LUIZA FECAROTTA
Crítica da Folha
Crítica da Folha
14/10/2015 02h00
Luís da Câmara
Cascudo (1898-1986) foi um sujeito erudito que encheu cadernos de notas,
observou os costumes do brasileiro sem trégua, ouviu escravos de
"inesgotáveis recordações", leu vagarosamente receitas escritas à
mão.
Considerado um dos
mais importantes pesquisadores da cultura popular brasileira – e por que diabos
tão restrito ao universo acadêmico? –, Cascudo vira personagem central de duas
grandes ações culturais, uma exposição e uma série documental de TV.
A mostra "O
Tempo e Eu (e Vc)" homenageia sua vida e obra a partir de terça (20), no
Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. "O grande legado de Cascudo foi
registrar a vida das pessoas e valorizar brasis invisíveis", diz o curador
Gustavo Wanderley.
Em 600 m2,
arma-se um passeio sinestésico pela infância do autor, pelas tradições orais
ligadas às lendas e aos mitos (eis o saci, o lobisomem), pelos gestos (o aperto
de mãos, o abraçar), pelas festas (e o corpo do brasileiro que "não
precisou aprender a dançar"), pelas fés.
E, bem, sempre
seduzido pela alimentação, ainda caminha-se pelas práticas culinárias. Já dizia
ele, "o alimento contém substâncias imponderáveis e decisivas para o
espírito, a alegria, a disposição criadora, o bom humor".
O módulo "todo
trabalho do homem é por sua boca" parte da obra "A História da
Alimentação no Brasil", um calhamaço de quase mil páginas reconhecido como
referência. Foi nesse tratado que Cascudo esmiuçou a contribuição que os
índios, os portugueses e os africanos deram à formação da nossa cozinha
nacional.
"Na época, foi
bastante inovador. Cascudo tentou entender como essas três grandes etnias
ajudaram a definir o paladar brasileiro", diz João Luiz Maximo,
historiador e também curador do módulo.
É essa mesma obra,
calcada na miscigenação alimentar, que o cineasta paulistano Eugênio Puppo toma
emprestada para dar caldo a uma série documental para TV, cuja produção começa
em fevereiro e tem lançamento previsto para 2017.
"Cascudo foge à
regra dos grandes intelectuais. Ele era um bom prosador, ia à feira, conversava
com as pessoas. É esse clima do dia a dia do brasileiro que queremos trazer na
série", diz Puppo.
SUBSTITUIR,
INCORPORAR
Na mostra no Museu da
Língua Portuguesa, um cenário traz 126 tábuas de madeira a girar no próprio eixo,
nas quais são apresentadas imagens e trechos do "cardápio indígena",
da "ementa portuguesa" e da "dieta africana".
Entra-se em contato,
por exemplo, com rituais indígenas que celebram bebidas derivadas da mandioca,
raiz que recebeu "registro laudatório de todos os cronistas" desde o
início da posse da terra.
"Também vamos
tratar de dois conceitos caros, a substituição e a incorporação", diz
Gustavo Wanderley.
Para ilustrá-los,
toma-se como modelo a doçaria portuguesa, já centenária quando o açúcar apareceu,
antes calcada no mel de abelhas à semelhança do que se fazia na Antiguidade
clássica.
No contato com as
frutas tropicais, troca-se o marmelo pela goiaba, por exemplo, mas o modo de
cocção, nos tachos de cobre, permanece.
Houve rápida incorporação de costumes portugueses –ainda tão contemporâneos–, como "oferecer alimentos na alegria do convívio, comer juntos", registrou Cascudo.
Houve rápida incorporação de costumes portugueses –ainda tão contemporâneos–, como "oferecer alimentos na alegria do convívio, comer juntos", registrou Cascudo.
"O português
sempre fez caldos e cozidos. Aqui, ele encontra a farinha de mandioca, feita
com tecnologia indígena e a incorpora nos preparos. Nasce, assim, o
pirão", explica o curador.
Para Mara Salles, uma
das mais icônicas cozinheiras da culinária nacional em São Paulo, a obra de
Cascudo propiciou "um olhar mais aprofundado sobre o homem e sobre o
ambiente". "Eu entrei na gastronomia um pouco pela antropologia, um
pouco pela farra. E sempre fui meio cerebral com a comida."
Roberta Sudbrack, da
casa homônima no Rio, valoriza ingredientes vulgarizados do nosso dia a dia, e,
assim, busca estar em contato com as cozinheiras anônimas do Brasil, com as
quais mantém identidade, tal qual Cascudo fez. "Sua obra é fundamental
para qualquer um de nós porque até hoje nos identifica."
Oxalá seu trabalho
possa, enfim, estar mais próximo dos brasileiros, e que os brasileiros,
portanto, possam se conhecer melhor.
O TEMPO E EU (E VC)
QUANDO estreia ter. (20); de ter. a dom., das 10h às 18h (bilheteria fecha as 17h); até 14/02/2016
ONDE Museu da Língua Portuguesa, praça da Luz, s/nº, tel. (11) 3322-0080
QUANTO R$ 6 (grátis aos sábados)
QUANDO estreia ter. (20); de ter. a dom., das 10h às 18h (bilheteria fecha as 17h); até 14/02/2016
ONDE Museu da Língua Portuguesa, praça da Luz, s/nº, tel. (11) 3322-0080
QUANTO R$ 6 (grátis aos sábados)