I
O filme “Bruta aventura em versos”, de Letícia Simões, estreou ontem no Festival do Rio. O documentário é uma descarada declaração de amor feita pela diretora à poesia de Ana Cristina Cesar (1952 – 1983), ratificando os melhores momentos de sua poética: “Samba-Canção”, “Carta de Paris”, “O homem público n 01”...
Depois dos documentários de João Moreira Salles (“Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem”) e Claudia Morandei (“Ana C”), realizados na década de 90, este filme filia alguns escritores do século XXI à poeta de “A teus pés”. Filia e fabrica uma ponte entre os antigos e novos leitores dessa jovem senhora que quando passa deixa sempre um rastro prateado.
O filme segue esse rastro luzidio deixado pela poeta que dizia serem as cartas mais arrepiantes que a literatura. Na sua rápida passagem por nossas letras, Ana deixou um legado cultural que foi transformado em 8 volumes de poemas, ensaios, traduções, resenhas e cartas. De olho neste manancial estético e na vida de Ana C, “Bruta aventura em versos” é um roteiro cheio de luz, câmara, desejo: nenhuma treva atravessa a tela.
II
Ana afeta quem a lê. Na tela, o seu verso mexe. Vaza o afeto que se encerra no peito da poeta. Vaza na diretora emocionada, no palco, falando antes do filme começar; vaza no leitor com quem a poeta dialoga sugerindo que delete o fiasco da noite velha, o salmo inútil, o amor que já não imprime.
O afeto vaza também no espectador que se desconhece em alguns versos daquela narrativa: “não sou eu que estou ali”. Um afeto que parece dialogar principalmente com o desejo e a ternura pede roteiro para quem desentranha. O que fazer, depois da sessão, com este afeto desabrochado?
Ana tenta explicar o desejo e a ternura em cada palavra. Em cada verso. Confessa mais que carola de igreja do interior. Daí o seu apreço pela carta e pelo diário – formas que melhor conduzem e suportam a confissão. De forma didática e com leveza, o poeta Armando Freitas Filho e a ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda elucidam a importância dessas formas modernas na poética de Ana.
III
Seja através da sonoridade verbal ou por meio de imagens em movimento, a poética de Ana arrepia. Dá bandeira nos menores gestos. Mesmo quando a fala entope, não diz, o texto produz algum sentido. Escrita que rasura a página e a pele de quem lê.
Desejo, arrepio e bandeira é um coquetel que todo jovem adora. Por isso, a maioria dos leitores que se aventura na página cáustica e requintada de Ana C torna-se presa da sua sintaxe poética. Uma sintaxe repleta de contornos, curvas, desvios e não ditos. Sintaxe de formas e afetos numa poética cheia de ritmos.
Como o poeta Fernando Pessoa, Ana C tem o coração despejado feito balde. Como Pessoa, ela se conhece feito verbo, sinfonia, imagem. Uma imagem em movimento que se perpetua na mente após a leitura e que, feito o tempo, não pára. Como a bela Alice Sant’Anna - exímia leitora - que aparece no filme dizendo que Ana será sempre jovem. Sim, a poeta será sempre linda, luz.
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