e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 25 de março de 2011

Universidade livre


Artigo publicado em 25/03/2011 no jornal O GLOBO



Marco Lucchesi



Como são amplos os desafios que cercam a universidade pública no Brasil. E todos fascinantes, oriundos da pressão legítima, democrática e inclusiva da sociedade civil. Traduzem o projeto de um país maior, não do ponto de vista geográfico, mas a partir de um rigoroso imperativo moral. Maiores investimentos. Mais alunos. Professores. E um programa de aceleração do crescimento da pesquisa.

Os possíveis ruídos entre o Ministério da Educação e as universidades públicas traduzem o índice de como e de quanto a discussão das metas não se esgota, ao mesmo tempo em que revela uma experiência coral nas altas esferas de decisão, no aumento do número de interlocutores, diante de uma agenda efervescente.

Tudo sob a defesa absolutamente incontornável da autonomia universitária, de que não se pode abrir mão sob qualquer hipótese. Autonomia que produz uma variegada expressão de tendências e desenhos nas universidades públicas, nos campos da pesquisa, ensino e extensão, em todas as regiões do país, promovendo ações sociais positivas e pólos de excelência, de que a Federal do Rio, dentre outras, não perde seu revigorante protagonismo.

Um exemplo notável é o da Faculdade de Letras da UFMG e que consiste num golpe desferido contra a burocracia: a supressão total dos departamentos, criando, em seu lugar, núcleos de estudos, células de pesquisas afins, com alto potencial multiplicador de pesquisa e conhecimento, apostando fortemente no diálogo, na criação permanente de interfaces, aproximações, e sobretudo de belas e sólidas aventuras intelectuais.

A experiência pode não responder bem em outras unidades, seja por demandas específicas de gestão, seja por perfis acadêmicos muito específicos. E, contudo, na Letras da UFMG a qualidade dos trabalhos e a consequente avaliação nos órgãos de fomento subiu de modo substancial.

Para além dos índices, que são sempre secundários, importa refletir o conceito da mudança e indagar o alcance de metas e resultados possíveis.

Primeiramente porque tira da interdisciplinaridade o caráter fantasmal que lhe atribui o professor-burocrata, que lhe declara uma guerra subterrânea, com seu ódio indisfarçável e preguiça contumaz. O discurso politicamente correto defende o domínio interdisciplinar, mas a prática mostra muitas vezes o oposto.

Senhor de um pequeno feudo ou vassalo de um conjunto de disciplinas, diz conhecer melhor - ou dominar - seu pobre território. Nesse caso, a grade curricular cria uma base monolítica, dura e sem janelas, como se as matérias não fossem mais que um complexo de mônadas, irrevogavelmente solitárias. O novo como um insulto. E a curiosidade, um ato de insurgência.

Aos feudatários importa cumprir o ato litúrgico e vazio de uma cultura tabeliã. Produzir memorandos. Selos. Diplomas. Carimbos de marca. E cumprir rigorosamente a procissão interminável de milhares de reuniões, interrompidas, apenas, por vezos cartoriais hierarquicamente superiores. O Homo burocraticus produz formulários e relatórios (on-line ou off-line), num tempo de estudos minguantes e superficiais. Muito cartório para pouco laboratório. E ai de quem olha acima das aduanas disciplinares: estará cometendo um crime de lesa-departamento, seguindo-se um código penal invisível para quem é flagrado cometendo práticas interdisciplinares.

Creio que a Faculdade de Letras da UFMG quebrou núcleos feudais, rompendo laços que prendiam os alunos às disciplinas, como servos da gleba, vistos a partir de um setor ou departamento, de um carimbo ou endereço.

Não se aposta no diletantismo. O específico permanece. Importa apressar a extinção dos que nasceram debaixo do guarda-chuva cartorial, completando um percurso claudicante das alianças litúrgicas de papelórios, longe de qualquer demanda intelectual.

Acredito profundamente na universidade pública e nos seus altos destinos. Por isso rezo para Santa Flexibilidade, padroeira dos estudos interdisciplinares e de uma universidade mais aberta.

sexta-feira, 18 de março de 2011

"Orféu Negro"

Filho de um economista com uma antropóloga professora, ele foi criado entre livros e filmes. Como a mãe, ele é fã do "Orféu Negro" - filme baseado na peça "Orféu da Conceição", de Vinícius de Moraes, e dirigido pelo francês Marcel Camus.

Obama estudou Direito e Ciências Sociais em Harvard e Columbia. Trabalhou como professor. Deseja menos dores e narrativas bélicas na internet e nas bibliotecas da América. Tem sorriso firme e humor suficiente para comparar-se ao vira latas que procurava para a filha em 2008, quando assumiu o cargo como primeiro presidente negro dos Estados Unidos.

Aos 50 anos, a biografia deste Nobel da Paz ostenta uma vida em trânsito. Viveu na Indonésia e no Havaí. Viu, pegou e tirou ondas. Muitas ondas. Ouvido treinado por Males Davis e U2, assume que tragou. Sua imagem negra e afirmativa aciona o exercício da diferença aferido em assertivas tipo "Eu adoro esse cara", referindo-se ao ex-presidente Lula.

Ao contrário de Bush, ele vê além das diferenças raciais na América em crise: "não há um EUA branco e outro negro, e sim os Estados Unidos da América". No Rio de Janeiro, Flamengo e Vasco duelam para entregar suas camisas ao presidente que chega neste sábado. Em português, seu nome conjuga o verbo amar no presente do indicativo e no imperativo: ama.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Tenho algo a te dizer


para R Machado

Este longo romance inglês foi publicado em 2008. Hanif Kureishi, o autor, é também filósofo e roteirista de filmes marcantes da década de 80 como Minha adorável lavanderia. O texto de Hanif tem muito do ritmo das viagens, da oralidade urbana e dos temas típicos e cotidianos dos escritores beats e marginais. Sua prosa é repleta de sexo e cadáveres, amores e aflição, famílias e drogas. Haja desejos e deslocamentos.

Tenho algo a te dizer diz, em 500 páginas, das várias identidades culturais e das múltiplas sensibilidades contemporâneas que nos circundam. O autor é um exímio leitor de contextos. Um pouco mais de concisão na forma e um pouco menos de estridência na linguagem seriam bem vindos. Embora isso não retire a força da narrativa nem a marca do autor, como demonstram estes fragmentos:


- Meus prazeres desapareceram com os meus vícios.
p. 18

- ... todos os lugares estão se tornando Londres agora, a mancha se espalha.
p. 25

- Está ficando louco por causa da respeitabilidade de sua geração. Antes eles eram hippies drogados, agora são diretores. O próprio Blair é uma mistura de escoteiro com a senhora Thatcher.
P. 43

- Henry e sua geração fizeram um bocado para nos educar a respeito da natureza do desejo.
p. 47

- “Navegamos com um cadáver no porão da carga.”
p. 49

- Todo mundo tem o coração despedaçado em algum momento.
p.76

- Análise é, no mínimo, um exercício sobre a desilusão.
p. 77

- O que me compelia era a profundidade do cotidiano, o quanto havia no gesto ou na palavra mais sem sentido.
p. 100

- O rosto das pessoas que vivem tão perto de seu desejo!
p. 149

- ... era um amor triste, do pior tipo, que só aumentava a minha solidão.
p. 157

- ... exibia uma decadência sedutora que indicava que havia recusado poucas experiências...
p. 234

- ... era uma máquina de desejos...
p. 251

- Será que os mortos nunca vão nos deixar em paz?
p. 279







sexta-feira, 4 de março de 2011

Bandeira

Na boca

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

Dorinha meu amor...
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro:
- Na boca! Na boca!


Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930

quarta-feira, 2 de março de 2011

"esqueça o drama na sacola"

Baladas


Nem ao menos Deus por perto
Mil idéias brilham
Mas não molham meu deserto
E já faz tempo
Que eu escuto ladainhas
As minhas, as ondas do verão

Que irão bater na mesma tecla
A mesma porta
Baladas de uma época remota
Não há saídas
Só delírios de outro Midas
Lambendo a tua cruz
É ouro que reluz

Oh, mana
Não vale a pena pagar
Um centavo, um retalho de prazer
Oh, mana
Eu quero é morrer
Bem velhinho, assim, sozinho
Ali, bebendo um vinho
E olhando a bunda de alguém


E apesar de tudo estranho
Tenho inimigos que me amam
Fantasmas
Garçonetes em Pequim
É sempre alguém
Alguém que pensa em mim

Enquanto o palco acende a luz do soul
A banda passa e a bossa-massa o business-show
Romanos
Encharcados de poção
Vivemos de paixão
E alguma grana

Oh, mana
...

Muito além do jardim
Viajo atrás de sombras
Não sei a quem chamar
Mas sei que ela diria ao acordar:
Tudo bem...

- Você me arrasou, meu bem
Qualquer dia desses como as tuas bolas
Mas por hora esqueça o drama na sacola
Não puxe o cobertor
Não tape o sol que resta nessa dor
Foi bom, não durou


Oh, mana...