e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

letra urbana


 
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O professor Ramon Ramos é graduado em Letras pela UFRJ. Autor dos livros Tinta (2012) e Caroço (2013), ele é também o organizador da antologia Mestiço (2013), todos publicados pela editora Patuá de São Paulo.

Na entrevista a seguir, o autor apresenta Caroço, comenta a sua escrita e elege os seus “clássicos”. Nessa eleição, ele sugere, assim como na resposta que envolve o processo de criação, como a estetização da memória perceptiva ajuda na construção de textos poéticos e narrativas.

Caroço é um livro repleto de vozes que rememoram, e de narradores urbanos que se movem por cenários ruídos com narinas acesas. Vozes munidas pelo olor e o corte. Narradores que preparam o nariz “para o cheiro”, ou seres que reclamam de não serem entendidos “pelos cheiros”. Narradores de “brechas abertas" aos olores cotidianos, universais, com “a vontade de degustar o melhor dos outros”.

Esta sintonia com o outro, remete à poética da leitura, em Borges, um dos clássicos mencionados, pelo autor, na entrevista a seguir. Ele sabe que, para ficar, a frase depende de sua excelência, o outro – o leitor. Nos links a seguir, encontram-se os livros do autor.
 




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“alegria de uva sem caroço” e “sua fruta só lhe dá caroço”
 
 
NG: Ramon, como você apresenta Caroço (2013) para o leitor?

RR: Caroço é um livro duro. Espero que belo também. É dividido nas partes “Homem da pipoca”, “De preto e gorda” e “Com jazz e terapia”. Na primeira, protagonistas masculinos. Na segunda, femininos. A terceira é um outro troço. 5 contos em cada parte, acho que a simetria deixa o livro mais redondo.

NG: Qual é o seu “cânone” literário?

RR: Cânone é um troço complicado, né? Acho que Borges, Machado, Clarice e Guimarães – em prosa – sejam meus clássicos. Graciliano me influencia mais do que eu costumo admitir. O problema de pensar nos meus eleitos no contemporâneo (digamos assim) vem disso: a gente coloca no cânone e logo depois se decepciona de alguma maneira, e isso é chato. Para não me alongar, cito alguns atuais que invejo (julgo a inveja um bom parâmetro de admiração literária): Carrascoza, Marçal Aquino, Hatoum, Noll, Vila-Matas, Lobo Antunes, Zambra. O Zé Luiz Passos, que ganhou o Telecom agora, também. Na poesia tem a Ana Martins Marques, o Eucanaã, o Duda Machado, A Szymborska...

NG: Quando leio os cheiros que perpassam Um peixe para Alda, Petisco, Na cabeceira de Hemingway, Dedicada, Meu exu não dança jazz e Estética de um abandono, lembro do Jung. Segundo ele, o cheiro é o sentido que mais remete à memória. Até que ponto a memória tem a ver com a sua narrativa?

RR: Cheiro é vital na minha literatura. Tem que ter cheiro, gosto, textura, como num filme de Lars von Trier. Talvez a memória, segundo você e Jung, tenha a ver com tudo isso. Acho que a memória da gente é mais no corpo, daquilo que o corpo lembra. Então, na hora da escrita, lembro (ou forjo) como foi sentir algo e uso essa sensação numa cena, num verso, numa descrição. Ou numa simples escolha de verbo ou substantivo. Memória para mim é muito mais nas sensações da coisa do que na coisa em si.

NG: “Com jazz e terapia” parece ser a parte punk do Caroço. Tem osso, exu, insetos e até velhas sem sintaxe. Tudo junto. Começa com um eu poético que faz “da volta sua afirmação” e um narrador que afirma: “a inocência faz parte do caroço.” Faz?

RR: Faz. Acho que deve ser difícil para um caroço quando ele ainda crê na possibilidade de germinação. Não vai germinar. Vai ficar um troço duro e só com tempo ele aceitará essa sua condição. Por isso, jogar com essa inocência, essa esperança, esse “achar que vai”, é minha veia hardcore.

NG: O que deseja um narrador que diz “Liguei os anjos na tomada”?

RR: Um narrador deve desejar uma luz de tamanha claridade que não existe. Um autor só deseja que a frase fique. E eu, que seja li(n)da.



sábado, 25 de janeiro de 2014

Descartes nos trópicos e outra óptica


O texto a seguir foi escrito durante o curso de mestrado em Estudos da Linguagem, na UFRN, e publicado pela editora da UFRRJ no livro Cidade fundida (2013).



I – Introdução

 
Inscrevendo no cenário colonial pernambucano um personagem que jamais tocou o solo nordestino, o romance Catatau do escritor Paulo Leminski (1944 –1989) transporta da civilizada Europa para os trópicos carnavalizados o filósofo René Descartes (1598 – 1650). Numa narrativa fragmentada e experimental, o criador do Discurso do Método e pai do discurso analítico é latinizado como Renatus Cartesius (1). Nesta estetização feita pelo poeta paranaense, em plena ditadura militar do Brasil nos anos setenta, Descartes perde o método e o discurso do bom senso. Apesar dessa perda, o filósofo ganha luneta com lentes, além de um olhar inusitado que mira a margem de outro ângulo.

Para a leitura desta mirada, deste outro ângulo, este ensaio aborda questões relacionadas à produção da linguagem, destacando a importância do signo lingüístico e as múltiplas possibilidades do significante. O texto destaca temas e procedimentos culturais que possuem relações com a forma artística, a desconstrução lógica, a estética barroca e, dentre outros, as questões do olhar e da diferença potencializadas na interação com o outro.

Publicada em 1975, esta primeira obra do autor curitibano despertou a atenção da crítica literária e, embora conste dos manuais literários, é uma obra pouquíssimo lida. Marcou pouca presença no universo acadêmico.  O livro originou-se de um conto enviado ao I concurso de Contos de Paraná, em 1968. Com o título “Descartes com Lentes”, o referido texto ganhou o 1º lugar “mas não levou o prêmio”. Somente em 1987 este fato foi justificado. Segundo o crítico literário Fausto Cunha – um dos cinco membros do júri –, o voto do jurado Léo Gilson Ribeiro para o conto do Leminski foi inválido por questão de erro na identificação do referido texto.

Segundo Leminski, “Catatau já começou sob o signo do equívoco e do qüiproquó”. Para ele, o texto “trazia em si um princípio de crescimento”, “como uma alegoria barroca”. Seguindo tal princípio, o livro expande-se no contexto pernambucano do século dezessete e tem como personagens, além do filósofo René Descartes, dois outros que se escondem na narrativa: Occam – o “monstro que habita as profundezas do texto” (e que o autor suspeita ser “o primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira”) e Artiscewski – o explicador esperado por Cartésio (Descartes).

Assim como a linguagem de Cartésio aponta para deslocamentos de sentidos e direções, quando distanciada do espaço central onde foi produzida, o título da obra de Leminski remete a vários significados. Segundo Leminski, Catatau tem origem “provavelmente onomatopaica”. Em Portugal, significa “uma surra”, “uma determinada carta de baralho” ou “pênis”. No Brasil, “designa tanto uma coisa grande (um catatau de papéis) quanto uma coisa pequena (um nanico, um baixote)”. Outros significados como “zoada”, “discussão”, “espada velha” e expressão tipo “feio como o catatau” (ouvida na Bahia), atestam ser o referido vocábulo um dos mais polissêmicos do idioma.

Além desta polissemia do título, o texto do poeta é um amálgama lingüístico /literário. Sua construção tem por base inúmeros significantes oriundos de várias línguas, como italiano, latim, francês, holandês, tupi, inglês e alemão, além da criação de neologismos (os processos de aglutinação ou afixação e justaposição são constantes). A produção destes neologismos pode ser aferida no uso de expressões as mais inusitadas como, por exemplo, catedrástica galgueja pantedra estratagédia assassignou oxaliás testenenhuma cadástrofe observidão molequemaluco nenhures quálculo depresságio chacadaqualham desdom polisinfônica nenhúmida padremestre nataúde almanhã animalculos enigmagina narravarro rascunheço comovimentam labirinfúndio.

Além dos neologismos criados num idioma cultuado às margens do processo cultural do cidente, múltiplas questões enveredam pelo labirinto textual do Catatau. Sem um roteiro preciso nem uma história linear, o texto trata de si próprio (Occam é considerado o “orixá do texto”) e de questões relacionadas à arte e filosofia. Trata principalmente de temas ligados à literatura e ao processo da criação artística e da crítica literária, envolvendo a tradição cultural, os ritmos do corpo e da escrita, a presença de Deus, o sentido da norma, as relações do sonho com a produção estética, o duplo no espelho, a construção da lógica e do sentido.

Dentre as questões mencionadas, a forma aparenta repetir-se mais que as demais, perpassando todo o texto (“Peço proteção a um poder geométrico”, diz o narrador na página 91). Tamanha preocupação com o exercício da forma é facilmente explicável, não fosse Leminski o poeta conciso e formal que é. Segundo ele, “todo artista é limitado já a priori por uma língua e por um estoque de formas” (cf. o ensaio “Poesia: A Paixão da Linguagem” in Os Sentidos da Paixão).

A história do Catatau mostra, desde o início, que algo novo e radical surgiu no mundo das letras e linguagens, no espaço semiótico da cultura brasileira. Catatau é uma usina de signos (2). Quando do seu lançamento, um convite prometendo coquitel dizia que o autor ficaria “muito feliz” com as presenças dos leitores e convidados. Um belo cartaz com fotografia de um atlético e barbudo Leminski avisava na Curitiba de 1975: PREPAREM-SE. O CATATAU VEM AÍ.

II – Pelos Labirinterários do Catatau

 
 “A história deixou a memória/ em estados interessantes”

Cartésio


A prosa experimental do Catatau foi escrita por Paulo Leminski durante oito anos. Lançada em 1975, a narrativa remete ao contexto histórico e cultural do século XVII e aos 24 anos da experiência holandesa no Brasil. As imagens e linguagens deste livro estetizam as possibilidades políticas e econômicas da margem na qual se situa o país, em relação aos discursos colonizadores produzidos pela visão eurocêntrica daquele contexto.

Para tornar inscritível sua escritura no panorama da historiografia literária, Leminski patrocina duas rupturas: uma com os conceitos de gêneros literários (a sua prosa contém alto teor poético) (3), e outra com a história diacrônica do país (logo ele que era professor de História), invertendo os signos pátrios que narram a história oficial.

Colocando no cenário barroco brasileiro os personagens de sua narrativa, o poeta de Caprichos & Relaxos coloca o criador do Discurso do Método na companhia do príncipe Maurício de Nassau, na tentativa de estabelecimento da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. Aqui chegando, ela conquistou Pernambuco, Maranhão e Sergipe.

A sincronia de Leminski com os holandeses corresponde ao interesse destes por nós. Segundo o poeta, : “... não resta menor dúvida que os holandeses da Companhia, no século XVII, trouxeram para o Brasil instituições mais avançadas que as ibéricas; capitalismo (e não feudalismo cartorial), liberdade de culto e de pensamento, tecnologias superiores.” Neste contexto no qual “fomos da Holanda”, Maurício de Nassau representava os interesses econômicos e culturais da burguesia holandesa no contexto periférico do Brasil colônia. Ele vivia cercado de artistas e sábios (Golijath, Marcgravf, Wagener, Post, Eckhout, etc.). Construiu um observatório astronômico e erigiu Recife – “a primeira cidade da América a ter um traçado arquitetônico regular” (Leminski).

Além dos artistas e sábios, Mauritzius de Brasilianen (cognominação dos holandeses) era amigo de um grande pensador francês que foi seu oficial nas guerras da Europa: René Descartes. É com base nestas informações históricas, que Leminski recria nossa história colonial introduzindo no palácio de Vrijburg (Olinda) o pai do discurso analítico. Como a possibilidade na qual ancorou a colonização holandesa no Brasil, a estadia do filósofo europeu nos hortos e zoológicos tropicais transforma-se também em signo de uma possibilidade. Como conseqüência, torna-se possível a escritura leminskiana. Se Descartes (filósofo, matemático, físico, biólogo, anatomista, católico...) esteve ou não tropicalista é uma questão menor. Importa saber que: se o projeto de Nassau não vingou em Vrijburg (pronuncia-se Fraiberg – a cidade livre), o roteiro narrativo de Leminski tornou-se viável via Descartes em Olinda.

O texto de Paulo Leminski parece sincronizado com o estilo barroco predominante por ocasião da permanência dos holandeses nestas plagas. O próprio autor remete o seu Catatau a “uma alegoria barroca”. Estilo surgido em contraposição ao classicismo da alta Renascença, o Barroco patrocinou uma prosa preocupada com a expressividade, o exagero, as leis “das dobras” e “de curvatura”, as inquietações do corpo e da alma.

Enveredando por vários campos da arte (pintura, escultura, música, poesia), a luminosidade barroca não exclui as tensões das trevas, nem deixa de luzir sobre as massas e corpos de formas as mais esdrúxulas, prolixas. Contanto que tais formas expressem vigor. Para o escritor Jorge Luís Borges, o Barroco é lido como a etapa final da toda arte. Em sintonia com esta leitura, Leminski representa no Catatau a problemática da representação na modernidade, mostrando-se barroco neste sentido borgeano. O fato de romper com a tradição e com os discursos instituídos pelo centro é já indício do que seja moderno. Digo: barroco.
 

III - “Homem Olha Coisas” (Cartésio)

Latinizado Renatus Cartesius, o filósofo René Descartes perde agora o método e o discurso do bom senso. Batizado por Leminski como Cartésio, ele ganha luneta com lentes, além de um outro olhar no qual o espaço periférico ganha nome e inscrição. O projeto do “Discurso do Método” tem como objetivo conduzir bem “a própria razão e procurar verdade nas ciências”. Logo de início proclama a superioridade do “espírito bom” e a necessidade de “aplicá-lo bem”. Dizendo-se nutrido nas Letras (Gramática, História, Poesia, Retórica) (4), Descartes busca ainda encontrar, na sua filosofia, a verdade habitante das paixões da alma e “de toda a natureza do homem”. Tamanha ambição remete a Cartésio e seus “complexos cartesianos”, suas paixões.

Na análise filosófica e cartesiana das paixões, os movimentos dos músculos possuem como causa o encolhimento de um membro o alongamento do seu oposto. Para a compreensão dessa ambigüidade, o filósofo apresenta uma explicação racional: “a única coisa que faz um músculo encolher-se mais do que seu oposto é que recebe, por pouco que seja, mais espírito do cérebro do que o outro”.

Tratando das “redobras da matéria”, o filósofo Gilles Deleuze descarta o cartesianismo. Para o autor de A Dobra, faz-se necessário distinguir os “labirintos” nos quais estão envolvidos o corpo e a alma. Segundo ele, Descartes não conseguiu penetrar tais espaços porque “procurou o segredo do contínuo em percursos retilíneos e o segredo da liberdade em uma retidão da alma”. Dessa forma, o homem do “Método” ignorou a “inclinação da alma” e a “curvatura da matéria”. Além disso, o projeto cartesiano separava o corpo da alma. Postulava um pensamento puro – algo bem diferente das misturas e das transformações que ele descobre nas culturas que foram construídas em terras nordestinas.

Ainda com relação ao estudo de Leibniz e o Barroco em A Dobra, Deleuze credita outro “erro” a Descartes: “acreditar que a distinção real entre partes trazia consigo a separabilidade”. O filósofo francês assegura que “a ausência de coerência ou de coesão” é o que “define um fluido absoluto”. A fluidez cartesiana jamais seria absoluta: ignorando a intuição em prol da razão, não existe possibilidade de qualquer coesão.

Voltemos, pois, ao plano da narrativa. No romance Catatau, o homem que agora olha as coisas como se as visse pela primeira vez não mais possui os rigores da lógica. Nem a completude do sentido. Diz Cartésio: “Óbvio que nem tudo é ambíguo. Eu é que perdi os sentidos. Os cinco vêm diversos, num mesmo universo: nuliverso – contrasenso”. (p. 44). Depois o personagem anuncia: “Sentido que é uma beleza não faz, vibrar sim. ... não tem sentido completo mas uma direção constante.” (p. 151). E complementa mais adiante, frente ao novo mundo que as terras periféricas revelam: “Perdi um punhado de sentidos... Fiquei muito sentido!” (p. 169)

Apesar de reconhecer na perda do sentido a possibilidade de vivenciar a compreensão nos trópicos, Cartésio busca a luz do entendimento e enquanto não a vislumbra indaga: “agora o que vai ser dos sentidos meus cinco?” (p. 162). Atentando-se para uma conceituação que remete ao universo teórico bartheano, vê-se que seria ele agora definido também pela sua imaginação e não apenas pelas idéias; o que resultaria num “homem estrutural”. (5).

Na recomposição deste novo sujeito que habita os trópicos, as margens, o cogito cartesiano – a conceituação lógica do EU, “primeiro conceito” (segundo Deleuze) – cede agora lugar ao conhecimento via intuição. Cartésio ganha outro olhar. Agora, o espanto baliza o abismo. Cartésio questiona-se: “Se nossos superiores disseram que o espelho gera trindade... Como pode haver mais de um Deus se sou só um eu, um sou?” (p. 120) E totalmente esquecido do antigo conceito do EU produzido no espaço central do discurso, ele avisa: “... ai de quem for achado como eu, desleixado do eu, esquecido do eu. Me esqueci, amnésia à toa, mensageiro passageiro: querendo exibir um mínimo de existência, bate asas no vazio, o vazio só com ele, e ele sozinho.” (p. 84)

Nesta solidão compartilhada com plantas e bichos tropicais, parece que o “Método” cartesiano pesa: “Mal posso com meus grilos, como fazer sala a jibóias, e tatus, e preguiças?”, indaga Cartésio, para afirmar depois a nova realidade na qual se instalou: “... indício da irrupção de novas realidades. Que signos abriram as cortinas que separavam meus métodos das tentações dos Deuses destas paragens?” Uma coisa parece clara para Cartésio /Leminski: ambos buscam a liberdade de suas linguagens. (6)

Nesta outra margem habitada por Cartésio, o trânsito livre pelas linguagens permite a formação permanente de novos conceitos. Isso remete a Deleuze: “cada conceito remete a outros conceitos”; o que o leva a concluir que “os conceitos vão pois ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada”. Admitindo “que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou retalhado”, Deleuze relê Descartes atentando para as questões conceituais de tempo e espaço. Para o autor de O que é a Filosofia?, o tempo que Kant introduz no cogito de Descartes é diferente do tempo da “anterioridade” de Platão. (7)

O plano revolucionário traçado por Kant ultrapassa o cartesiano. O seu conceito de tempo “torna-se forma de interioridade” e não remete apenas ao tempo sucessivo como queria Descartes. A conceituação de Kant para o tempo envolve três componentes: sucessão, simultaneidade e permanência. Estes conceitos remetem a Cartésio, cujas noções de tempo e espaço lidos em plagas brasileiras não combinam com o cogito de Descartes.

O Discurso do Método não se sustenta nos trópicos, quando transplantado para o discurso da temporalidade feito por Cartésio. Segundo o personagem, “nada como um ano dentro de um dia, nada como a eternidade num lugar. A noite cai sob o peso da lua, os espaços estelares não estão com sua forma característica”. (p. 90). Esse mesmo discurso diz: “Volta devagar olhando o rio, o mar, o mundo e o lugar comum ao tempo e ao espaço! Chega a tempo, a eternidade para sanar e salvar os encurralados...” (p. 123). Essa temporalidade é ratificada da seguinte maneira: “Convivo um tempo feito por obra e ordem do espírito, e que tempo não é feito, que tempo existe por si só, quanto tempo consegue escafander os galparélagos e as ardimalhas dos experimentos físicos?” (p. 165). Como ouvimos, não são nada lineares e sucessivas as noções de tempos e espaços que figuram no novo discurso de Ranatus Cartésius.


IV - O Outro e Outra Ótica

A nova ótica de Cartésio diferencia-se da ótica criada por Descartes, enquanto disciplina científica – Dioptria (refração da luz) – parte da Física. Perdido em seus “exercícios de exílios”, Cartésio instala-se na idade do ícone (8) e contempla: “A contemplação não dispõe da mínima consideração: a teoria termina com o desfile dos arquétipos...” (p. 162) Reconhece sintático e em letras maiúsculas na primeira pagina do romance: “CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA” (Catatau, p. 13)

Estas novas “imagênesis” não impedem que o filósofo abdique de sua função criadora de elaborar conceitos. E enquanto fuma uma nova er(v)a e lê o seu novo universo utópico, fragmentado, Cartésio parece inverter os princípios do “Método” anterior, cônscio de sua multiplicidade e da pluralidade de formas: “Dou-me a multiplicidade, salvando-me dos ermos de mim: deixe uma margem de circunstâncias para minha segurança”, afirma. E, menos singular e metódico que sugerem os discursos produzidos na metrópole, o personagem prossegue em torno das estruturas:

 

· “Eu assumo várias formas" (p. 19)

· “... peguem a forma da folha: mimeses. E a forma? Coisas da vida! Vinde a mim, geometrias, figuras perfeitas, - Platão, abri o curral de arquétipos e protótipos; Formas geométricas, investi com vossas arestas únicas, ângulos impossíveis, fios invisíveis a olho nu...”  (27)

· “O próprio desta morada é o minguado pensar: uma geometria, o mínimo de discurso”

(p. 29)

· “Sinto em mim as forças e formas deste mundo...” (p.36)

· “Solsuposto, lugar geométrico, emendas suspeitas, o espelho deforma. O estertor do interior é apenas uma onda do mar exterior: o interior, um inferior, - o íntimo, último interno em contorno.” (Catatau, p. 69)

· “A mente tem excessos que o corpo não excetua” (p. 84)

· “Reino ali. Sou a ordem interna, a circulação dos humores e a perfeição geométrica”

(p. 91)
 
· “Peço proteção a um poder geométrico” (p. 91)

· “A crise, não mantenho essas formas, não sustento as curvas!” (p. 92)

· “Insídia e assédio, formas e graus do mesmo fasto” (p. 113)

· “... rompantes e requintes, o continente produzindo conteúdos!” (p. 129)

· “Provar geometricamente que outros existem” (p. 151)

· “A forma, primeiro peso” (p. 157)

· “Substância, toma corpo, pronta para a forma, matéria se relacionando, platônica e puramente” (p. 203)

Aberto às possibilidades e aos novos códigos do cenário periférico para onde foi transplantado, segue Cartésio e suas formas a “lei das dobras”. Ele assume a sua porção barroca, clama por ângulos invisíveis e, de olho no outro, proclama: “Altura altera largura, sei mais de mim que de outros mas tem muitos em mim, que eu não sei”.

Esta preocupação com o outro que o compõe, esta tentativa de abolição do EU (“... a palavra mais forte manda ser a mais fraca das coisas: eu.”), desemboca na possibilidade de vivenciar a leitura formal do outro, como parâmetro para conceituar sua própria existência: “Incompossibilidade: posso ser eu se, e somente se, vir outro eu ser para mim o que para ele serei...”

Tais possibilidades de interação com outrem são compartilhadas com um outro filósofo – Deleuze. Segundo ele, “outrem é um mundo possível, tal como existe num mundo que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala”. Desses componentes, Cartésio mostra-se inteirado ao dizer: “Só com outras consciências retroagindo existe a impostura do eu, lógico e infere-se nos trabalhos da comunicação...”

Para Cartésio, a relação que envolve a diferença nunca é fácil: “Dei de ser outro. Outro é bom mas é muito longe. Último suspiro, o zero da equação. Natura esconde o jogo. Deus, causa, raro aparece. O último que veio, foi o que se sabe”. (p. 59) Apesar da distância e das dificuldades do jogo, Cartésio confirma sua busca no novo cenário que lhe é dado viver, e propõe “voar para dentro do outro”. (p. 197).

O outro esperado por Cartésio, assim como Descartes, também existiu (historicamente falando). Segundo Antonio Risério, “trata-se do fidalgo polonês Kristof Arciszewski, general das tropas holandesas, que foi expulso da Polônia por suas idéias anti-jesuíticas”. Articzewski (a grafia é mutante no texto) é “o explicador”, embora ele seja menos citado e mais esperado que o outro personagem que, com Cartésio, forma a trindade de Catatau: Occam – “uma alegoria do texto”. Articzewski foi oficial de Nassau. Na narrativa tropical leminskiana, ele passa a ser o outro esperado por Cartésio, para “esclarecer dúvidas que atormentam” a vida do filósofo.

Enquanto espera, Cartésio conscientiza-se de que “aboio de bicho busca apoio em outro berro”. (p 22). Parece lembrar que “um galo sozinho não tece manhã” (10). Parece também em sintonia com outra fala de Leminski: “o eco dum berro dum bicho é o berro de outro bicho”. Por fim, ARTYSCHEWSKI (última grafia na última página do Catatau) surge bêbado. O eco do berro de Cartésio chegara a seus ouvidos? Cartésio AUMENTA o telescópio. Não sabe se será visto “com outros olhos ou com os olhos dos outros” (p. 206), nem se terá compreensão: “Bêbado, quem me compreenderá?” Essa é a mais uma dúvida que atormenta sua mente.

Enquanto produzi dúvidas e outras indagações no novo mundo, Cartésio mostra um novo olhar “em prol de uma alteração nas coisas”: “Só pensado não dá para chegar lá: tem que andar, olhar bem para os lados, atirando ao menor movimento, o maior olhar”. (p. 205) Este novo olhar, neste outro mundo, leva Cartésio a cultivar nos jardins tropicais a criação a partir do zero. Como um cientista, ele olha, observa, experimenta. Nada julga. Sua longa espera anuncia uma busca que a cada novo signo torna-se mais intensificada, continua em aberto... E, em meio a bichos e seres da tradição (“Não somos os ossos de Ovídio?”), poderia indagar: Onde é que nós estamos que já nos reconhecemos conhecidos? (10)
 

NOTAS

01 – O filósofo francês René Descartes é presença marcante na obra do poeta paranaense Paulo Leminski. Além de aparecer latinizado de Renatus Cartésius, como personagem principal de Catatau, o autor do Discurso do Método é homenageado com umpoema pelo autor de L avie en close. Publicado em 1991 (edição póstuma), La vie em close é o último livro de Leminski (1944-1989). Discípulo dos jesuítas, Descartes é citado por Leminski em “Quando fomos Holanda” (último texto escrito pelo poeta, e publicado no jornal Nicolau) do seguinte modo: “...Fiz com que ele afundasse na aventura de entender Mundos Novos, como este, ao mesmo tempo que naufraga na própria linguagem com que tenta realizar a experiência de compreender o Brasil”. Assim sendo, Descartes está no 1º livro do poeta paranaense, é tema de uma mini-oração no último livro do poeta e torna-se destaque do último texto escrito por Leminski para um jornal. Segundo o Nicolau, “Leminski deixara o texto cuidadosamente datilografado dentro de um exemplar de Catatau – sua aventura rosajoyceana entre nós, summa e opera máxima”.

02 – Além de ser um dos temas mais constantes do Catatau (“...a arte gráfica cristaliza o manuscrito em arquitetura de signos...”(30) ), o signo aparece com freqüência na obra leminskiana. Na Epístola a Régis diz Paulo: “...o signo é nosso destino/ nossa desgraça e nossa glória/ uma aranha sempre sabe/ que depois desta teia/ virá outra teia e outra teia e outra/ uma aranha não duvida...” Em carta datada de 1977 para Régis Bonvicino, Leminski trata da “guerrilha dos signos”, cita Peirce (inventor da Semiótica – teoria dos signos), e diz da geração de signos: “signos geram signos/ por cissisparidade por hibridismo por mutação”.
 
03 – Seguindo a linha evolutiva da tradição literária traçada por Pe. Antonio Vieira, Gregório de Mattos, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e Haroldo de Campos, dentre outros, Leminski elabora um texto “excêntrico” (Leda Estela S. Boll – bibliotecária responsável pelo fichamento da 2ª edição do Catatau), no qual os conceitos de gêneros literários diluem-se. No Catatau, os signos intercalam-se. Pode-se dizer dele o que escreveu Jakobson acerca das perfeições sígnicas: “os mais perfeitos dos signos” seriam aqueles nos quais o caráter icônico, o caráter indicativo e caráter simbólico estão amalgamados em proporções tão iguais quanto possíveis.

 04 – O Discurso do Método e seu autor são literalmente transplantados para o Catatau. Neste, Leminski parafraseia os dados biográficos de Descartes, do seguinte modo: “Letras me nutriram desde a infância, mamei nos compêndios e me abeberei das noções das nações. Compulsei índices e consultei episódios. Desatei o nó das atas, manuseei manuais e vasculhei tomos. ... enchi de calos a mão fidalga torcendo páginas.” (p. 28)
 
05 – Este homem estaria sintonizado com a “atividade estruturalista” proposta por Roland Barthes. Segundo o teórico francês, consiste tal “atividade” em tomar o real e o decompor. Depois o recompor, produzindo algo novo, diferente.

06 – “Tudo é claro, estou compreendendo. Atenção. Quero a liberdade de minha linguagem. Vire-se. Independência ou silêncio. As núpcias da Essência e da existência. Vir a ser é assim” (Catatau, p. 58)

“Quero ver o que digo feito à margem e imagem do pensado, ouvido no mais difícil e azedo do falado; essa voz me agradifica do que ignoro porque isso sei, com tanta certeza como se nada mais soubesse”. (Catatau, p. 69)
 
07 – “Descartes tinha criado o cogito como conceito, mas expulsado o tempo como “forma de anterioridade” para fazer dele um simples modo de sucessão que remete a criação contínua. Kant reintroduz o tempo no cogito, mas um tempo inteiramente diferente daquele da anterioridade platônica. Criação de conceito. Ele faz do tempo um componente de um novo cogito...” (Gilles Deleuze, O Que é a Filosofia?, p. 45).

08 – Segunda Peirce, o conceito de ÍCONE pertence à nossa experiência passada. Para o filósofo americano, o ícone só existe como uma imagem no espírito. Dentre as tricotomias criadas por Peirce, existe uma que envolve “a relação do signo com seu objeto dinâmico”. Além do ÍCONE, pertencem a tal tricotomia o ÍNDICE e o SÍMBOLO. Leminski parece antenado com as idéias triádicas peirceanas e proclama no Catatau a necessidade de “olhar dentro da trindade e ver o truque”. (p. 177)

09 – 1º verso do poema “Tecendo a Manhã” do livro A Educação Pela Pedra, João Cabral de Melo Neto. O referido livro foi publicado em 1966 com 48 poemas.

10 – Paráfrase composta a partir de um verso do CATATAU: ONDE É QUE ESTAMOS QUE JÁ NÃO RECONHECEMOS OS DESCONHECIDOS? Para Cartésio, reconhecer-se conhecido significa que, apesar de uma “fera” que “urra dando a luz”, apesar do “desvario”, do “desvio”, sua luneta consegue vislumbrar o outro na subida. Se vem bêbado, vai compreendê-lo, vê-lo com outros olhos, não importa. Vale saber que a espera não foi em vão.

 
BIBLIOGRAFIA

CALIXTO, Fabiano e DICK, André. (Org.). A Linha que nunca termina. Pensando Paulo Leminki.  Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

CAMPOS, Haroldo de. “Uma leminskíada Barrocodélica” in Metalinguagem e Outras Metas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

DELEUZE, Gilles. A Dobra – Leibniz e o Barroco. São Paulo: Papirus, 1988.

DELEUZE, Gilles e Guatari, Félix. O Que é a Filosofia. 1ª ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1991.

DESCARTES, René. Discurso do Método/ As Paixões da Alma. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).

GURGEL, Nonato. “De ouvido das antigas: o ensaio como poética da audição” (Prefácio) in Descoordenadas Cartesianas.  Capistrano, Pablo. Natal, Sebo Vermelho, 2001.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 10ª ed. São Paulo: Cultrix, s/d.

LEMINSKI, Paulo. Catatau. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1989.

LEMINSKI, Paulo. Uma Carta Uma Brasa Através. Cartas a Régis Bonvicino. São Paulo: Iluminuras, 1992.

LEMINSKI, Paulo. “Poesia: A Paixão da Linguagem” in Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

LEMINSKI, Paulo. “Quando Fomos Holanda” in Nicolau n 24. Curitiba, Junho,1989.

LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo, Brasiliense, 1991.

PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. Os Pensadores).

RISÉRIO, Antonio. “Catatau: cartesanato” in Catatau. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1989.

SANTAELLA, Lúcia. O Que é Semiótica. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SANTAELLA, Lúcia. “Ilha Eletrônica” in Nicolau nº 24. Curitiba-PR, Junho 1989.

SARTRE, Jean-Paul. A Imaginação. 1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).

 


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

"inquieto e tomado pelos seres"



“Pontuada por imagens triviais, a memória, entre rajadas de coloquialismos, rege a linhagem das confidências.” Com estas palavras, o crítico literário R. Leontino Filho se refere ao livro Dos amores que beiram o meu caminho (2013), de Aluísio Barros de Oliveira, autor potiguar que fala sobre a sua produção literária na entrevista a seguir.

 
Em seu belo prefácio, o também poeta e professor R. Leontino sugere como o outro – e o “logos amoroso em seus meandros” – ajuda a formatar esta poética repleta de formas e eus fragmentados. No diálogo que aciona com a modernidade, Aluísio estetiza multifacetados eus poéticos que rememoram e gostam de confessar. Essa confissão alcança, às vezes, a sua melhor forma quando o sentimento afetivo se dá em sintonia com a mãe natureza, revelando as contradições que movem e afetam os seres amorosos de todas as épocas, assim: “Chuva de sol perigo no ar.”  Ou assim: “uma linha separa o mar do sertão”.

 
Uma das melhores sequências do livro chama-se “Nós temos um passado, meu amor” (leia dois poemas após a entrevista). Nela reconheço a voz do jovem poeta que esboçava, no internato dos anos 70, os versos que comporiam o seu primeiro Pássaro Oculto (1982). Tomara que Aluísio continue colhendo os seus “pássaros”, repassando-os ao leitor. Pássaros-poemas cujo cantar “eletrifica” os caminhos de quem ama e lê.

 

“Sim, nós já fizemos isso antes”

 
NG: Aluísio, quais são os principais títulos da sua produção bibliográfica?

AB: O jornal do colégio não conta, pois os poemas perderam-se no mural. Contam os sentimentos que se instalaram dentro do poeta, desde então. Pássaro Oculto (1981), Canção fora de tom e moda & outros poemas (1986), Anjo Torto (1993) e Não toque, Alice (2001). E aqui e ali, participações em obras coletivas: Folhas avulsas (EDUC, 1992) e a Antologia nacional de poesia, 1998, da Universidade Santa Úrsula, RJ.

NG: O que diferencia Dos amores que beiram... (2013) ou o aproxima dos outros livros de poemas?

AB: Creio que Dos amores que beiram... assinala a insistência pela existência do coro de anjos que desafinam o coro dos contentes.
 
NG: Qual é o seu "cânone" literário particular?  

AB: Os poetas que me inquietam o ser: do mundo, Baudelaire; do Brasil: Mário, Bandeira, Cecilia, Drummond, Vinicius, João Cabral... e Torquato, Leminski, Hilst, Ana, Alice... e Caio F. e Clarice nas suas tantas linhas todas poéticas. Um poeta para cada hora, um verso para cada vela que acendo.
 
NG: Dos amores que beiram... afirma o amor desde o título. Termina com uma risada de rio e uma explosão do corpo escrevente que parecem ratificar a afirmação do título. Pode-se dizer que o sentimento amoroso (ou a sua falta) e a sintaxe dos afetos cotidianos são o combustível da sua escrita?

AB: Sim. Desejei as outras vozes... e elas vieram: uma por uma e recitaram-me os seus versos. Menino, menina, gente grande, gente de muito tempo vivido. E eu vinha junto com todos eles, pois percebia que todos moravam dentro de mim. Um poeta pensa assim. Vive assim: inquieto e tomado pelos seres que saem dos livros lidos, das histórias que escuta e dos muitos beijos que apanha... ou deseja... Creio que é daí que virá o alimento para se escrever poemas. A poesia, essa, sim, vai sempre depender do outro.

NG: Para que serve um livro de poemas no século XXI?

AB: Um livro de poemas é o antídoto que nos livrará dessa maresia corrosiva que o tempo inteiro tenta aniquilar os seres, reificando-os. De pés alados, piso mais leve. E se escuto o outro, Nonato, talvez, pela outridade, possa voar, deixando de ser poeira de chão.

 
dois poemas de Aluísio Barros de Oliveira
 
 
Nós temos um passado, meu amor

Cabelos ao vento,
esse rapaz está querendo
um passado rock'n roll.
(Poentes,
estrelas cadentes,
noites ao relento,
peito aberto,
ninho incerto,
estradas,
escadas sem fim,
pontes sem navios,
meio fio de nada,
meia lua estrelada,
um amante em cada pasto...
um passado rock'n roll).

E eu aqui,
parado no blues, no jazz
ou em noites regadas a pop rock
canções largadas pela metade
que me desanimam o corpo
e não me remetem além do nada que aqui se expõe.
(Poente,
um coração tão escondidinho
e guardado por anjinhos tremeluzentes, neonizados,
além de uma confiança soberba num passado já rotulado
e em estantes sepultado,
são minhas defesas contra qualquer investida em busca
do meu passado rock’n roll).

- Olha pro Céu, meu Amor, veja como ele está rindo!
avisa o Anjo que passa por mim, resenhando sinais.

- Será?

 
Nós temos um passado, meu amor II

Conhecer?
Mire,
Veja.
Aloje-se dentro do que lhe é ofertado e não jogue fora o caroço
sem que todo o bago, aço, asco,
tenha sido retirado:
não há tempo para arrependimentos:
diluído,
é pelo ralo, em noites insones, que o tempo desalmado
escorrega.

 - No final, a saudade nos preencherá!


 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Seridó, Seridós


 
foto: Ailton Medeiros

 
O título deste post é uma homenagem ao livro de Moacy Cirne, que faleceu hoje, e que li na semana passada em Natal. O volume foi editado em 2013, por Abimael Silva, e dele destaco o seguinte trecho que ratifica a identidade urbana e sertaneja do autor seridoense: "...o sertão, faca e bala, existe dentro do sertanejo através de alfenins, alpendres e lonjuras."
 
Professor da UFF, autor de inúmeros títulos relacionados aos quadrinhos e à indústria cultural, o tricolor Moacy contribuiu, através de sua produção estética e acadêmica, para a leitura e a construção do imaginário e da cultura potiguar. Ele inscreveu, principalmente, o re-finado e belo sertão de Caicó, onde nasceu em 1943, saboreando iguarias, lendas e banhos de bica deste país onde, segundo ele, o capitão Marvel viveu aventuras infindas. Raíz e antena em ação, ele foi também um autor representativo das vanguardas poéticas do século XX, sobretudo do poema/processo.
 
No diálogo que empreende com autores e livros, Moacy utiliza, como epígrafe de Seridó, Seridós, uma citação do escritor Oswaldo Lamartine, que considero um dos textos mais belos da literatura sertaneja. Diz o autor de Em alpendres d´Acauã - Conversa com Oswaldo Lamartine de Faria: "Cada vivente tem o seu sertão. Para uns são as terras além do horizonte e para outros, o quintal perdido da infancia ...".