e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Caymmi (30/04/1914 - 2014)

 
para Nana, trilha

o mar na voz
no olho a onda
o azul em si

o amor chegou


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Macondo, um lugar inventado



Macondo é o nome de uma planta da Colômbia.
Macondo é uma cidade criada pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez em seu celebrado romance Cem anos de solidão (1967).

Em Macondamérica - a paródia em Gabriel Garcia Marquez (Ed. Leviatã, 1993), a profª. e ensaísta Selma Calasans Rodrigues analisa a obra do escritor Gabriel García Marquez por um enfoque paródico que é bastante produtivo. Para realizar sua empreitada, a autora relê, além de outros textos representativos da cultura ocidental, o texto bíblico, as Crônicas da Conquista da América e o mito de Édipo. Segundo ela, esses textos estruturam a narrativa de Cem anos de solidão.

O livro de Selma divide-se em 4 capítulos. No primeiro, “Autoparódia na formação da obra”, a autora analisa as fases da produção de García Marquez, e os procedimentos estéticos e culturais utilizados na construção do seu texto. Destaca principalmente a autoparódia, e os intertextos que o autor mantém com escritores representativos do século XX como Kafka, Hemingway e Faulkner, dentre outros.

“Cem anos de solidão: Ficção das Índias” – o 2º capítulo de Macondamérica – rastreia os textos das Crônicas da Conquista da América no romance. Texto sedutor que lida com questões como “mestiçagem: ideologia e discurso”, este capítulo impulsiona o ritmo da leitura do livro ao analisar as nossas diferenças, nossas origens latinas. Esta parte do livro revela também a clareza como a autora dialoga com outros saberes, além da literatura, como a história, a antropologia, a religião, a sociologia, a estética...

Criticando a discriminação do Positivismo, em relação a excelência das raças puras, ressaltando os fatos que motivaram uma nova visão das Américas (a 1ª guerra, as vanguardas européias, a revolução mexicana...), e atentando para a carnavalização bakhtiniana como estética identificada com o discurso latino-americano, Selma  relaciona alquimia e literatura e ressalta  a nossa “vocação antropofágica” (O personagem José Arcadio, sabemos no final, “foi antropófago”). Além disso, ela explica o porquê do século solitário proposto desde o título. Ainda neste capítulo, a autora discorda de Graciela Maturo, que tenta associar a obra de Gabriel Garcia Marquez a “uma filosofia cristã” e ao discurso alquímico. Diferentemente de Graciela, ela lê o texto de Gabriel Garcia Marquez numa crítica perspectiva alegórica, o que possibilita múltiplas leituras da narrativa.

Revelando ser Cem anos de solidão estruturado a partir do texto bíblico, a autora enumera em “Macondo: do Gênese ao Apocalipse” os mitemas bíblicos que compõem a narrativa de Gabriel Garcia Marquez. Ao ler a inversão paródica operada pelo autor, ela discorda novamente de Graciela Maturo que, num estudo sobre o mito em Garcia Marquez, apresenta posição oposta; isso porque a leitura de Selma utiliza-se do mito enquanto significante lingüístico e não como uma “crença”.

 O 4º e último capítulo – “O mito de Édipo” – traça um histórico desse mito por um prisma antropológico e psicanalítico, através do qual a autora analisa o caráter simbólico da linguagem. Trabalhando com “duplos paródicos”, e estudando as relações entre “matriarcado, machismo e dependência”, a autora analisa a família Buendía como núcleo fechado em si próprio, numa intensa relação incestuosa. Segundo Selma, o mito de Édipo “...cumpre sua função ao aludir a uma crítica global da História do Continente, pois levanta o problema da sua dependência política, do esquecimento fundamental das origens e do fechamento “incestuoso” ao resto do mundo, também não desejável.”

Nesta década na qual o Brasil e a América comemoram datas significativas, relacionadas aos seus descobrimentos, nada mais instigante que a leitura deste texto. Desvelando as nossas origens e diferenças, as formas culturais e as leituras feitas em torno do continente, ele ajuda a construir  a nossa identidade a partir da cor local.

Neste espaço no qual o sujeito busca eternamente respostas para sua solitária condição política e humana, resta celebrar a lição visionária dos conquistadores e suas leituras. Suas mentes foram estimuladas pela leitura – ação a qual este livro de Selma Calasans nos impulsiona, interpretando um continente cuja forma espelha o seu conteúdo.



Uma versão desta resenha foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 23/09/1998
 
 
 

sábado, 12 de abril de 2014

mitologia na metrópole


Uma versão deste texto foi publicada no livro Diásporas e deslocamentos: travessias críticas. Org. Oliveira, Paulo César e Carreira, Shirley de Souza. Rio de Janeiro: FGV, 2014.
 
Resumo: Este ensaio atenta para as formas como o poeta, filósofo e compositor Antonio Cicero relê, através do texto clássico,  a narrativa mítica no início deste milênio. Nesta releitura, o autor desloca-se no tempo e atualiza o imaginário contemporâneo em alguns poemas de A Cidade e os Livros (2002). 
 
 
Palavras-chave: Literatura. Poesia contemporânea. Interdisciplinaridade. Mito. Forma. Imaginário. Antonio Cicero.


Para Beatriz Resende
 

I – Nossa antiga “infância social”

Intitulada “Com sede dessa água”, a primeira versão deste texto foi apresentada na UERJ, no I Simpósio de Estudos Helênicos – Do Clássico ao Contemporâneo – realizado no Rio de Janeiro em 2004. Para construir algumas conexões entre o texto clássico e a poética contemporânea, elegi como objeto de leitura alguns textos de Italo Calvino e Paulo Leminski, dentre outros autores; e embora nesta segunda versão o recorte teórico e intercultural tenha sido ampliado, continuo tendo como referencial a poética de Antonio Cicero.

A produção estética e cultural de Antonio Cicero traduz muito da vitalidade da língua e da produção artística dos autores gregos e latinos. Seja através das canções, dos poemas ou ensaios, o poeta de A Cidade e os Livros (2002) demonstra ser um exímio leitor de Homero, Virgílio, Anacreonte, Ovídio e Heráclito, dentre outros autores representativos da antiguidade clássica. Ao acionar a releitura desses autores canônicos, Cicero dialoga com as formas imaginárias e os roteiros reflexivos que nos legaram os clássicos.

Nessa relação do poeta carioca com a arte clássica, destaca-se a leitura das formas poéticas, das narrativas da mitologia e dos discursos da filosofia. O poeta relê e atualiza fragmentos capitais das formas artísticas e dos discursos míticos construídos por aqueles povos. Sobre eles são marcantes, por exemplo, as leituras feitas por outro filósofo que, assim como Cicero, é também um exímio leitor dos autores clássicos: o economista Karl Marx (1999:123).

Sugere o autor de O Capital que, ao erigir essa arte clássica, ao engendrar a tessitura de seus poemas e narrativas, os autores gregos e latinos vivenciaram – e inscreveram – um estágio da humanidade correspondente à “infância social” da raça humana. A inscrição desse estágio atravessa séculos, e ainda se encontra em vigor num mundo que continua sendo lido e configurado por meio de formas míticas. Formas essas que aparecem, por exemplo, nos vários palcos e telas (de cinema, vídeo, TV, pc ...) nos quais os mitos de Prometeu, Narciso ou Ulisses continuam em cartaz.

“O mito é o nada que é tudo”, diz Fernando Pessoa em Mensagem, abrindo o poema que tem “Ulisses” como título. O poeta moderno sabe que o mito formata o mundo. A modernidade começa, para Leminski, com um “pensar sobre” os mitos. Por isso, a mitologia pode ser lida como um conjunto de formas narrativas, signos culturais e símbolos filosóficos construídos pelos mais diferentes povos no decorrer dos tempos e em múltiplos espaços, na busca da compreensão e do sentido para a existência.

Essa busca existencial visa entender o que não é da ordem do visível ou da razão, resultando numa adição de saberes e ações compostas por elementos físicos, espirituais e intelectuais que dialogam com dados referenciais e históricos repassados de geração a geração. Esse repasse geracional sugere que as mutações e os deslocamentos operados pelos mitos são determinados pela história. Sugere principalmente que o mito surge do processo cultural e coletivo, não sendo, portanto, nenhum produto natural (embora, segundo Rolando Barthes, o mito postule “a imobilidade” da natureza).

A configuração do mundo contemporâneo através dos escritos míticos e clássicos pode também ser aferida por meio de um texto belo como “Latim com gosto de vinho tinto”, do poeta Paulo Leminski (1987:188). Neste texto que serve de posfácio para a sua tradução do Satyricon – narrativa escrita pelo romano Petrônio, e que é considerada o primeiro romance ocidental –, o poeta paranaense diz:

Até as vanguardas do início do século XX, pouca coisa inventamos de novo em relação à civilização greco-latina: recursos de estilo, figuras de linguagem, a distinção entre poesia e prosa, gêneros literários, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar, esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos ombros estamos trepados.  

Para um país jovem como o Brasil, a leitura desse legado estético e daquela “infância social” é imperativa. Ela auxilia na compreensão de nossa história que se constrói levando em conta, dentre outros, o imaginário bélico e autoritário que herdamos desde a colonização européia, passando por golpes e ditaduras dos quais temos dificuldades de rever, compreender, falar.

A leitura dos textos clássicos amplia o diálogo com essa memória social e antiga do país e com este estágio inicial da humanidade. Essa leitura aciona um deslocamento temporal, possibilitando a construção de um intertexto que põe em circulação um corpus interdisciplinar com textos da arte e da cultura, da mitologia, da filosofia... Na viagem que empreende em torno do imaginário grego, esse corpus é lido como uma “máquina” por Paulo Leminski (1998: 62) da seguinte forma:

Literariamente, essa imensa máquina imaginária atravessou viva a idade Média, reacendeu no Renascimento italiano e sobreviveu, impávida, até o romantismo europeu do século XIX, quando começa seu processo de esquecimento. De Homero a Goethe, passando por Dante e Shakespeare, numa linha ininterrupta, durante mais de dois mil anos, o imaginário grego foi o primeiro alimento do poeta ocidental culto, seu “soft-ware” de fantástico, referencial de imagens...

Nesta releitura intertextual operada pelo poeta contemporâneo, esse legado milenar das artes e culturas clássicas é relido enquanto “máquina imaginária” e reflexiva que aciona formas e forças de quem lê e escreve na contemporaneidade. Essa “máquina” impulsiona a produção subjetiva do leitor, elaborando figurações no corpo e na mente, fabricando discursos e formas no espaço. Trata-se de uma releitura potente, cuja força constrói o poema, cuja subjetividade pode erigir um país – “O país das maravilhas” (2002:13), espaço aberto à inscrição e à celebração das coisas no mundo exterior.

Na poética contemporânea criada por Antonio Cicero não ecoa o discurso de nenhum herói grego ou latino. Quando o poeta outorga voz para um herói ou uma divindade, eles parecem encenar, através da oralidade cotidiana do presente, sua porção terrestre no aqui e agora. O poeta dota de linguagem cotidiana, abastece de tonalidade humana aqueles deuses e mitos eternamente estetizados com base numa linguagem olímpica, celebratória.  

O discurso exaltatório ou a narrativa grandiloqüente que durante séculos perdurou no universo das letras e da cultura é rasurado, convertido. Essa conversão lingüística parece sintonizada com o discurso reflexivo do próprio poeta carioca, ao cognominar de esquisito (do vocábulo latino ‘exquisitus’), de requintado, o sujeito que faz arte. Diz Cícero (1995: 175): “... o artista é perverso em relação às versões canônicas, às formas e às ordens, quer dizer, aos mundos positivos do seu tempo”.

Essa “perversão” em relação às formas estéticas pode ser lida na inscrição de alguns procedimentos poéticos e de algumas estratégias subjetivas relacionadas às divindades “devoradas” pelo poeta.  “Perversão” essa que é também sugerida na leitura da mitologia como “o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual” (1972:19).

II – Prometeu e Palomar

Os filhos de Prometeu se rebelam.


Paulo Leminski, Metaformose



Dentre os procedimentos estéticos utilizados por Cicero nessa “devoração” da tradição, destaca-se a releitura da narrativa mítica em sintonia com as formas contemporâneas e o “espírito urbano” (1972:16). Nesse intertexto com as formas clássicas, alguns dos poemas e ensaios do autor sugerem outros modos de leitura e reflexão. Ao deslocar-se para a antiguidade clássica, o poeta contemporâneo dota de visibilidade humana algumas divindades geralmente estetizadas através de um olhar olímpico. Por meio dessa dotação visível, ele propõe ao leitor a visibilidade do seu tempo.

Através dessa perversão óptica, dessa troca de olhares entre seres humanos e divinos, Antonio Cicero constrói uma linguagem leve, sem peso e que atualiza, neste início de milênio, a dicção milenar das narrativas clássicas. Essa permuta óptica e a atualização dessa dicção poética são visíveis e audíveis no poema “O grito” (2002: 33), onde é estetizada a voz de Prometeu.

 Ensina a mitologia que, por ter roubado de Zeus as “sementes do fogo” para trazê-las à terra, Prometeu é acorrentado a um rochedo. Sobre ele é lançada uma águia que devora o seu fígado. Mito que simboliza a revolta do espírito, o titã Prometeu é uma divindade que marca o advento da nossa consciência aqui na terra, e que ilustra a fome do saber humano. Segundo Bachelard (1990: 91), a imagem de Prometeu contribui “para uma poética do humano”.  Atentando para o fogo (“a fricção ou o choque”) e as figurações criadas em torno deste titã e seus símbolos, o autor francês assegura que “o Prometeu poético nos convida a uma estética do humano”.

Desde “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, passando por Goethe e outros românticos como Castro Alves, o mito de Prometeu é um dos mais estetizadas pelos poetas ocidentais. Em nossa moderna historiografia literária isso pode ser ratificado num poema da década de 30, como “Novíssimo Prometeu” (1959:108), de Murilo Mendes, que começa assim: “Eu quis acender o espírito da vida,/ Quis refundir meu próprio molde...”. Mais de meio século depois, o “Prometeu” (1996:162), da poeta Orides Fontela é bem diferente. Publicado em Alba, o poema inicia, sem nenhum desejo, mas urdindo – num verso curto – o código jurídico da vida urbana ao ser natural: “A Lei/ cinzenta – ave de/ rapina...”

Observemos, a seguir, as “imagens prometéicas” criadas por Cicero para atualizar esse mito. Ouçamos o eco do seu grito nas “paisagens urbanas”. Ele silva por entre os ruídos e rumores das “urbes formigantes”. Por entre seres que se deslocam num espaço repleto de “cruzamentos” e contaminações culturais que se chocam, se condicionam e acabam por produzir o texto.


Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo:
E daí? Dias desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões.


Como demonstra o Dicionário dos Símbolos (1993:746), o mito de Prometeu representa, em sua narrativa original, o espírito que busca se igualar à inteligência divina, ou pelo menos retirar dela um pouco de luz e fogo. Alguns leitores sugerem, através de uma mirada de viés sociológico, ver nessa tentativa de retirada de luz e fogo das divindades um espírito marxista, já que seria a raça humana beneficiada, de forma comum, com tais elementos divinos – a luz, o fogo (segundo o tradutor Trajano Vieira (1999: 139) e o poeta Paulo Leminski (1998: 66), é o titã Prometeu – gigante que ousou desafiar a ira divina – o mito predileto, o herói filosófico do pensador Karl Marx).

Voltemos a ouvir “O grito”. Na releitura elaborada pela ótica poética, a ironia e o humor servem de procedimentos para a narrativa recriada pelo autor contemporâneo. Sem drama, ele atualiza essa poética clássica através de uma linguagem cuja oralidade permite a um deus escutar – do interlocutor humano – uma interjeição presente nos nossos discursos cotidianos como “claro”. Além disso, esse deus usa expressões interrogativas que retrucam e desafiam como: “E daí?”

Mais inusitado ainda é perceber a sintonia entre seres eternos e elementos corriqueiros, propondo uma sincronia entre o alto e o baixo, o divino e o humano.  Inusitado também é ouvir uma divindade preocupada com “pacotes de excursões”. Ou seja: trata-se de um deus atualíssimo, um ser que lida com roteiros de viagens e prestações a pagar. Figurinha fácil com a qual deparamos nos finais de semana da Lapa, da Ribeira ou da Augusta.

Ao ouvirmos “O Grito” é quase impossível não escutar o discurso narrativo de Palomar – a personagem de um livro homônimo de Italo Calvino. Ouvinte sensível às ondas e assobios, além de ser um leitor contemplativo das formas exteriores, Palomar transita entre a praia, o jardim, a cidade... Como todo mortal, ele sonha, reflete, imagina. Vai às compras. Descreve, narra e argumenta. Buscando o seu equilíbrio nos “cenários em ruínas” por que transitamos através do humor e da ironia, ele assegura que “até a linguagem dos deuses muda com os séculos”.

Essa transmutação lingüística acionada por Calvino nos remete a maneira como Cicero (2002) assume ler os clássicos. Diz ele para o Jornal do Brasil: “A literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. ...Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa”.

 

III – Com sede dessa água

 

Utilizando-se desse direito de pensar e imaginar a partir da literatura clássica, Cicero relê o vasto arquivo de formas do imaginário e da reflexão produzida pelos gregos e latinos. Exemplo disso é a releitura do mito da “Medusa” (2002:65), cujo poema de título homônimo também faz parte do livro A Cidade e os Livros. Relida pela lente da poesia e da história da cultura, a Esfinge – esse “monstro-pergunta” – metaforiza, segundo Paulo Leminski em sua Metaformose, a imagem do “primeiro filósofo, o ser questionário.”

Na leitura que empreende em torno do imaginário grego, o poeta paranaense diz que toda estátua existente em nosso planeta pode ser vista como alguém que cruzou com a Medusa em algum espaço. Nesse olhar leminskiano, ela – a Medusa – simboliza a paralisação da história, enquanto Perseu anseia por muito mais: ele quer o vôo, o movimento, a mutação. Ele tem sede e se desloca. Sua ação conjuga verbos. Por isso Perseu deseja narrar outra história. É o que Cicero aciona no poema “Medusa”: dá voz a Perseu, esse mito que descende diretamente de Zeus, ilustrando a complexidade da relação pai – filho.

Em “Medusa”, a oralidade clássica encontra-se refletida no ritmo das imagens e no recorte dos temas. Eles produzem uma linguagem carregada de tons mutantes, às vezes rápidos, fragmentados, que refletem muito da subjetividade contemporânea. Por meio desse diálogo entre a forma e a oralidade herdadas da poética clássica, Cicero atualiza, através das estratégias subjetivas do nosso tempo, a relação entre Perseu e a “Medusa”. Mas é bom relembrar que, apesar desse título, quem ganha voz no poema é o sedento filho de Zeus – o próprio Perseu, ouça:


Cortei a cabeça da Medusa
por inveja. Quis eu mesmo o olhar
sem olhos que vê e se recusa
a ser visto e desse modo faz
das demais pessoas pedras: pedras
sim, preciosas, da mais pura água,
onde o olhar mergulha até a medula,
diáfanas, translúcidas, cegas.
Refleti muito, antes. Na verdade
estes meus olhos provêm de carne
de mulher, não do nada imortal
da divindade. Como encarar
com eles a Górgona? Mas mal
pensando assim, lembrei ser mortal
ela também: e seu pai é um deus
do mar mas eu sou filho de Zeus.
Mesmo assim não quis enfrentá-la olhos
nos olhos. Peguei emprestado o espelho
da minha irmã e adentrei o cômodo
da Medusa de soslaio, vendo
tudo por reflexos:
...
Do pescoço
cortado nasceu um cavalo de asas
(é que o deus do mar a engravidara)
e mergulhou no horizonte em fogo
crepuscular. Contam que, no monte
Hélicon, seu coice abriu uma fonte.
A ser não sendo, de madrugada
levanto com sede dessa água.


Segundo Calvino, Perseu é signo da leveza. Para decepar a cabeça da Medusa que nos fita com seus olhos de chumbo, ele precisa calçar sandálias aladas. No início do poema é estetizado o desejo de um olhar que, apesar de ver, vê apenas “por reflexos”. Para cortar a cabeça da deusa, Perseu assume a necessidade de não olhá-la nos olhos, mas através do espelho por meio do qual obtém esses reflexos. Nisso reside a força deste mito: na “recusa da visão direta.”

O desejo refletido nesse olhar – que só consegue ver através de reflexos – parece apontar também para uma outra visão mitológica de Perseu e o seu olhar feminino. Essa visão é sugerida, no poema acima, ao admitir o nosso herói serem os seus olhos provenientes do corpo humano – “de carne/ de mulher”, não do corpo de nenhuma divindade.

Lida por um viés psicanalítico, a medusa aponta para a representação da imagem excessiva da culpa. “Cortei a cabeça da Medusa.” Leia-se: aboli a culpa. Segundo a narrativa clássica, quando a cabeça da Górgona é cortada, nasce um “cavalo de asas”. Esse “cavalo” alado sugere um rico significante que aponta para as idéias de potência, locomoção e deslocamento materializadas na imagem mítica e na forma do próprio poema.

No final do poema, o coice desse cavalo de asas abre “uma fonte” da qual Perseu admite brotar a sua sede. “Com sede dessa água” também vivemos nós, leitores de mitos, poemas, narrativas... Automatizados pelas forças e formas dos sistemas de dominação social que regem os mais diferentes povos e culturas, almejamos freqüentemente as águas míticas e poéticas que batizam novas leituras do mundo. Águas desse imaginário milenar que saciam desde sempre a nossa sede cultural. Nossa infinita sede de formas e linguagens em meio ao caos que diariamente nos solicita.

 

BIBLIOGRAFIA

 
BACHELARD, Gaston. “Prometeu” in Fragmentos de uma poética do fogo. Trad. Norma Telles. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Barthes, Roland. Mitologias. Trad. Rita B e Pedro de Souza. 4ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980.

CALVINO, Ítalo. Palomar. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

____ Por que ler os clássicos. Trad. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

CAMPOS, Haroldo de. e MENDES, Odorico. Os nomes e os navios. Homero, Ilíada, I I. Org. Introdução e notas: Vieira,Trajano. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.

CASSIRER, Ernst. “A Linguagem e o Mito: sua posição na cultura humana” in Linguagem e Mito. Trad. J. Guinsburg e Miriam S. São Paulo: Perspectiva, 1972. 

CICERO, Antonio. A Cidade e os Livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.

____ O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

____ Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2002. (sem título).

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

FONTELA, Orides. Poesia Reunida (1969 – 1996). São Paulo: Cosac Naify/Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

LEMINSKI, Paulo. Metaformose. São Paulo: Iluminuras, 1998.

____ Matsuó Bashô. A Lágrima do Peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983.

____ “Latim com gosto de vinho tinto” (posfácio) in Satyricon. Petrônio. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MENDES, Murilo. Poesias (1925 – 1955). Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.

VIEIRA, Trajano. “Notas & contranotas” in CAMPOS, Haroldo de. e MENDES, Odorico. Os nomes e os navios. Homero, Ilíada, I I. Org. Introdução e notas: Vieira,Trajano. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.