Rio de Janeiro, 1885

sábado, 2 de julho de 2011

livros livros livros

Trecho de entrevista de Katy Navarro e Sandra Ney com Nonato Gurgel para o PROLER – Casa da Leitura, Laranjeiras, Rio de Janeiro.

...
PROLER: Qual é a diferença que a leitura faz na vida do indivíduo?
NG: A leitura é uma ação. Ela auxilia na construção do discurso e o discurso engendra a identidade, a cidadania. Através da leitura, o indivíduo torna-se um produtor de sentidos. A leitura amplia a visão contextual, remove obstáculos existenciais. A leitura pode ser também terapêutica.

PROLER: Como incentivar a leitura nas crianças nessa era de mídia digital?

NG: Vejo as mídias digitais como suportes que intensificam as possibilidades de leitura e produção de textos. Cabe aos pais e educadores estabeleceram metas e propostas que incluam as leituras impressas e virtuais na formação das crianças.


PROLER:
O que a leitura acrescentou na sua vida?

NG: A leitura não acrescentou. Ela fundamentou a minha existência como homem e cidadão. Sem a leitura, não haveria isso que as pessoas chamam “projeto de vida” ou “minha vida”. Fui salvo pelos livros. Autores e personagens foram os meus heróis desde a infância.


PROLER: Cite os autores mais lidos por você.


NG: Euclides da Cunha, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, João Cabral de Melo Neto, Ana Cristina Cesar, Jorge Luís Borges, Ítalo Calvino, Cesar Aira, Roland Barthes e Walter Benjamin.

PROLER: Se puder escreva um pequeno trecho de um texto de autor que tenha marcado sua vida.


NG: O seguinte trecho foi transcrito do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. (...) É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (...) É o homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo (...). Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. (...)