I
Os cus de
Judas foi publicado por Lobo Antunes em 1979. Detentor de vários
prêmios, o romance é uma narrativa feita dos estilhaços de vozes e fragmentos de
imagens lidas pelo autor na guerra de Angola. Um livro escrito de ouvido atento ao “...silêncio carregado de
ruído que África tem quando se cala...” (p. 34).
Como médico e escritor, Antunes viveu nesta
guerra colonial portuguesa o medo e a perda, além da sua falta de
justificativa. Por isso, em seu romance “os homens caem”, morrem. Terminam feito peixes findando nos confins, nos Cus de Judas. Apesar das quedas e mortes, o narrador não esquece a vida, o sonho: “...mas já imaginou o
espaço que sobra para o sonho, não um sonho de mobílias, doméstico, conjugal...
...o sonho à Infante D. Henrique feito de mares desconhecidos, de mostrengos e
de especiarias...” (p. 126).
Além dos sonhos e pesadelos, o livro de Lobo Antunes é repleto de seres
famintos e aflitos. Personagens cujas existências parecem pautadas no ritmo da
“aflição de pedras que respiram”.
As falas estilhaçadas do narrador e os nacos de imagens desta guerra africana
alimentam uma linguagem fragmentada de diferentes tons. Dessa linguagem, ecoa a
dicção nobre – herdada principalmente da literatura do século XIX –, assim como
uma boa taxa da oralidade contemporânea que nos circunda.
II
Essa oralidade, em Os cus de Judas, é bastante sedutora. O autor seduz o ouvido de
quem lê com expressões do tipo “percebe”, “sabe como é’, “escute”, “já
reparou”... Essa sedução lingüística é motivada pela noção de diferença que se inscreve desde a especificidade espacial proposta pela guerra, e tem o outro como parâmetro. Ela parece, essa
sedução, típica de um narrador que assume estar “a fim de se escutar a si próprio nos ouvidos dos outros”.
Neste romance-testemunho, o leitor é bastante
convocado. Ele transita literalmente nos "cenários em ruínas" da
guerra. Adentra suas derivas sem luz, e visita trevas de suas próprias entranhas.
O leitor transita pelos desvios e deslocamentos de uma narrativa atravessada –
toda ela – por dois “ingredientes” explosivos, de ruptura, presentes em toda colonização: cultura e violência.
Antunes escreve uma narrativa bélica, de busca. Nela, dualidades
infindas e atemporais se cruzam: a história e a identidade, amor e guerra, grotesco e sublime, desejo e morte, memória e testemunho. Todos esses
núcleos temáticos ajudam a ler o que lateja na prosa do mundo. Eles podem re-encantar
o homem-pós-guerra que, mesmo não acreditando em si, escreve: “me encanta: posso
ainda considerar-me um homem para mais tarde...”
(p. 125).
Essa descrença em si é destrutiva, cita nomes, é narrada de forma radical, assim:
“Não é em si que não acredito, é em mim, na minha
repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável
necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano,
triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata
amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já
imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados... ...Viu por acaso como
nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos
entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de
troca? A esses, os Camilos Torres, os Guevaras, os Allendes, apressemo-nos a
matá-los porque o seu amor combativo nos incomoda...” (p. 136).