My dear
Enquanto esquentam os pratos na cozinha, ponho em silêncio a mesa. Atento para a combinação das cores. Azul já não espanta, nem o laranja nada tece. Penso nas mesas postas para você, suas demoras, vindas adiadas. Por pouco não me corto nesta faca. Nunca o objeto inerte, afiado, disse tanto nas suas bordas repuxadas, irritadas, mas generosas. Bordas fartas, não nego. Como me excita essa expectativa de mesa posta... Corte. Enquanto ponho a mesa, espero esta nova linha pós break, e conjugo um verbo antigo conhecido de guerra em todas as eras por que passei: suportar.
Mastigamos em silêncio. Ao lado, ela vive o martírio de um dente que não consegue, certeiro, cortar a asa. Termino o jantar e retomo a leitura de onde havia parado. Tenho o ritmo do ventre e da página virada com a sofreguidão de quem crê que a cada palavra lida deste livro eu decifro a esfinge e a devoro na sequência. Balela. Eu, nesta idade, já devia saber. Não. Eu sei que não devia (mas eu não consigo dormir semलेर, você consegue?).
Cena detalhada do capítulo de ontem: no ar, a velha hipótese roseana de que a visão amplie alguma perspectiva e o obstáculo seja mutável. Tenho, como você, pensando nisso também. Como eu sei? Sei porque te leio. Visito o teu blog sempre que posso. Essa terra virtual é estranha mas aduba a curiosidadade, nutre a angústia comunitária. Curto muito. Curto, no blog, o sangue pingando ao lado dessa palavra sem cor se derramando... E olhe que dá pra segurar, sim. Nada de explosão que eu não sou o Gonzaguinha!
Amei a foto. Quando puder diga, mesmo pelo blog, qual é a leitura da imagem da máscara. Fico de pau duro só de fitá-la. Curto a nuca, os cabelos pretos, a cabeça no espelho.Torço com uma força que me surpreende. Foi olhando essa foto que decidi: não quero mais brincar de extremos com você. Chega do lugar periférico que ocupo na sua história, porra. Esta foto é pura epifania. Acende o pavio da imaginação e a reta. Só você conhece o resto, porra. O espelho afasta o fantasma do retorno que dormiu comigo no sonho de ontem. O espelho disse que eu tenho um espelho embutido no corpo e por isso não posso bruscamente voltar para trás. Fiquei pensando no rosto do espelho, pensando no rosto abissal carregando um espelho.
Ontem à noite encerrei uma sessão de análise falando da lucidez de quem traz consigo uma primavera – iluminada estação – e vive, ao mesmo tempo, um inverno feroz. Queria muito te conhecer noutra estação. Nesta teve o espelho embaçado pelo gelo da Glória, as galinhas de Botafogo, a bibliografia que você pediu e não usou...
Mesmo sabendo que é o fim, admito, enquanto vejo a novela, que você às vezes ainda re-escreve a noite. Preciso parar de pensar assim. Por pouco não me corto nesta faca... Nunca o objeto inerte... nas suas bordas irritadas, generosas... Bordas fartas, não nego, mas vê se por favor não responde.
6 comentários:
Passei por aqui e amei.
Bj. Valéria Lourenço.
Valéria, amo os seus comentários de passagens (mais Benjamin...rs)
bj
faca de dois gumes
"Esta foto é pura epifania. Acende o pavio da imaginação e a reta. Só você conhece o resto, porra. "
muuuuito bom, porra
vou voltar
JL
volta sim, JL
lindo.
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