Para Fátima Jácome, Alemanha
Ela morreu em Londres, na madrugada de sábado passado, 23 de julho. Na sexta, 22, publiquei aqui no blog um texto chamado “enumeração de férias”. Como sugere a técnica de enumerar, listei neste texto as pessoas, as obras de arte e as coisas que andam me trazendo algum alento em meio a pedreira cotidiana que nos ritma.
Duas dessas pessoas que alentam os meus dias compõem o segundo verso da minha enumeração de férias, que diz: “Cida Moreira no piano tatuando Amy Whinehouse”. Refiro-me ao belo cd “A dama indigna”, de Cida. Neste cd de 2011 ela canta vários autores e interpreta canções de vários idiomas. Uma das canções que mais curto é “Back to Black”, de Amy Winehouse, que Cida berra com vigor e ritmo de quem transita entre brasas, brisas e sabe-se lá o quê.
a condição torta de quem foi ao chão
a condição torta de quem foi ao chão
A voz de Amy e suas tatuagens sempre me interessaram muito. O seu jeito torto também. Quem sabe o que é ter um pai ou uma mãe tortos, sabe do que estou falando. Quem leu o anjo torto da poesia que mandou Drummond ser "gauche" na vida, também sabe a que me refiro. Assim como também sabe quem conhece o sertanejo "desengonçado, torto" de Euclides da Cunha. Pau que nasce torto.
Além de ter ritmo e vozes ímpares, Amy era meio torta. Ás vezes, mancava. Chegava a tropeçar. Tropeçava no palco como caía na vida. Tortos, mancos, caídos são seres que me lembram os personagens abissais de Ana C ("eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal") ou os personagens absurdos de Camus ("é preciso imaginar Sísifo feliz").
Seriam os serem que vingam aqueles que imaginam feliz o homem, a pedra que ele carrega e sua queda? Quem também conhece “o esplendor da queda e a violência dos abismos” são os adolescentes. Por isso eles, os adolescentes, se pintam e se tatuam como Amy. Eles cantam Amy. Eles a amam na condição torta de quem foi ao chão. Assim como ao chão vão não apenas os adolescentes, mas todos os que cantam procurando “Back” em qualquer idade...
Ao seu modo bela e insuportavelmente humana como a maioria das cantoras que criam linhagens – Billie Holliday, Edith Piaf, Dalva de Oiveira, Janis Joplim ou Maria Bethania – Amy repetia o seu credo negando. Negando como faz num dos seus últimos refrões: “no no no...” Sabemos que essa negação, desde Freud, é bastante sedutora. Diz muito do seu contrário. Essa negação parece traduzir as marcas e as formas de um corpo que, entre o brilho do olho e o grotesco da carne, destoava, a cada palco, das bundinhas saltitantes e saradinhas embaladas pela mídia.
Intensa como a vida de Amy, fica sua voz. Uma das primeiras a compor a trilha sonora do século XXI. Um beijo, Amy.
5 comentários:
"A voz de Amy e suas tatuagens sempre me interessaram muito. O seu jeito torto também." Bom saber que não estou sozinha, que alguém como vc faz coro comigo. A inquietação, a perturbação e todo seu jeito marginal era apenas um detalhe naquele potencial vocal(às vezes penso que ela nem se via tão capaz. Tão grande...tão pequena!)
Bju meu, Nonato!
Excelente texto(de novo)
Vânia
Belo texto.
Faço coro com vc, Vãnia. bj
relendo esse post hoje, me veio á mente a letra cantada por céu, acho que é do Baleiro:
"quem me trata é moura torta..."
boa lembrança, Alexandra, bj
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