e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Notas para um memorial do Seridó


Jornal O Galo n 4 - Natal, 2016

 

Ó mana, deixe eu ir/ para o sertão de Caicó

                                                                                                                     Villa Lobos e Teca Calazans


Para os professores Maria do Céu e Pe. Tércio

 

I – Chove a cântaros sobre o Seridó

Chove aos pés da Serra de Sant´Ana. Chove na lavoura da memória. Nos quintais sem fecho da infância chove. Ouço, na chuva, a alegria das aguas que correm pelos riachos da fazenda Solidão, terreiros do Arapuá e telhados de Jardim.

 
II – Chove nas trilhas da cultura e da imaginação

Um trem do velho Oeste atravessa os sertões do Seridó. Os trilhos passam por lugares com nomes de árvores e santos, como São João, São José, São Fernando, Timbaúba, Timbaubinha, Ipueira.  Onde se vive a seco passam rios – Piranhas, Espinharas, Sabugi, Seridó, Barra Nova, Acauã...

                                                                                   
III – Chove na lavoura verde forever

Estradas de barro na tarde que cai. Na pele, poeira rural e viço. Drummond segue no cofre do Jeep. Na mala, sementes colhidas no Góis. Na colheita dos grãos, a lição dos homens que irrigam e aram, antes que eu lesse Clarice e a Descoberta do mundo: o mundo também é rato.

 
IV – Avenida Coronel Martiniano – takes

Desde menino curto rádio. Escutava a Rádio Rural de Mossoró e de Caicó. Correspondia-me com uma rádio alemã. Ouvia anúncios da av. Cel. Martiniano, cuja extensão eu imaginava. Sobre ele, o Cel., sei agora: foi prefeito de Caicó no início do século XX.

Hóspede na av. Havia, na av. Cel. Martiniano, uma pensão com móveis de madeira escura e uma luz amarela vindos de outro século. Anos depois, li Dante Milano e Marguerite Youcenar no hotel Vila do Príncipe, nesta mesma av.

Eus do Pessoa na aula de Maria do Céu, no CERES-UFRN, e na estante de madeira adquirida nA Sertaneja da Cel. Martiniano. Nela, a loja de vinis do Baiano, e o cine Rio Branco onde assisti “Guerra dos Guararapes”, “Pra frente Brasil” e “Eles não usam black-tie” – filmes que denunciam conflitos sociais, prisões e torturas em plena ditadura militar. O cine era próximo ao BB.






Referência comercial do Seridó e metro quadrado mais caro da cidade, a antiga rua grande abrigou pensão, estante de livros, vinis, filmes políticos e conta bancaria. Na rua grande eu ouvi, depois vivi, uma belle époque tardia. Época que carrego comigo em meio aos “cenários em ruínas” de outras ruas por que transito.


Continuo atravessando a av. Cel. Martiniano.
 
V – Eclesiastes seridoense

 
Tempo de si - Tempo do Seridó

Tempo do ser - Tempo do sertão

Tempo do Ceres - Tempo dos seres

                                

VI – Escritas do sertão na cultura moderna: o imaginário do fogo

 
“No Rio topei com o calorão de Caicó”, diz Mario de Andrade, em carta de 1929, para Camara Cascudo.

 Cascudo tinha uma rede armada e um charuto aceso

 
VII – Escritas do sertão na cultura moderna: o imaginário de ferro

 
O livro Ferro de Ribeira do Rio Grande do Norte, de Osvaldo Lamartine, abre com um capítulo – “Do amansar do gado primeiro” – que aciona o imaginário de quem lê logo na primeira expressão, assim: “De se imaginar, e dizem os livros...”. O volume é ilustrado com múltiplas imagens dos ferros do sertão potiguar. Um volume de ferros e nomes. Marcas familiares e símbolos pertencentes a proprietários sertanejos. Publicado em 1984, o livro é narrado por uma voz que fareja o animal que logo somos, no “cheiro de couro vivente chamuscado”.

 
Osvaldo tinha um “lenço de chão” com nome de ave: Acauã.

 
VIII – Escritas do sertão na cultura moderna: o imaginário de pedra

 
Caicó: roteiros históricos e poéticos de Muirakytan Macedo

“Primeira casa de pedra”, “O poço de Santana”, “Herói civilizador”,

“Igreja de Santana”, “Cadeia velha”, “Seridó, rio” e a “Serra da formiga”.

 
Muirakytan tem um Mar interior de onde emergem seres infinitos.

 

IX – Lembranças oferecidas ao meu filho Ulisses...

 
...o rio deu grande cheia... Quando apareceu o inverno em Maio eu estava assignando os Bezerros de Ipueira... um inverno geral... deixando os campos em alagadiço...

 
Diário de Laurentino Bezerra de Medeiros Orgs. Ausônio Tércio de Araújo et ali

 
X – Letras: uma poética da viagem

 
Manuais de literatura, relatórios de produção agrícola e diários de bordo. Aprendi a ler no Seridó. Li Pessoa, Borges, Drummond, Quintana e Ana C. Reli Bandeira: “O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?” (Eu não sei dançar). Escrevi cartas e poemas. Reconheci como sinfonia o ser. O Seridó e as rotas de navegação. Viagens e “cadernos terapêuticos” (Ana C) estocados no corpo. Estocados na mente e nos músculos O eu profundo e os outros eus – uma antologia do Fernando Pessoa que eu lia num quarto de hotel em Serra Negra do Norte.

 

XI – Cidadão do Seridó

 
Na década de oitenta recebi dois títulos: cidadão jardinense e cidadão seridoense. Os títulos foram outorgados pela Câmara Municipal de Jardim do Piranhas, e motivados pelo trabalho de extensão rural desenvolvido no Seridó. Figurações dessa ruralidade podem ser lidas no livro miniSertao (2014):

 
Seridó irrigado

Isso aqui era uma terra abandonada

Manuel Cravino, do Góis

O preparo da terra

A derrubada das cercas

A escavação dos sulcos

 

Os canais de alvenaria

A instalação da rede elétrica

A ligação do motor-bomba

 

A divisão dos custos

no custeio dos grãos

O calendário para adubar

 

Milho feijão beterraba                                        

arroz cenoura algodão

na irrigação comunitária

 

das 22 famílias do Góis

em Jardim do Piranhas

no Rio Grande do Norte

 

XII – memórias do sertão no final do século XX

 
Anos 60 – Caraúbas e Umarizal

lírica ferroviária: um trem atravessa o açude

 
Anos 70 – Mossoró, Macaíba e Serra Negra do Norte

épica perene / narrativa vã / drama no alforje

 
Anos 80 – Jardim do Piranhas,  Caicó e Natal

no cofre do Jipe da Emater/ um exemplar de Alguma poesia

 
Anos 90 – Ceará-Mirim, Pureza e Pitangui

Memórias hídricas: o que será de quem mira /a brisa que vale o mel?

 

 

 
 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

 
foto Lorena Lira
 
 
 

O livro Toda Colheita, de Itárcio Ferreira, reúne a obra poética do autor pernambucano, produzida de 1983 até 2015. Autor moderno de filiação drummondiana e com influência bandeiriana (Aos mestres com carinho, Autorretrato, Abro-me ao mundo ... ), o poeta de Carpina-Pe ostenta uma infinda porção romântica. Essa porção pode ser configurada em temas e musas como a morte, a dor, a perda, o medo, e os amores infindos que movem os seus versos brancos e livres repletos de vigor estético e mini roteiros afetivos e biográficos.
A modernidade romântica do autor pode ser também mensurada em sua dicção cética. Dicção de timbres ideológicos e revolucionários que resgatam o olhar do poeta maldito, sujeito deslocado na sociedade e no tempo. Nesse resgate, ele cultua as derivas de Dionísio, o vinho, a música e as mulheres, como podemos aferir em poemas como Cesta de Maçãs: "Fumo e bebo em busca do êxtase".
No poema Onde mora o amor?, o autor dá pistas da sua formação existencial e cultural: "Pirei/ Misturei filosofia com cachaça,/ história com maconha,/ crenças com poesia." Essa  mistura de informações e vivências possibilita a construção de uma poética, cujo vigor pode ser aferido  nos produtivos intertextos com a tradição literária.  Esse vigor pode ser lido também no empenho de estetização Do poeta e sua função, como lemos no livro Apocalipse e outros poemas: "...alimenta com sua poesia/ a fome de justiça/ e do prazer estético. "
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 


sábado, 6 de agosto de 2016

Carlos e Paulo

 
dita o deserto 
nada de ombros 
nem palavras 
por aqui


o que suporta o mundo 
é o riso o resto 
é repetição 
e espera

quarta-feira, 3 de agosto de 2016


Texto escrito p a contracapa do livro Poema / rio - Eli de Araujo. Natal,  Sol negro, 2016

 

A poética de Eli Celso pode ser lida como um mapa. Uma declaração de afeto ao espaço e suas mutações: “a metamorfose/ ruge e fia”. A fiação resulta numa cartografia labiríntica – múltiplos eus, formas e linguagens – que leciona os abismos da pele, estepes da alma e as derivas da “planície.../... os trens/ e suas linhas...”. O mapa arma “asas em casco”. Escala pegadas de multifacetados eus sem aura, ideologia ou carta náutica. Eus que celebram a alegria da carne letrada, a melancolia dos sorrisos de gesso e a felicidade aflita de quem foi nutrido na “ceia das cinzas”. Alguns deles carregam em seus rastros um lirismo irônico: “Ela me convidou a um pequeno apocalipse/ e atalhou caminho por mundos estranhíssimos”. Outros eus são bem humorados, alguns violentos, e tem aqueles que não abrem mão da audição dos mortos: “os clássicos cegam”. Outros sugerem, abismados, o ceticismo e a dicção metafísica deste poeta moderno que leu Borges e Cioran, e atravessou aceso a “rua do coração perdido”. As perdas e os atalhos deste mapa não desdenham temas nobres ou menores – do universo das pulgas ao virtual – num fio memorial que dá cria. Tocado pelo fogo poético, esse fio flagra o verbo pelas veredas do imaginário. Nessa ficcionalização de reminiscências, Eli relê o horizonte polifônico de mitos como Sísifo, Judas, Medusa, Quixote, Lilith, Argos e Fênix. Com trânsito pelas artes, ciências e religiões, o “canibal” atualiza, nas formas do vazio e da superfície do deserto, a urgência de lermos as cartografias contemporâneas.

 

 

terça-feira, 3 de maio de 2016

O planalto Nonada

 
Um 
rabisca 
o rio seco
e problemático
sem afluente
nem terceira margem
 
O outro 
entorna o rio
navega mares 
nada nas curvas 
de Diadorim
e do Buriti

domingo, 3 de abril de 2016

Perder




Poeta,
Perder é uma arte, uma lenha ou um tição no terreiro deserto?
Sei q morrer é foda, sumir é foda e foder tb é. 
Como ja morri, sumi e fodi varias vezes, to achando tudo muito foda:
até encarar a vida e o seu ofício, como reza a lição do Maiakóvski, lembra?
 


 
 
 

Sem trilho é Mon nom


Pára de pronunciar o meu nome com tanto ritmo, 
e de mexer no Arquivo dos Quatro Elementos.
A vida n comporta tanto silêncio e sonho. 
Assim, eu chovo, e a lama de Mariana continua impune.
Esse Bom dia - bem dito - formata outro horizonte. 
Nele germina o ser que caiu do trem em movimento, 
e procura, no lado esquerdo, a curva da estrada.

sábado, 2 de abril de 2016

Hóstia na sacristia



Tiro leite da pedra onde fundas tua igreja.
Dou voz a forma que vai sendo ditada
pelo desejo que dilata o dia

Quando a noite vem
eu chovo sobre a pedra
e, coração ateu, adio sermão

Encantador de Serpentes


Firme no mirante

dilata-se feito um rei


Nao se engasga diante

de nenhum horizonte


Primeiro Deus fez o pequi, depois o Barroco

 

 
Sobe a serra e o tom com a métrica de quem usa arma 
e brasão. Nao recua. Aprendeu, na lama e com o lamento 
do herói morto, que recuar é perder um pedaço da alma.
 
No mirante, dilata-se feito um rei que nao se engasga 
diante de nenhum horizonte. E aqui, neste recanto virtual 
de meu deus, ensina-me coisas terrenas como ratel, cobra naja, 
alfabetização solidária e arraia que mata sucuri com o ferrão...
 
É amigo que mune de humor, queijo suíço e poesia, 
quando a cidade exige signos que os sinais de transito 
sequer anunciam. Sua porção mandraque-seminarista
compra baton e escreve, escreve o sr esta preso.

terça-feira, 29 de março de 2016


O Chico Antônio de Mário de Andrade
 
Para o amigo e poeta Marcus Salgado

                                                                                     Jornal O Galo n 3, Natal, Março de 2016


Ao longe as dunas, o mar verde do Rio Grande do Norte
Mário de Andrade, Café

O coqueiro potiguar Chico Antônio é o personagem luzidio e sensual, inconsciente do seu valor cultural, em Café, último romance de Mário de Andrade

I – Romance “narrado” nas cartas

Quem lê ou estuda a cultura brasileira sabe que o escritor Mário de Andrade (1893 - 1945) adorava cartas. Passados mais de 70 anos da sua morte, sabemos que o escritor paulista – um dos principais inventores do nosso Modernismo – correspondeu-se com grande parte da intelectualidade brasileira, como atesta a publicação de sua correspondência com Carlos Drummond, Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa, Moacir Werneck de Castro, Fernando Sabino e Manuel Bandeira, dentre outros.

Numa carta a Manuel Bandeira em 1929, o autor paulista refere-se ao livro que seria o seu primeiro romance após a publicação de Macunaíma (1928). Diz Mário, nesta carta ao poeta pernambucano, estar escrevendo um “romance Café”, cujas páginas estão “cheias de psicologia e intensa vida”. Doze anos depois, o romance de “psicologia” e “vida” continua sendo “narrado” na correspondência. Numa carta a Moacir Werneck, em 1941, Mário escreve: “... Café ... tem um sentido mais viril e mais geral.”

Café é um livro cuja “virilidade” estetiza o contexto fascista dos anos 20 e 30, quando o país intensifica o projeto urbano-industrial, e inicia o declínio econômico do produto de exportação que intitula o romance. O Estado de SP é o espaço narrativo, sendo a cidade, a “Pauliceia Desvairada”, uma “personagem” relida com ironia e afeto. O autor critica a porção inculta da aristocracia ítalo-paulista, nas primeiras décadas do século XX, quando o centro de São Paulo ainda ostentava ares provincianos.

Trata de viagens, travessias e migrações o romance inacabado A pegada antropológica da narrativa e suas etnias deslocadas atualizam a ficção de Mário, e o seu desejo moderno de dar uma alma para o Brasil. Nas referências às culturas nordestinas e italianas, lemos o desconforto do nordestino na metrópole de múltiplas identidades culturais. Por terem “senso de sonho” e “a pecha de... brigões e instáveis” (p. 85), os nordestinos sofrem quando comparados aos italianos e suas conquistas materiais.

II – Potiguar é personagem principal

Café foi publicado em 2015, setenta anos após a morte do seu autor, pela pesquisadora Tatiana Figueiredo. Dividida em duas partes, a narrativa tem Chico Antônio (1904-1993) como personagem principal que atravessa a primeira parte. O homem que formata e viriliza o romance de Mário de Andrade nasceu em Pedro Velho, município situado no litoral do Rio Grande do Norte, cujo nome homenageia o médico potiguar que fundou o jornal A República, e foi o primeiro governador do Estado.

Mário de Andrade e Câmara Cascudo no RN

Chico e Mário se conheceram na primeira viagem etnográfica do poeta ao RN em 1927, tendo como anfitrião o escritor Câmara Cascudo. Na ficção, o cantador é filho de um homem sem passado que “fuzila com a voz”. Se o pai fuzila, o filho ilumina quando canta cocos tipo "Boi tungão", um dos preferidos de Mário, e "Usina (tango no mango)", gravado pelo grupo pernambucano Mestre Ambrósio.

Os textos publicados nas imprensas potiguar e paulista registram o impacto que o coqueiro causou no cronista. Café é o sexto livro de Mário que tem Chico como personagem. Os outros livros são Os Cocos, Danças Dramáticas do Brasil, Melodias do Boi e Outras Peças, O Turista Aprendiz, que reúne crônicas publicadas no Diário Nacional, e Vida de Cantador. Este último foi escrito, segundo o autor, com “elementos da vida e da psicologia do Chico Antônio de carne e osso que foi meu amigo”.

Mário abre assim o seu Café: “Chico Antônio apenas se percebera um pouco enfarado quando a noite caída não permitiu mais enxergar as paisagens passando pelo trem.” O autor ficcionaliza a chegada do cantador de coco nordestino à metrópole paulista, onde a “boniteza violenta” lembra Recife. Homem forte e aluado, o potiguar “enfarado” é movido pelo ritmo, pela música. Interage com animais e transita na ficção como personagem potente, mas sem “noção de tempo nem de espaço”.

Essa potência inconsciente é lida em fragmentos romanescos que ratificam o “sentido” viril e a “intensa vida”, anunciados pelo epistológrafo nas cartas para Manuel Bandeira e Moacir Werneck. A página 49 de Café dá conta da intensidade vital do personagem, ao estetizar um Chico vitorioso em seus deslocamentos: “Andarilho por delícia, por destino, não possuía noção de tempo nem de espaço. ... tinha uma paciência chegadeira que na sexualidade o levava até as vitórias do macho...”.

O autor celebra os “traços confiantes” do cantador, cujo repertório narra as aventuras de bichos fortes e velozes da fauna sertaneja, como o boi. Inscreve o instrumento musical que acompanha o coqueiro e os “valores de som” do seu canto. Atento aos efeitos do significante linguístico, ele escreve: “... na pancada do ganzá, desintelectualizado, todo ele se fundia numa nebulosa de inconsciência eloquente, em que as próprias palavras não possuíam mais que valores de som” (p. 67).

Embora Café não ambicione explorações linguísticas, o registro destes “valores de som” sugerem a força estética do significante, e os seus efeitos lúdicos no repertório musical de Chico. O romance ratifica escritos antigos nos quais O empalhador de passarinho sugere a inconsciência do artista potiguar: “Não sabe que vale uma dúzia de Carusos, vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. Já são 23 horas e desde as 19 horas que canta...”.

III – Coqueiro: máquina de ritmos

Escrito nas três últimas décadas nas quais Mário viveu, o Café brotou de antigos textos do autor que era crítico de música e pesquisador de teoria musical e de musicoterapia. O coqueiro transformado em personagem do romance, foi descrito em crônica de 1929 no Diário Nacional: “De noite, aparece Chico Antônio, o coqueiro. Simpático e formidável. Noite inesquecível”. O cantador comoveu o crítico moderno que diz: “Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida”.

O corpo de Chico – amolado e aceso – é uma máquina de ritmos. Na memória do cronista, o coqueiro é “esporte” e “sonho”. Sua performance é também “heroísmo”. A esses temas e procedimentos, Mário associa o repertório musical do cantador e sua força nativa, além de criar o verbo relumear para dizer da luz dos seus olhos, vejam:

“Que artista. ... O que faz com o ritmo não se diz! ...Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo. Não se perde uma palavra... ajoelhado pro Boi Tungão, ...contando a briga que teve com o diabo no inferno, numa embolada sem refrão, durada por 10 minutos sem parar. Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais. Não era desse mundo mais...”

Além do canto e da luz de Chico, registrados nesta crônica, Mário celebra, no romance tardio, o corpo jovem do coqueiro norte-rio-grandense e sua sensualidade viril. O Chico romanesco de Mário é feito de ritmo, luz e carne. Repleto de figurações metonímicas do corpo, como atestam os takes de pele-olhos-nariz formatados pelo narrador: “a tez polida brilhando e os incomparáveis olhos meigos, com o nariz sensual mas bem feito, o corpo pesado mas com uma juvenilidade esbelta...” (p. 105).

IV – Eles deixaram algum espaço

Café estetiza, no corpo, a angústia do embolador em trânsito pela cidade. O canto e o andar de Chico conduzem o trio masculino pela travessia urbana. Na noite paulista, o narrador registra o “recato de desaponto” (p. 103) do coqueiro excitado, cuja noitada atribulada expõe a sexualidade do personagem potiguar, e acaba assim: “Ficou indiscretamente excitado, no poder da angústia. Respirou forte, abanando as narinas, como colhendo no ar a direção das fêmeas.” (p. 10).

A prosa moderna de Mário de Andrade expressa a percepção dos seres que deixam para traz algum espaço seja um estado, uma região ou um continente. Nela o autor celebra o canto luzidio e o corpo do cantador potiguar deslocado de sua terra. Estetiza as culturas do interior paulistano. O cotidiano moderno dos ricos pouco civilizados que mudam de classe social, trocam o interior paulista pela capital, onde os saberes e os gestos da cultura são permanentemente atualizados junto com a história.

 Capa do CD Carretilha de Cocos, produzido pela Fundação Hélio Galvão, Natal, 2001.

Café estetiza a imigração no contexto sócio-político do Brasil no entre guerras. Os nordestinos, a exemplo dos imigrantes italianos, transitam por São Paulo em busca de emprego ou possibilidade de ganho. “Andarilho por destino”, Chico Antônio atua no romance com a firmeza de quem canta desde os antigos cadernos, crônicas e livros de Mário de Andrade. Ao reler as nossas identidades culturais, o autor moderno retirou o colete da linguagem beletrista e carnavalizou, nos trópicos, a vida dos seus personagens.

Bibliografia
 
ANDRADE, Mário de. Café. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
____ O Turista Aprendiz. Introdução e notas: Telê Porto Ancora Lopez. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
____ A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
____ Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Introdução e notas: Veríssimo de Melo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
____ Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. Marcos Antônio de Moraes. São Paulo: Edusp/ Instituto de Estudos Brasileiros, 2000.
JARDIM, Eduardo. Eu sou trezentos. Vida e Obra de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.
Nonato Gurgel é autor de miniSertão (poesia) e Luvas na Marginália (ensaio), e professor de Teoria da Literatura e Literatura Universal da UFRRJ.

Rio de Janeiro, 2015/Baía Formosa, 2016