Neste quarto livro de Carlos de
Souza, uma das primeiras coisas que chamam a atenção do leitor é a delimitação
do espaço narrativo. A noção de espaço urbano é recortada nas idéias de cultura
e poder afirmadas no título. Logo nas primeiras páginas fica claro como esse
espaço sugere – e às vezes determina – a ação da narrativa. Fica claro, como
diz a voz que narra, ser a cidade o espaço da “alma potiguar em ação”.
Cidade dos Reis
atravessa a “alma” de Jonas – o personagem que nasce no primeiro dia do século
XX. O livro pode ser lido como uma biografia apaixonada de Natal na travessia
do século XX. Jonas em natal. Ambos se atravessam – a cidade, o personagem. A
narrativa é centrada nele e suas ações, embora a personagem principal esteja
anunciada desde o título: um espaço que, segundo Cascudo, nunca precisou ser
vila, povoado ou distrito: já nasceu cidade.
Antenado com a oralidade fragmentada
do seu tempo, Cidade dos Reis é uma “conversa
de beira de calçada” cheia de derivas. Uma conversa sortida de ficção, história
e alguma memória sertaneja: “O sertão está dentro da cabeça de cada um”, lê-se
no capítulo 11. Uma conversa de rua, uma sopa de letras feita de camarão e
jerimum. Rango nutrido de alguma poesia, um vasto “silêncio oceânico” e a
brutalidade produzida pela moral dominante ao longo de um século.
Cidade dos Reis
é uma “conversa” repleta de re-começos. Conversa de quem aprendeu a repetir re-começo.
Memórias de um narrador que conta e reconta que é uma beleza. Ficções
fragmentadas sem o rigor da gravata que burocratiza a informação, matando a
narrativa. Nenhuma que se compare com a narrativa centenária de Jonas, cujas
crises e mutações perpassam os 20 capítulos deste romance que atravessa o
século XX e seus espaços bélicos.
Transitando pelas tradições cultuais
da nação potiguar, o livro registra nossos “primeiros bafios da modernidade”
até o Plano Real do governo FH, quando o personagem Jonas estanca a sua
travessia urbana. Neste trânsito, afirmam-se algumas das mais importantes metamorfoses
políticas ocorridas na sociedade potiguar e na vida cotidiana de Natal, no decorrer
do século, cujas três primeiras décadas são recortadas até mais ou menos o
capitulo 10.
Essa modernidade alcança o seu apogeu
no capítulo 13. Nele surgem lendas e narrativas da ocupação americana durante a
segunda guerra, quando Natal absorve outros hábitos culturais e a população
urbana incorpora aos seus ouvidos e paladares novos ritmos e sabores. Outros gestos e palavras. A cidade fabrica outro imaginário.
Essa modernidade natalense pode ser
aferida logo no capítulo 4. Nele o leitor tem notícias da belle époque potiguar, ao ver registrados os primeiros lampiões de
gás acetileno que iluminavam as ruas das Rocas, Ribeira e Cidade Alta. O bonde elétrico e o telefone depois. Outras
figurações modernas atravessam o romance, como o sonho de Manuel Dantas, e o
registro de suas conferências, cujas visões oníricas perpassam o imaginário
potiguar de quem produz arte e cultura desde as vanguardas do início do século
XX.
os mártires
de Cunhaú e a “aspereza das mantilhas”
Cidade dos Reis
é um livro cujas narrativas transitam principalmente entre o referente
histórico e os planos míticos e culturais. Repleto de registros orais, causos
antigos, lendas urbanas e ditos populares, o romance apresenta procedimentos
comparativos da maior relevância estética e cultural ao reler, por exemplo, a
história de Natal frente às histórias de outras cidades, como Recife – outro
espaço urbano que ganha relevo nas aventuras existenciais de Jonas. Nestas
releituras, o autor realça as diferenças culturais entre o domínio holandês em
PE e no RN, e o leitor percebe a diferença entre as águas que correm no Potengi
e noutros rios. “A literatura era um rio de águas transparentes...”, lemos no
último capítulo.
Mergulhado nestas “águas”, o autor recorta
um cânone de inscrição potiguar, onde são audíveis as vozes de autores de
diferentes contextos e estéticas como Nísia Floresta, Auta de Souza, Henrique
Castriciano, Palmira Wanderley, Jorge Fernando, Lenine Pinto, Myriam Coeli, Luís
Carlos Guimarães, Bosco Lopes, o próprio Carlos de Souza e Câmara Cascudo, dentre
outros.
Natal Cascudo. A cidade lida,
inscrita pelo seu autor. A biografia de Cascudo, os seus livros, sua recepção
crítica. As relações do autor com o Integralismo e sua adesão ao Modernismo
paulista. Esses núcleos temáticos perpassam o romance, na medida em que avançam
as aventuras afetivas e “profissionais” de Jonas, o “comerciante” leitor de Zila
e Cascudo.
O paralelo entre o personagem
principal e a narrativa do profeta bíblico é um dos achados deste romance
polifônico onde a literatura coexiste com a memória e o texto bíblico, e onde
um outro cânone – o cânone da traição, na tradição literária ocidental – é
recortado nas letras de Shakespeare, Machado, Eça e Flaubert. Além destes
autores, o autor dialoga com Dostoievski – outro escritor realista a quem ele
recorre, quando necessita refletir ou estetizar a maldade humana que reina na Cidade... repleta de informação e poesia.
Na travessia desta Cidade..., o leitor encontra tanto os mártires de Cunhaú, da guerra
do Paraguai, da guerra de Canudos e da segunda guerra mundial, como depara com
um recorte vocabular – poético e violento – que mensura, mesmo no universo
religioso, a “aspereza das mantilhas”.
lendas, ventos,
conversas
Nesta Cidade dos Reis os homens criam lendas. Produzem ventos. Na audição
desses ventos e lendas ouço algumas das figurações mais consistentes da
literatura potiguar contemporânea. Repleta de restos dos discursos do senso
comum (precisava mesmo de tanto lugar comum?), essa “conversa” aviva algumas das
paisagens mais afirmativas da história norteriograndense. Aviva e diz muito do Brasil,
a partir das narrativas e lendas criadas nesta esquina americana, cujo povo
ganhou a “alcunha de Papa-jerimum”.
Carlos de Souza anota os nomes da terra.
Dá nome aos bois. Põe “a alma potiguar em ação”. Não sei se os seus personagens
sabem o preço de suas escolhas, mas pelas curvas da história e veredas da
ficção, sua linguagem ajuda o leitor a configurar uma identidade lingüística e espacial
nesta esquina silenciosa do continente. Por isso esta prosa deve ser lida nas escolas
do Rio Grande do Norte. Parodiando Jonas e seu final, a Cidade dos Reis “interessa ao resto do Brasil”.
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