Balanço
A infância não foi uma
manhã de sol:
demorou vários séculos; e
era pífia,
em geral, a companhia. Foi
melhor,
em parte, a adolescência,
pela delícia
do pressentimento da
felicidade
na malícia, na molícia, na
poesia,
no orgasmo; e pelos livros
e amizades.
Um dia, apaixonado,
encarei a minha
morte: e eis que ela não
sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é
a morte alheia
que me abate. Tarde
aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda
a suspeita
de que jamais serei
plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei
velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e
maduros
Marcelo e um ou dois dos
meus futuros versos.
O poeta marginal
Em meio às ondas da hora
e às tempestades urbanas
conectarei as palavras
que trovarão novas trovas.
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
Exporei tudo na rede
sem ganhar nem um vintém:
a vaidade, a fome, a sede,
certo truque, rara mágica.
Que não se engane ninguém:
Ser um poeta é uma África.
Cidade
Para Arthur Nestrovsky
Lembro que o futuro era uma cidade
nebulosa da qual eu esperava
tudo e que, sendo uma cidade, nada
esperava de ninguém. Ah, cidade
sonhada de avenidas macadâmicas,
turbas febris e prédios de granito:
o que era que eu perdera e que, perdido
e em cacos, buscava nas tuas áridas
calçadas e esquinas? Hoje constato
que a névoa do futuro do passado
adensa-se dia a dia. De longe
teus contornos são mais arredondados.
Tu, cidade irreal, aos poucos somes:
já anseio te rever e já te escondes.
As flores da cidade
Há flores pelo caminho
através
da cidade à cidade:
naturais,
em canteiros e em árvores,
talvez,
mas quase todas
artificiais
nos cabelos dos bebês, em
cachorros
mimados, em vitrines e
revistas
femininas, em cartazes e
outdoors,
e – de novo naturais – em
floristas,
camelôs na calçada e,
sobretudo,
nas mãos do entregador de
flores, cujo
olhar esverdeado sobre as
rosas
é puro absinto e tudo nos
deslembra,
lançando-nos dúvidas
hiperbólicas
sobre o próprio destino a
uma hora dessas.
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