Cicero, comecemos pelo título. Por que um advérbio?
AC: Por que não? “Guardar” é um verbo. Mas
quem melhor explica esse título é Antonio Carlos Secchin, na orelha do livro.
Ele diz: “O advérbio ‘porventura’, afirma-nos o Houaiss, é empregado
especialmente em perguntas delicadas. Já o sentido de ‘ventura’ oscila entre
‘felicidade’ e ‘risco’ – dois combustíveis perpétuos do poema”.
“Que não se engane ninguém: / ser
um poeta é uma África.” (“O poeta marginal”). O que sugere ao leitor a
conclusão desse eu poético?
AC: Já que o Secchin citou o
Houaiss, vou citar o Aurélio, para o qual “áfrica” é “façanha, proeza,
feito”. Assim, ser um poeta é uma façanha, uma proeza, um feito. Usa-se com
minúscula, mas prefiro com maiúscula, quando a façanha fica ainda maior e mais
misteriosa, como o continente negro.
Tem nome ou referente a “Cidade”
que você constrói para Arthur Nestrovsky?
AC: Não. A cidade de A cidade e os
livros é o Rio de Janeiro, mas seus lugares “abriam-se em esquinas
infinitas / de ruas doravante prolongáveis / por todas as cidades que
existiam”. A cidade de Porventura é a que se compõe de todas as cidades
que existem. O poema é dedicado ao
Arthur Nestrovsky porque surgiu quando ele me encomendou um poema para
publicar, não me lembro mais em que periódico.
Um “entregador de
flores” rouba a cena no poema “As flores da cidade” (Porventura). Há garotos em
canções e poemas como “Onda” (Guardar) e “Vitrine” (A cidade e os livros).
Gostaria que comentasse a presença deles na sua poética, e de saber se existe sintonia entre
essas “musas” e o eu poético que se ouve no “Balanço”, suspeitando se será
“plenamente adulto”.
AC:
Do meu ponto de vista, não há grande sintonia entre eles. É que o
sujeito que jamais será plenamente adulto é o sujeito do poema, o poeta. De
fato, como poderia ser considerado adulto, sério e maduro alguém como eu, que
jamais seguiu carreira alguma, que não tem profissão, emprego ou aposentadoria,
alguém que, como diz Borges, “se aplicó a las simétricas porfias / del arte,
que entreteje naderías”? A entreter naderias, envelheço, mas jamais cheguei ou
chegarei a ser maduro ou adulto. É isso que, entre outras coisas, penso estar
dizendo ali.
Já o garoto de “Onda” se origina no Hino Homérico
a Hermes. Hermes é o mensageiro dos deuses, correspondente a Mercúrio ou Exu. O
autor do Hino fala dele como
[...]
um garoto versátil, manhoso,
ladrão, boiadeiro, pastor de sonhos,
olheiro
da noite, manjador de portões, que logo
mais
brilharia por seus feitos entre os
mortais.
[...]
Transplantando o cenário, da Arcádia para
o Arpoador, e modificando um tanto esse trecho do poema, escrevi:
[...]
Garoto versátil, gostoso,
Ladrão, desencaminhador
De sonhos, ninfas e rapsodos
[...]
“a flor/ da onda” vem de Alcman (fr.26).
“Vitrine”, por outro lado, é produto da
percepção do comportamento e da divagação sobre o narcisismo e sobre os sonhos
de consumo e de virtuosismo futebolístico de tantos rapazes brasileiros.
Quanto a “Flores da cidade”, trata-se de
um poema que foi feito a partir de minha experiência de caminhar pela cidade.
Adoro tais caminhadas, durante as quais observo muitas coisas, algumas
terríveis, outras belas, e às vezes troco olhares ambíguos, equívocos,
polissêmicos com os rapazes bonitos que atravessam o meu caminho.
Desde Guardar, você vem atualizando
a memória e o imaginário urbanos, através de um profícuo diálogo com a
mitologia e com alguns autores representativos da cultura clássica. Qual é a
importância desse diálogo para a poesia contemporânea?
AC: Posso falar somente da importância
desse diálogo para a minha poesia. O que ocorre é que penso em toda a
poesia canônica, principalmente na poesia do mundo clássico, que pertence tanto
ao Brasil quanto a qualquer outro país, como um thesaurus, um tesauro, um
reservatório de figuras. O poeta romântico inglês Keats dizia, com razão, que o
poeta não tem personalidade, pois é um camaleão. Pode-se dizer que, enquanto
poeta, ele não tem um ser particular. Homero era retratado – a partir, é claro,
do retrato que ele mesmo fez do poeta Demódoco, como cego. Interpreta-se isso
como a significar que o que ele canta não vem de sua própria experiência, mas
do sopro das Musas. Mas a cegueira quer dizer também que ele não se limita ao que
vê: não se limita ao presente. Assim é todo poeta enquanto poeta. Por isso,
digo em “O poeta cego”:
Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Sem ser
nem ver ele verseja.
[...]
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