e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Memórias de um professor do PARFOR


                                                         Para a senadora Fátima Bezerra (RN) e as orientandas do PARFOR (RJ)


I – Educação: direito e dever

Dentre os programas educacionais desenvolvidos pela UFRRJ, no século XXI, destaca-se o PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, cuja recepção é bastante afirmativa nesta universidade. Criado em 2010, divulgado principalmente em sites virtuais e plataformas governamentais, o referido programa educativo contempla os profissionais que se encontram em exercício nas escolas públicas estaduais e municipais, mas que não possuem a formação adequada exigida pelo MEC para atuar em sala de aula.
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Num país com alta taxa de evasão escolar e alto índice de analfabetismo, como ainda acontece no Brasil, um programa pedagógico dessa amplitude possui importância fundamental. Desde a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 205, sabemos que a educação é um direito de todos e dever do Estado. Em sintonia com o texto constitucional, o PARFOR é vinculado ao MEC (Ministério da Educação e Cultura) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e, em parceria com as Secretarias estaduais e as Prefeituras municipais, o referido programa contempla as cinco regiões do Brasil. Isso não é pouco. Como estudante de graduação, não lembro nenhum programa educacional dessa amplitude, ao cursar Letras em Caicó-RN, nos anos 80, quando a ditadura militar dava os seus últimos suspiros, graças a deus e a tia Lica que torcia muito por isso.
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O PARFOR possui como público alvo os professores da educação básica, profissionais em exercício nas redes públicas de ensino. Destes professores, torna-se imperativo ressaltar, além das atividades de docência e demais experiências pedagógicas, os diferentes contextos multiculturais e os roteiros existenciais por eles trilhados até chegar ao universo acadêmico. São roteiros inéditos para a entrada no universo acadêmico. A vivência comunitária dessas experiências educacionais, o trânsito por estes contextos multiculturais e seus diferentes roteiros de vida transformam estes profissionais num público diferenciado bastante especial.
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Este público requer dialogismo perene e uma metodologia de ensino conectada às suas demandas e ao mundo contemporâneo. São discentes que avisam, até quando em silêncios raros, que os tempos são outros. Outros ruídos. Vivemos tempos de inclusão. A universidade precisa repensar os seus saberes e a sua extensão. Ela precisa rever os moldes medievais nos quais se baseia, na maioria das vezes, os modelos que possuem por base a repetição, a imitação do igual, da semelhança. Este saber excluía a diferença. Trata-se de um saber que permanecia enclausurado entre muros distantes da comunidade. Saber dos tempos antigos de isolamento.
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Acerca da formação e da qualificação destes professores que se transformam em alunos e nos fazem questionar estes saberes, é importante ressaltar algumas dificuldades enfrentadas por quem deseja ingressar no PARFOR. Ecos do que ouvimos em sala de aula sugerem que o processo seletivo nem sempre é uma etapa simples. O acesso ao programa ainda é pouco incentivado. Parece que algumas prefeituras ou secretarias de educação divulgam pouco, ou sequer divulgam o referido programa. Acontece até de, algumas vezes, estes órgãos governamentais dificultarem o acesso dos professores ao programa.
 
Durante os últimos cinco anos venho lecionando para as turmas deste programa; o que marcou definitivamente a postura profissional e a metodologia que utilizo como professor do curso de Letras. Constato que as cidades de Nova Iguaçu, Japeri, Belford Roxo, Queimados e São João do Miriti se destacam, no PARFOR de Letras, como municípios de onde advém grande parte dos nossos alunos.
 
II – Clarice aos sábados e Cazuza no Museu

 
Coordenado nos cursos de Letras do IM – Instituto Multidisciplinar, com lisura e eficiência pela professora Dra. Lucia Helena, do DL – Departamento de Letras da UFRRJ, o PARFOR é composto, em sua grande maioria, por turmas de corajosas mulheres de cores, comportamentos e etnias bastante diferentes. Embora reconheça a presença produtiva dos homens que retornam à sala de aula, através deste programa, quero registrar aqui a coragem e a determinação feminina frente ao PARFOR. Muitas destas mulheres são mães ou avós que criam, ou criaram filhos e netos, e que voltam à sala de aula como alunas de graduação no universo acadêmico. Isso é maravilhoso e faz diferença.


Outras alunas são solteiras ou sozinhas, mas todas trabalham. Com elas vivifiquei profissionalmente alguns momentos marcantes dos meus trinta anos de magistério em cidades do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro. Pensando nesta trajetória acadêmica, como esquecer, por exemplo, de um programa cujas aulas me fizeram ler Clarice Lispector, aos sábados pela manhã, com uma turma de alunas interessadas na floração da prosa moderna na Baixada Fluminense?

Nenhum professor é o mesmo, depois que ouve da aluna Neide Chatinha que Macabéa não sabia enfeitar a realidade. Nenhum professor continua inalterado depois que outra aluna leciona para ele a forma como a cartomante da novela sugere, para Macabéa, o envolvimento com mulheres. Mestre é quem de repente aprende, viva Guimarães Rosa. Há mais de 20 anos releio A Hora da Estrela, mas nunca havia percebido essa sugestão homossexual por parte da mulher que joga cartas no livro de Clarice.

Além dessas leituras que considero bastante produtivas e até inusitadas, tenho com as turmas do PARFOR as memórias comuns de uma viagem pedagógica. Viajamos para São Paulo, a fim de ver e ouvir Cazuza, cuja vida e obra foram expostas no Museu da Língua Portuguesa em 2013. O mesmo museu que expunha atualmente a vida e a obra do escritor e etnógrafo potiguar Luís da Câmara Cascudo e que, infelizmente, acaba de ser destruído no incêndio deste final de 2015. Museu paulista pegando fogo, convenhamos, parece uma metáfora acesa do momento político e cultural do país em chamas. Mas voltemos ao PARFOR, programa que me fez unir Clarice e Cazuza num mesmo semestre.  Experiência que os une no museu e na Baixada.
 

 

Exímio leitor de ficção, Cazuza amava a prosa interrogativa e meio psicanalítica de Água Viva – livro publicado em 1975 por Clarice Lispector. Desta autora que tinha a nostalgia de não ter nascido bicho, Cazuza musicou trechos da belíssima crônica “Que o deus venha”, texto que compõe o livro póstumo A descoberta do mundo. Cazuza é letra, crônica, verso. Letra pop. O seu som tem a ver com a sensibilidade e a percepção das alunas para quem o PARFOR é um sonho, e por isso não pode acabar. Cazuza celebra o ser e o sonho: “quem tem um sonho não dança”. Seus versos cantam o fedor burguês. Gritam para o país mostrar a sua cara. Sua escrita subjetiva e cortante começa a ser acolhida pela academia como trilha musical da era da redemocratização do Brasil.

III – Mudanças como educador e cidadão

Atuo no PARFOR como orientador de monografias e professor de quatro disciplinas: Teoria da Literatura, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Introdução às Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. No exercício destas disciplinas, algumas figurações certeiras dos seminários e das aulas ficaram gravadas como prêmios. Lembro, com alegria, a leitura comovida que a aluna Cristiane de Souza fez do escritor português Walter Hugo Mãe, demonstrando a sintonia de sua sensibilidade em conexão com os temas e as culturas do seu tempo. Lembro também das perguntas infindas de Débora Alves, repletas de curiosidade e ironia, acerca dos conteúdos literários, e do seu crescimento visível durante as apresentações dos seminários em grupos.

Guardo para sempre a descoberta do mundo feita por Ercília, ao ler a literatura feminina. E como não lembrar os roteiros de leituras traçados pelas duas alunas quem têm Silvana como nome, ambas tendo como objetos de estudo a obra do escritor carioca Lima Barreto? Como esquecer as crônicas sobre saúde, escritas por Scliar, lidas por Noemi, e o nosso projeto gastronômico de construirmos uma padaria num possível terceiro tempo? São fragmentos de falas, imagens e leituras que marcam além da sala de aula. Pequenas epifanias na Baixada fluminense, onde atuo como professor universitário desde o início do milênio quando dava aulas na UNIGRANRIO, em Duque de Caxias. Baixo Baixada onde transito catando fragmentos do saber, da poesia e da fé. Espaço onde vivo momentos de troca e aprendizagem.

Creio que a experiência com as turmas do PARFOR me transformou como professor, como antigo leitor de Paulo Freire e Magda Soares, e até mesmo como cidadão, já que alterou a percepção multicultural e ideológica. Ampliou a sintonia com o magistério hoje, formado que fui nos anos 80, ao final da ditadura militar, quando o contexto político não permitia a possibilidade de um programa produtivo e democrático como este. O PARFOR exigiu de mim, como educador e orientador, uma pluralidade de métodos, discursos e leituras que eu não sabia, diferentes das leituras e metodologias que utilizo, desde 2009, nos cursos regulares de graduação da UFRRJ.

O trabalho acadêmico com estas turmas exigiu principalmente um exercício de agilidade, concisão e clareza que pareceram ampliar as possibilidades profissionais, em sintonia com a fragmentação e a rapidez características deste milênio eletrônico e virtual. Tudo isso na esteira do que propõe o escritor Ítalo Calvino em seu belo livro Seis propostas para o próximo milênio.

IV – A universidade precisa rever seus paradigmas

As aulas para estas turmas intensificaram as leituras em torno dos Estudos Culturais, das teorias culturais de Walter Benjamin e de filósofos afirmativos como Michel Serres. As teorias que sedimentam os Estudos Culturais, sabemos, evidenciam a necessidade de entendermos as conexões entre diferentes culturas, linguagens e contextos, além de preconizarem a releitura da História e dos cânones estéticos e culturais que movem as comunidades e periferias.

Essas teorias sugeridas pelos Estudos Culturais possuem fortes relações com o público alvo do referido programa educacional, ao atestar a importância de atentarmos para o lugar de onde falamos, e ao questionar as funções do intelectual e, de certa forma, as funções do próprio professor, no contexto histórico e cultural contemporâneo. Para que serve um intelectual num universo em crise, dividido em guerras políticas e religiosas, cuja noção de realidade muda a cada instante?

O PARFOR evidencia a necessidade que a universidade possui de mudar. Mudar e repensar os seus currículos e as suas metodologias de ensino milenares. Sabemos que muitos dos paradigmas universitários provêm da Idade Média, quando surgiram as primeiras universidades europeias, como a de Coimbra, no centro de Portugal, cujos prédios seculares são, até hoje, protegidos pela estátua imensa de Dom Diniz, o rei que gostava de agricultura, o antigo poeta das “naus a haver” que Fernando Pessoa canta lindamente em Mensagem.

Sabemos também que alguns conteúdos e saberes universitários são repassados, muitas vezes, sem a problematização sugerida pelo contexto histórico e cultural dos alunos, e por isso são conteúdos de valia discutível para os dias de hoje, quando a vigência do multiculturalismo e os aparatos tecnológicos e virtuais exigem outras formas de percepção e leitura de mundo. Por isso, enquanto professor do PARFOR, vários foram os momentos de questionamento em torno da minha metodologia educacional e demais práticas docentes, como a avaliação, tendo por base o que vivi com estas turmas e a antiga formação acadêmica.  Como lecionar Camões ás 8 h da manhã, numa universidade periférica, enquanto os autos e motos trafegam velozes pela via Dutra?

Embora o PARFOR do curso de Letras não tenha conseguido formar novas turmas para 2016, continuo ligado ao referido programa, como orientador de sete alunas: Débora (Polegarzinha, do Michel Serres), Martha (A paixão segundo GH, de Clarice Lispector), Roselaine (o heterônimo Ricardo Reis), Tatiane (O Fernando Pessoa de António Tabucci), Priscila (o Jesus de Paulo Leminski), Márcia (Desabrigo, de António Fraga) e Noemi (lendas na literatura infantil de Clarice Lispector). 

Estas alunas são orientadas em trabalhos finais de monografia de curso. Elas dão muito trabalho e proporcionam alegrias também. Rs. Enquanto houver demanda, torço para que o PARFOR, além de outros programas educacionais de grande alcance cultural, como o PIBID, seja mantido nas universidades brasileiras pelos órgãos governamentais que regem a nossa educação.

Rio de Janeiro (RJ) e Baía Formosa (RN), 2015