e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Memórias de um professor do PARFOR


                                                         Para a senadora Fátima Bezerra (RN) e as orientandas do PARFOR (RJ)


I – Educação: direito e dever

Dentre os programas educacionais desenvolvidos pela UFRRJ, no século XXI, destaca-se o PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, cuja recepção é bastante afirmativa nesta universidade. Criado em 2010, divulgado principalmente em sites virtuais e plataformas governamentais, o referido programa educativo contempla os profissionais que se encontram em exercício nas escolas públicas estaduais e municipais, mas que não possuem a formação adequada exigida pelo MEC para atuar em sala de aula.
.
 
Num país com alta taxa de evasão escolar e alto índice de analfabetismo, como ainda acontece no Brasil, um programa pedagógico dessa amplitude possui importância fundamental. Desde a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 205, sabemos que a educação é um direito de todos e dever do Estado. Em sintonia com o texto constitucional, o PARFOR é vinculado ao MEC (Ministério da Educação e Cultura) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e, em parceria com as Secretarias estaduais e as Prefeituras municipais, o referido programa contempla as cinco regiões do Brasil. Isso não é pouco. Como estudante de graduação, não lembro nenhum programa educacional dessa amplitude, ao cursar Letras em Caicó-RN, nos anos 80, quando a ditadura militar dava os seus últimos suspiros, graças a deus e a tia Lica que torcia muito por isso.
.
 
O PARFOR possui como público alvo os professores da educação básica, profissionais em exercício nas redes públicas de ensino. Destes professores, torna-se imperativo ressaltar, além das atividades de docência e demais experiências pedagógicas, os diferentes contextos multiculturais e os roteiros existenciais por eles trilhados até chegar ao universo acadêmico. São roteiros inéditos para a entrada no universo acadêmico. A vivência comunitária dessas experiências educacionais, o trânsito por estes contextos multiculturais e seus diferentes roteiros de vida transformam estes profissionais num público diferenciado bastante especial.
 .
 
Este público requer dialogismo perene e uma metodologia de ensino conectada às suas demandas e ao mundo contemporâneo. São discentes que avisam, até quando em silêncios raros, que os tempos são outros. Outros ruídos. Vivemos tempos de inclusão. A universidade precisa repensar os seus saberes e a sua extensão. Ela precisa rever os moldes medievais nos quais se baseia, na maioria das vezes, os modelos que possuem por base a repetição, a imitação do igual, da semelhança. Este saber excluía a diferença. Trata-se de um saber que permanecia enclausurado entre muros distantes da comunidade. Saber dos tempos antigos de isolamento.
.
 
Acerca da formação e da qualificação destes professores que se transformam em alunos e nos fazem questionar estes saberes, é importante ressaltar algumas dificuldades enfrentadas por quem deseja ingressar no PARFOR. Ecos do que ouvimos em sala de aula sugerem que o processo seletivo nem sempre é uma etapa simples. O acesso ao programa ainda é pouco incentivado. Parece que algumas prefeituras ou secretarias de educação divulgam pouco, ou sequer divulgam o referido programa. Acontece até de, algumas vezes, estes órgãos governamentais dificultarem o acesso dos professores ao programa.
 
Durante os últimos cinco anos venho lecionando para as turmas deste programa; o que marcou definitivamente a postura profissional e a metodologia que utilizo como professor do curso de Letras. Constato que as cidades de Nova Iguaçu, Japeri, Belford Roxo, Queimados e São João do Miriti se destacam, no PARFOR de Letras, como municípios de onde advém grande parte dos nossos alunos.
 
II – Clarice aos sábados e Cazuza no Museu

 
Coordenado nos cursos de Letras do IM – Instituto Multidisciplinar, com lisura e eficiência pela professora Dra. Lucia Helena, do DL – Departamento de Letras da UFRRJ, o PARFOR é composto, em sua grande maioria, por turmas de corajosas mulheres de cores, comportamentos e etnias bastante diferentes. Embora reconheça a presença produtiva dos homens que retornam à sala de aula, através deste programa, quero registrar aqui a coragem e a determinação feminina frente ao PARFOR. Muitas destas mulheres são mães ou avós que criam, ou criaram filhos e netos, e que voltam à sala de aula como alunas de graduação no universo acadêmico. Isso é maravilhoso e faz diferença.


Outras alunas são solteiras ou sozinhas, mas todas trabalham. Com elas vivifiquei profissionalmente alguns momentos marcantes dos meus trinta anos de magistério em cidades do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro. Pensando nesta trajetória acadêmica, como esquecer, por exemplo, de um programa cujas aulas me fizeram ler Clarice Lispector, aos sábados pela manhã, com uma turma de alunas interessadas na floração da prosa moderna na Baixada Fluminense?

Nenhum professor é o mesmo, depois que ouve da aluna Neide Chatinha que Macabéa não sabia enfeitar a realidade. Nenhum professor continua inalterado depois que outra aluna leciona para ele a forma como a cartomante da novela sugere, para Macabéa, o envolvimento com mulheres. Mestre é quem de repente aprende, viva Guimarães Rosa. Há mais de 20 anos releio A Hora da Estrela, mas nunca havia percebido essa sugestão homossexual por parte da mulher que joga cartas no livro de Clarice.

Além dessas leituras que considero bastante produtivas e até inusitadas, tenho com as turmas do PARFOR as memórias comuns de uma viagem pedagógica. Viajamos para São Paulo, a fim de ver e ouvir Cazuza, cuja vida e obra foram expostas no Museu da Língua Portuguesa em 2013. O mesmo museu que expunha atualmente a vida e a obra do escritor e etnógrafo potiguar Luís da Câmara Cascudo e que, infelizmente, acaba de ser destruído no incêndio deste final de 2015. Museu paulista pegando fogo, convenhamos, parece uma metáfora acesa do momento político e cultural do país em chamas. Mas voltemos ao PARFOR, programa que me fez unir Clarice e Cazuza num mesmo semestre.  Experiência que os une no museu e na Baixada.
 

 

Exímio leitor de ficção, Cazuza amava a prosa interrogativa e meio psicanalítica de Água Viva – livro publicado em 1975 por Clarice Lispector. Desta autora que tinha a nostalgia de não ter nascido bicho, Cazuza musicou trechos da belíssima crônica “Que o deus venha”, texto que compõe o livro póstumo A descoberta do mundo. Cazuza é letra, crônica, verso. Letra pop. O seu som tem a ver com a sensibilidade e a percepção das alunas para quem o PARFOR é um sonho, e por isso não pode acabar. Cazuza celebra o ser e o sonho: “quem tem um sonho não dança”. Seus versos cantam o fedor burguês. Gritam para o país mostrar a sua cara. Sua escrita subjetiva e cortante começa a ser acolhida pela academia como trilha musical da era da redemocratização do Brasil.

III – Mudanças como educador e cidadão

Atuo no PARFOR como orientador de monografias e professor de quatro disciplinas: Teoria da Literatura, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa e Introdução às Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. No exercício destas disciplinas, algumas figurações certeiras dos seminários e das aulas ficaram gravadas como prêmios. Lembro, com alegria, a leitura comovida que a aluna Cristiane de Souza fez do escritor português Walter Hugo Mãe, demonstrando a sintonia de sua sensibilidade em conexão com os temas e as culturas do seu tempo. Lembro também das perguntas infindas de Débora Alves, repletas de curiosidade e ironia, acerca dos conteúdos literários, e do seu crescimento visível durante as apresentações dos seminários em grupos.

Guardo para sempre a descoberta do mundo feita por Ercília, ao ler a literatura feminina. E como não lembrar os roteiros de leituras traçados pelas duas alunas quem têm Silvana como nome, ambas tendo como objetos de estudo a obra do escritor carioca Lima Barreto? Como esquecer as crônicas sobre saúde, escritas por Scliar, lidas por Noemi, e o nosso projeto gastronômico de construirmos uma padaria num possível terceiro tempo? São fragmentos de falas, imagens e leituras que marcam além da sala de aula. Pequenas epifanias na Baixada fluminense, onde atuo como professor universitário desde o início do milênio quando dava aulas na UNIGRANRIO, em Duque de Caxias. Baixo Baixada onde transito catando fragmentos do saber, da poesia e da fé. Espaço onde vivo momentos de troca e aprendizagem.

Creio que a experiência com as turmas do PARFOR me transformou como professor, como antigo leitor de Paulo Freire e Magda Soares, e até mesmo como cidadão, já que alterou a percepção multicultural e ideológica. Ampliou a sintonia com o magistério hoje, formado que fui nos anos 80, ao final da ditadura militar, quando o contexto político não permitia a possibilidade de um programa produtivo e democrático como este. O PARFOR exigiu de mim, como educador e orientador, uma pluralidade de métodos, discursos e leituras que eu não sabia, diferentes das leituras e metodologias que utilizo, desde 2009, nos cursos regulares de graduação da UFRRJ.

O trabalho acadêmico com estas turmas exigiu principalmente um exercício de agilidade, concisão e clareza que pareceram ampliar as possibilidades profissionais, em sintonia com a fragmentação e a rapidez características deste milênio eletrônico e virtual. Tudo isso na esteira do que propõe o escritor Ítalo Calvino em seu belo livro Seis propostas para o próximo milênio.

IV – A universidade precisa rever seus paradigmas

As aulas para estas turmas intensificaram as leituras em torno dos Estudos Culturais, das teorias culturais de Walter Benjamin e de filósofos afirmativos como Michel Serres. As teorias que sedimentam os Estudos Culturais, sabemos, evidenciam a necessidade de entendermos as conexões entre diferentes culturas, linguagens e contextos, além de preconizarem a releitura da História e dos cânones estéticos e culturais que movem as comunidades e periferias.

Essas teorias sugeridas pelos Estudos Culturais possuem fortes relações com o público alvo do referido programa educacional, ao atestar a importância de atentarmos para o lugar de onde falamos, e ao questionar as funções do intelectual e, de certa forma, as funções do próprio professor, no contexto histórico e cultural contemporâneo. Para que serve um intelectual num universo em crise, dividido em guerras políticas e religiosas, cuja noção de realidade muda a cada instante?

O PARFOR evidencia a necessidade que a universidade possui de mudar. Mudar e repensar os seus currículos e as suas metodologias de ensino milenares. Sabemos que muitos dos paradigmas universitários provêm da Idade Média, quando surgiram as primeiras universidades europeias, como a de Coimbra, no centro de Portugal, cujos prédios seculares são, até hoje, protegidos pela estátua imensa de Dom Diniz, o rei que gostava de agricultura, o antigo poeta das “naus a haver” que Fernando Pessoa canta lindamente em Mensagem.

Sabemos também que alguns conteúdos e saberes universitários são repassados, muitas vezes, sem a problematização sugerida pelo contexto histórico e cultural dos alunos, e por isso são conteúdos de valia discutível para os dias de hoje, quando a vigência do multiculturalismo e os aparatos tecnológicos e virtuais exigem outras formas de percepção e leitura de mundo. Por isso, enquanto professor do PARFOR, vários foram os momentos de questionamento em torno da minha metodologia educacional e demais práticas docentes, como a avaliação, tendo por base o que vivi com estas turmas e a antiga formação acadêmica.  Como lecionar Camões ás 8 h da manhã, numa universidade periférica, enquanto os autos e motos trafegam velozes pela via Dutra?

Embora o PARFOR do curso de Letras não tenha conseguido formar novas turmas para 2016, continuo ligado ao referido programa, como orientador de sete alunas: Débora (Polegarzinha, do Michel Serres), Martha (A paixão segundo GH, de Clarice Lispector), Roselaine (o heterônimo Ricardo Reis), Tatiane (O Fernando Pessoa de António Tabucci), Priscila (o Jesus de Paulo Leminski), Márcia (Desabrigo, de António Fraga) e Noemi (lendas na literatura infantil de Clarice Lispector). 

Estas alunas são orientadas em trabalhos finais de monografia de curso. Elas dão muito trabalho e proporcionam alegrias também. Rs. Enquanto houver demanda, torço para que o PARFOR, além de outros programas educacionais de grande alcance cultural, como o PIBID, seja mantido nas universidades brasileiras pelos órgãos governamentais que regem a nossa educação.

Rio de Janeiro (RJ) e Baía Formosa (RN), 2015
 
 
 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

chega



embora eu saiba
que amar dá trabalho
e beleza pode doer
não quer mais ruminar
ruínas da dor



 

sábado, 14 de novembro de 2015

Carta aos leitores de Borges na Rural


Para as alunas de Literatura Universal
 
 
 
Walquíria,
 
Sua pergunta é pertinente, mas não é fácil de responder.
Resumindo: haveria um autor equivalente a Jorge Luís Borges na Literatura Brasileira?
 
Leyla Perrone-Moisés escreveu um ensaio intitulado "Machado de Assis e Borges: nacionalismo e cor local". Neste texto publicado em Vira e mexe, nacionalismo, a autora trabalha os temas apontados no título do referido ensaio, e afirma que Machado "teria  apreciado a ironia borgeana." Regina Zilberman também comparou os dois autores no texto "O leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges", publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada.

O crítico uruguaio Emir Monegal, um dos melhores leitores de Borges, o aproxima do escritor Mário de Andrade, através das vanguardas; acho ótimo, mas quando  comparo o requinte da poética do Borges, esse parece ser um dos aspectos que o tornam superior à produção poética do Mário.  Apesar disso, o escritor paulista escreveu Macunaíma e  livros fundamentais da nossa cultura, como os diários de O Turista Aprendiz. Borges, um exímio representante das chamadas Altas Literaturas, nunca escreveu um romance ou diário. Sugeria ver como formas menores estes produtos culturais que ascenderam com a burguesia mercantilista do século XVII.
 
Lembrando que Oswaldo  de Andrade não alimenta o mito da pátria,  a ensaísta Ilza Matias o relaciona a Borges, lendo em ambos um "alegre cinismo". A autora lê também, nos dois autores, uma certa indiferença ao cânone literário e às convenções sociais. Vale aqui lembrar o preço pago por ambos os autores por esse "cinismo" e por essa "indiferença": o autor de Pau Brasil chegou a ser banido das antologias nacionais; o escritor argentino nunca recebeu o Prêmio Nobel que os leitores, a crítica e a academia reconhecem como merecido.

Além do carioca Machado de Assis e dos dois Andrades paulistas, um autor gaúcho é comparado ao escritor argentino.  Essa comparação pode ser aferida no ensaio "Dois leitores da Gauchesca: Jorge Luís Borges e Simões Lopes Neto", da ensaísta gaúcha Tânia Franco Carvalhal.
 
Se tiver que citar um autor que se aproxima, e que é objeto de estudos relacionados ao Borges, eu citaria o Guimarães Rosa, cujo livro Tutaméia você leu muito bem no seminário de Teoria da Literatura I. Creio que o repertório cultural, os procedimentos estéticos e o rigor artístico da ficção de Rosa estão à altura da escrita borgeana, e podem ser comparados aos grandes autores da Literatura Universal.

A ensaísta Walnice Galvão, exímia leitora de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, é autora de um ensaio intitulado "Demiurgos: Borges e Clarice Lispector". Neste texto publicado em Desconversa (1998), ela faz referências aos contos de Ficções, do autor argentino, e aos contos de Laços de família e A Legião Estrangeira, de Clarice. É bom lembrar que a autora de A Descoberta do Mundo (1984) citava Borges em textos de sua coluna no Jornal do Brasil, coligidos depois neste livro póstumo .

Penso também que há algo de Drummond no Borges, ou do Borges no Drummond, mas não sei muito bem o que é, além do fato de ambos parecerem modestos e terem atravessado oito décadas do século XX. Não lembro agora de nenhum estudo comparando os dois autores, mas é visível como os procedimentos da memória e o olhar irônico, dentre outros, os aproxima. Mais: numa entrevista feita por Leo Gilson Ribeiro, para a revista Veja, em 1970, Borges fala de um prêmio que recebera no Brasil e diz: "o prêmio da Bienal me veio como um mensageiro novo: do país de Carlos Drummond de Andrade e Euclides da Cunha."

Euclides aparece em outros textos. Na belíssima entrevista concedida ao jornalista Roberto D"avila, para a TV Manchete, em 1985, e publicada no livro Borges no Brasil (org. Roberto Schwartz), o autor argentino indaga: "... quem sou eu para ombrear-me a Euclides da Cunha, Camões ou Montaigne?"  
 
Borges viveu dentro de uma biblioteca de ilimitados livros escritos em vários idiomas. Lia a biblioteca como metáfora do universo. Escrever e pensar eram formas de viver para quem leu a metafísica como "um ramo da literatura fantástica". No fim da vida, Borges casou novamente, andou de balão, e viajou para receber os prêmios que o mundo outorgou por ele ter suprido, com sua poética, uma das principais carências da América Latina: as fomes de formas, roteiros e linguagens.
 
A imagem de Borges personifica a metáfora da própria Literatura.  Ele insinuava viver em meio a sombras, mas dentro de uma neblina luminosa. Citava de cor os clássicos da tradição – Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Kafka... Insinuava conhecer muito pouco a Literatura Brasileira. Mas lembrava um fato ocorrido em 1914, um cego declamando "Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá". A evocação, sabemos, remete ao poema "Canção do Exílio", escrito pelo poeta romântico Gonçalves Dias quando estudava Direito em Coimbra no século XIX. 
 
Voltemos à sua pergunta e aos autores brasileiros: Mário de Andrade, Oswaldo de Andrade, Simões Lopes Neto, Euclides da Cunha, Carlos Drummond, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Gonçalves Dias. Veja quem você prefere e por quê.

O que poucos leitores sabem é que Borges cita o Brasil, o escritor Euclides da Cunha e o beato António Conselheiro em mais de um texto de Ficções - sua obra prima de 1944. Um dia desejo escrever um texto chamado Os Sertões de Borges.

Abraço
 
p.s. Lembrei que o professor gaúcho Luís Augusto Fischer escreveu o livro Machado e Borges.

 
 
 
 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cascudo no Museu da Língua


LUIZA FECAROTTA
Crítica da Folha

14/10/2015  02h00


Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) foi um sujeito erudito que encheu cadernos de notas, observou os costumes do brasileiro sem trégua, ouviu escravos de "inesgotáveis recordações", leu vagarosamente receitas escritas à mão.

Considerado um dos mais importantes pesquisadores da cultura popular brasileira – e por que diabos tão restrito ao universo acadêmico? –, Cascudo vira personagem central de duas grandes ações culturais, uma exposição e uma série documental de TV.

A mostra "O Tempo e Eu (e Vc)" homenageia sua vida e obra a partir de terça (20), no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. "O grande legado de Cascudo foi registrar a vida das pessoas e valorizar brasis invisíveis", diz o curador Gustavo Wanderley.

Em 600 m2, arma-se um passeio sinestésico pela infância do autor, pelas tradições orais ligadas às lendas e aos mitos (eis o saci, o lobisomem), pelos gestos (o aperto de mãos, o abraçar), pelas festas (e o corpo do brasileiro que "não precisou aprender a dançar"), pelas fés.

E, bem, sempre seduzido pela alimentação, ainda caminha-se pelas práticas culinárias. Já dizia ele, "o alimento contém substâncias imponderáveis e decisivas para o espírito, a alegria, a disposição criadora, o bom humor".

O módulo "todo trabalho do homem é por sua boca" parte da obra "A História da Alimentação no Brasil", um calhamaço de quase mil páginas reconhecido como referência. Foi nesse tratado que Cascudo esmiuçou a contribuição que os índios, os portugueses e os africanos deram à formação da nossa cozinha nacional.

"Na época, foi bastante inovador. Cascudo tentou entender como essas três grandes etnias ajudaram a definir o paladar brasileiro", diz João Luiz Maximo, historiador e também curador do módulo.

É essa mesma obra, calcada na miscigenação alimentar, que o cineasta paulistano Eugênio Puppo toma emprestada para dar caldo a uma série documental para TV, cuja produção começa em fevereiro e tem lançamento previsto para 2017.

"Cascudo foge à regra dos grandes intelectuais. Ele era um bom prosador, ia à feira, conversava com as pessoas. É esse clima do dia a dia do brasileiro que queremos trazer na série", diz Puppo.

 
SUBSTITUIR, INCORPORAR
 
 
Na mostra no Museu da Língua Portuguesa, um cenário traz 126 tábuas de madeira a girar no próprio eixo, nas quais são apresentadas imagens e trechos do "cardápio indígena", da "ementa portuguesa" e da "dieta africana".

Entra-se em contato, por exemplo, com rituais indígenas que celebram bebidas derivadas da mandioca, raiz que recebeu "registro laudatório de todos os cronistas" desde o início da posse da terra.

"Também vamos tratar de dois conceitos caros, a substituição e a incorporação", diz Gustavo Wanderley.

Para ilustrá-los, toma-se como modelo a doçaria portuguesa, já centenária quando o açúcar apareceu, antes calcada no mel de abelhas à semelhança do que se fazia na Antiguidade clássica.

No contato com as frutas tropicais, troca-se o marmelo pela goiaba, por exemplo, mas o modo de cocção, nos tachos de cobre, permanece.
Houve rápida incorporação de costumes portugueses –ainda tão contemporâneos–, como "oferecer alimentos na alegria do convívio, comer juntos", registrou Cascudo.

"O português sempre fez caldos e cozidos. Aqui, ele encontra a farinha de mandioca, feita com tecnologia indígena e a incorpora nos preparos. Nasce, assim, o pirão", explica o curador.

Para Mara Salles, uma das mais icônicas cozinheiras da culinária nacional em São Paulo, a obra de Cascudo propiciou "um olhar mais aprofundado sobre o homem e sobre o ambiente". "Eu entrei na gastronomia um pouco pela antropologia, um pouco pela farra. E sempre fui meio cerebral com a comida."

Roberta Sudbrack, da casa homônima no Rio, valoriza ingredientes vulgarizados do nosso dia a dia, e, assim, busca estar em contato com as cozinheiras anônimas do Brasil, com as quais mantém identidade, tal qual Cascudo fez. "Sua obra é fundamental para qualquer um de nós porque até hoje nos identifica."

Oxalá seu trabalho possa, enfim, estar mais próximo dos brasileiros, e que os brasileiros, portanto, possam se conhecer melhor.

O TEMPO E EU (E VC)
QUANDO estreia ter. (20); de ter. a dom., das 10h às 18h (bilheteria fecha as 17h); até 14/02/2016
ONDE Museu da Língua Portuguesa, praça da Luz, s/nº, tel. (11) 3322-0080
QUANTO R$ 6 (grátis aos sábados) 
 
 
 
 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Oriente-se


UFRRJ – IM – DL – CURSO DE LETRAS
LOCAL E DATA: Campus de Nova Iguaçu, 13/11/15

Oriente-se
A escrita monográfica como inscrição acadêmica

Minicurso com certificado - 30 vagas
Prof. Nonato Gurgel
Inscrições: Mariana Figueiredo 


Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
...
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação
...
Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação ...
Oriente, Gilberto Gil


 

domingo, 4 de outubro de 2015

Uma Arte

poema de Elizabeth Bishop por Antônio Abujamra

Bishop e Ana C


Para os alunos de Teoria da Literatura
que estão lendo O Iceberg Imaginário e Poética

 
Bem vinda a esta casa é o título do belo documentário de Bárbara Hammer sobre a poeta americana Elizabeth Bishop, que morou no Rio de Janeiro, Petrópolis e Ouro Preto durante quase 20 anos. Exibido no Festival do Rio 2015, o filme pode ser visto em cinemas da zona sul até o dia 12/10.
 
Desde que saí do cinema, não paro de pensar em Ana C. No livro A teus pés, ela diz em "Travelling": Do alto da serra de Petrópolis,/ com um chapéu de ponta e um regador,/ Elizabeth reconfirmava, "Perder/ é mais fácil que se pensa".  Neste simulacro, feito a partir do poema "Uma Arte",  de Bishop, "a voz rascante" da modernidade ratifica a falta de mistério que há na "arte" de perder. 
 
Este texto que fala da perda das "três casas excelentes" encerra o documentário que revela o encontro da poeta com Clarice Lispector. "Uma Arte" encerra também o filme Flores Raras, de Bruno Barreto, e faz parte da peça Um porto para Elizabeth Bishop, de Martha Góes. Os dois filmes e a peça são belas leituras em torno da autora que traduziu, para o inglês, poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond, dentre outros autores modernos do Brasil.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

I Seminário sobre representação animal na Literatura


Nesta sexta-feira, dia 02, participo desta mesa no evento que começa hoje na UERJ:


Comunicações (13) – Moderadora: Miriam Lourdes Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Igraínne B. Marques (UERJ): “O dragão como figura e símbolo imaginário na Idade Média e na atualidade”

Liège Copstein (URI -FW): “Metáfora animal em Disgrace, de J.M. Coetzee J.M.

Miriam Lourdes Impellizieri (UERJ) e Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ): “Os livros das bestas: entre o universo medieval e o fantástico contemporâneo”

Raimundo Nonato Gurgel Soares (UFRRJ): “Maracanã de roçado: bichos escritos nas cartas de Câmara Cascudo”

domingo, 27 de setembro de 2015

Gonaçalo Tavares

 

Uma viagem à índia: melancolia contemporânea (um itinerário)
 
Para o poeta João Batista de Moraes
 

Com alguma sombra de Pessoa – maior ainda a
de Whitman – mas sem lágrimas recalcadas.

Eduardo Lourenço, Uma viagem no coração do caos
 

... a biografia de um país
passa também pela gastronomia profunda: o que é um povo
senão o que come?

Um estrangeiro é sempre uma novidade, tanto verbal
como no número de hábitos que traz para a paisagem.

Um homem que fale demasiado/ é surdo

Foi noite e choveu, agora está sol e amanhece.

O que é um dia senão um jogo de dados/ entre vontade e matéria?

Um homem apaixonado é um excesso/ de concentração

Paris tem uma paisagem propensa à memória; / cada cidade privilegia certas áreas do cérebro...

E sabendo-se que os sonhos misturam vários estilos literários – p. 186

Em sítios de calor os abraços de conforto/ não são assim tão importantes – p. 187

Como alguém que acelera para não ver o mundo – p. 195

Só ouço quem me diz Avança,/ eis a minha surdez... – p. 1999

Porque nem em Paris é sempre Dezembro,/ nem no Brasil a rotação pára sempre no mês quente. – p. 204

... percebendo então o que falta/ aos mapas: o cheiro – p. 205

No centro de tua queda/ se erguerá a tua tranquilidade... p. 208

O rosto/ é manuscrito pelo punho dos inimigos/ – e esta é a primeira parte da primeira aprendizagem - p. 215

Os cães não tiveram/ os Gregos como antepassados – p. 218

... mas até as doenças/ querem ser contemporâneas – p. 233

A luz do sol – é bom relembrar o óbvio –,
não está no mundo para prestar bons serviços à literatura. p. 235

O poder é inimigo dos versos, eis o facto. p. 239

Ninguém mente aos gritos, de longe. p. 243

de longe, a maior invenção dos Homens/ é o beijo – p. 253

Cada morte diz qual o bocado do corpo/ que afinal deverias ter defendido – p. 270

Ninguém varre o que ama, e a natureza está a varrer/ a cidade – p. 274

No meio dos piores momentos prepara-se o/ dia de sol e o cheiro mínimo das ervas verdes – p. 276

Os caminhos aumentam/ quando a cama é má – p. 298

O Ganges é a biografia,/ em líquido, de todas as cidades próximas – p. 298

Bloom sabia que só existe idade madura no corpo que/ atravessou uma doença ou a compreendeu – p. 308

Um insulto/ ou uma leve indelicadeza sintática/ podem estragar um/ dia biológico e compacto – p. 313

No azul deveremos enterrar a nossa estaca – p. 314

Vento tão lento que parede um provérbio – p. 382

No ócio o rosto desembaraça-se e sozinho ganha/ um estilo individual; portanto: perigoso – p. 388

Como a imobilidade e a atenção são sinônimos! p. 408

 Uma estrada é interrompida/ por uma maçã perfeita – p. 412

No Ocidente o divino foi paginado cuidadosamente; / tem uma encadernação cara – p. 414

 
 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Clarice vai à Feira



I Conferência de Saberes e Tradições Nordestinas
Local: Rio de Janeiro, Centro Luiz Gonzaga - Feira de São Cristóvão,17 a 20 de Setembro


Dia 17 - 09 - Local: Biblioteca Padre Cícero
14H às 15:30H – Histórias da Feira de São Cristovão - Patrimônio Cultural Imaterial

Elis Regina Barbosa Angelo – UFRRJ: Âmbitos do patrimônio imaterial: conceitos, definições e direções na construção dos saberes do Brasil.

Prof. Nonato Gurgel – UFRRJ: Clarice Lispector na Feira de são Cristóvão.

Prof. Leonardo Santana da Silva - Unisuam – (mediador)

sábado, 12 de setembro de 2015

Maria Bethânia

 
Para Macabéa Córdova que viu comigo
 

Amanhã é o último dia da mostra que comemora, no Paço Imperial, os 50 anos de carreira da deusa baiana. Ouvi Fernando Pessoa na voz de Maria Bethânia antes de ler o poeta luso na página (O eu profundo e os outros eus). Isso não é pouco. Marca um jeito de ler a poesia e interpretar o mundo. Um modo meio carta e carcará - pega, mata e come - de ouvir e estar no mundo. Modos que a grande artista Bia Lessa traduz com vigor na direção da mostra que poderia se chamar O cheiro da canção.
 
Hoje cheirei e ouvi literalmente a voz que Deus deu para ela cuidar. A voz que sai de antes do umbigo. Voz que acolhe e corta. Uma enchente que seca e depois sangra. Canto que confirma e inventa uma vida, como diz a escritora portuguesa Inês Pedrosa nas paredes - as paredes sabem tudo, por isso um homem pode amar uma parede, uma pedra, uma planta. Mesmo que esta planta seja capim, como Macabéa. Capim de feno. Inês sobre Bethânia: "Pessoa escreve na tua voz o vendaval de paixão que seu corpo apenas pode inventar..."
 
Assim é a mostra e suas mais de mil peças: telas, esculturas, fotos, vídeos, objetos pessoais e canções. O feno - o cheiro - perpassa os ambientes. Feno/floração. O expectador é seguido pelo cheiro do feno que floresce pelas salas. Além do capim verde marrom, outros cheiros acionam o corpo que ouve as vozes das lavadeiras. Haja memórias. Memorial afetivo do pretérito. Melhor focar no presente da mostra. Focar no fundo. O fundo verde das paredes que, inscritas a fogo e giz, falam.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

mortos nas praias

 
 A escritora senegalesa Fatou Diome
e os impasses da velha Europa ou
a leitura histórica perturba o gozo estético


sábado, 5 de setembro de 2015

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

poesia

 
com o poeta Adriano Espíndola
lançamento de Escritos ao Sol (Rio, 2015)


domingo, 2 de agosto de 2015

Postas de superfície


Para R

Brisa marinha
do barco a seco
irriga poros
revira costas
do corpo alado  

Devolve destroço
ao mar aberto
e volta à praia
com postas
de superfície





quarta-feira, 15 de julho de 2015

curso

 
clique para ampliar


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

2015,







...seguirei pela estrada estendendo a pele às dávidas do dia


Rosa Alice Barroso, "A divisibilidade dos aromas" in Soletrar o dia, Lisboa: Quasi, 2002