e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 28 de junho de 2011

Às mesmas margens

Sempre verdíssimas
estas montanhas mineiras.
Folheio-me nelas ao som
de riachinhos que narram
sempre às mesmas margens.


Sem a pressa de quem
cedo nomeia, sem pose
e leitor da bula brutal
da paixão, cedo, ativo,
aos ritmos do meu tempo.


No silêncio do vale
escrevo versos às coisas.
Comigo acostumadas, elas
movem e ditam o destino
do inacabado: a criação

segunda-feira, 27 de junho de 2011

sem bis, please

Vale do Ceará-Mirim, outubro de 2006



My dear


Enquanto esquentam os pratos na cozinha, ponho em silêncio a mesa. Atento para a combinação das cores. Azul já não espanta, nem o laranja nada tece. Penso nas mesas postas para você, suas demoras, vindas adiadas. Por pouco não me corto nesta faca. Nunca o objeto inerte, afiado, disse tanto nas suas bordas repuxadas, irritadas, mas generosas. Bordas fartas, não nego. Como me excita essa expectativa de mesa posta... Corte. Enquanto ponho a mesa, espero esta nova linha pós break, e conjugo um verbo antigo conhecido de guerra em todas as eras por que passei: suportar.


Mastigamos em silêncio. Ao lado, ela vive o martírio de um dente que não consegue, certeiro, cortar a asa. Termino o jantar e retomo a leitura de onde havia parado. Tenho o ritmo do ventre e da página virada com a sofreguidão de quem crê que a cada palavra lida deste livro eu decifro a esfinge e a devoro na sequência. Balela. Eu, nesta idade, já devia saber. Não. Eu sei que não devia (mas eu não consigo dormir sem
लेर, você consegue?).


Cena detalhada do capítulo de ontem: no ar, a velha hipótese roseana de que a visão amplie alguma perspectiva e o obstáculo seja mutável. Tenho, como você, pensando nisso também. Como eu sei? Sei porque te leio. Visito o teu blog sempre que posso. Essa terra virtual é estranha mas aduba a curiosidadade, nutre a angústia comunitária. Curto muito. Curto, no blog, o sangue pingando ao lado dessa palavra sem cor se derramando... E olhe que dá pra segurar, sim. Nada de explosão que eu não sou o Gonzaguinha!

Amei a foto. Quando puder diga, mesmo pelo blog, qual é a leitura da imagem da máscara. Fico de pau duro só de fitá-la. Curto a nuca, os cabelos pretos, a cabeça no espelho.Torço com uma força que me surpreende. Foi olhando essa foto que decidi: não quero mais brincar de extremos com você. Chega do lugar periférico que ocupo na sua história, porra. Esta foto é pura epifania. Acende o pavio da imaginação e a reta. Só você conhece o resto, porra. O espelho afasta o fantasma do retorno que dormiu comigo no sonho de ontem. O espelho disse que eu tenho um espelho embutido no corpo e por isso não posso bruscamente voltar para trás. Fiquei pensando no rosto do espelho, pensando no rosto abissal carregando um espelho.

Ontem à noite encerrei uma sessão de análise falando da lucidez de quem traz consigo uma primavera – iluminada estação – e vive, ao mesmo tempo, um inverno feroz. Queria muito te conhecer noutra estação. Nesta teve o espelho embaçado pelo gelo da Glória, as galinhas de Botafogo, a bibliografia que você pediu e não usou...


Mesmo sabendo que é o fim, admito, enquanto vejo a novela, que você às vezes ainda re-escreve a noite. Preciso parar de pensar assim. Por pouco não me corto nesta faca... Nunca o objeto inerte... nas suas bordas irritadas, generosas... Bordas fartas, não nego, mas vê se por favor não responde.


sábado, 25 de junho de 2011

Cidade de Letras



olhar urbano e estética moderna


Desde a Antiguidade clássica, as formas de vida desenvolvidas no campo e na cidade geram contrastes e obras de arte. Na história da literatura, o rual e o urbano são espaços produtores de diferentes tipos de textos, como atestam "Os Sertões" de Euclides da Cunha e "Ulisses" de James Joyce.


A modernidade do texto de autores como Euclides e Joyce remete a tempos quando o mundo realista ou romântico. Miremos o Romantismo. Se o “gênio” romântico gozava geralmente da paz silenciosa do cenário bucólico como espaço de sua criação, os autores da belle époque e do modernismo elegeram a cidade, a rua e a multidão como “musas” inspiradoras.


Ornada por fábricas, corpos apressados e mercadorias, a cidade moderna é o cenário no qual o poeta perde a sua aura e põe a melancolia no bolso.


Na cidade é encenado, segundo Valéry, o último ato da “indústria do belo”. Em meios a prédios, autos e anúncios luzidios, o poeta moderno constrói um novo olhar e começa a “pintar”, no poema, o cenário maquínico e tecnológico da cidade.


Vestígios desse novo olhar, imagens dessa outra noção de beleza, podem ser vislumbrados nos “quadros parisienses” do livro "As Flores do Mal", de Charles Baudelaire:


Verei a fábrica em azáfama engolfada;/ Torres e chaminés, os mastros da cidade... Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/ Depressa muda mais que um coração infiel)


Essas mudanças anunciadas no poema aconteciam não apenas na Paris "fabulada" por Baudelaire e escritores da belle époque. Mutações e deslocamentos eram visíveis também na “Paulicéia desvairada" de Mário de Andrade, e no Rio de Janeiro do prefeito Pereira Passos, cidade moderna cuja linguagem urbana refletia o “discurso metonímico de todo o país” (Beatriz Resende).


Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Buenos Aires... Nestas e noutras metrópoles surgia - associada a uma espécie de "pensamento teatral" e a uma sensibilidade maquínica -, essa estética moderna. Uma estética que é calcada, dentre outros, nas noções de visibilidade, choque, superfície, velocidade e corte.


a viagem, a rua e a arte de flanar


Haja cena. Estetizada na metrópole, essa teatralidade pensante e existencial pode ser lida nos gestos e atitudes de alguns artistas daquele cenário moderno. Essa teatralidade moderna é lida, por exemplo, nas performances urbanas do dândi e do flâneur, e nas viagens para a Europa feitas por artistas e intelectuais como João do Rio e Oswald de Andrade.  Através dessas viagens, eles estetizavam as suas expectativas de escritores periféricos e inscreviam o testemunho da alteridade.


Como no romance "Serafim Ponte Grande", de Oswald, esse testemunho inscreve-se também no texto de João do Rio. Ele se  destaca como um dos autores do início do século que mais se voltaram para a inscrição da alteridade no novo cenário urbano. Nos textos reunidos em "A alma encantadora das ruas", o autor carioca tematiza as relações subjetivas criadas no contato entre o sujeito, a janela, a máquina e a rua.


A rua é o espaço onde a língua se transforma, leciona a leitura de João  do Rio. Seus textos encenam aquela arte de flanar, da qual fala Walter Benjamin em "Charles Baudelaire: um lírico no auge no capitalismo".  Há nesses textos uma sintaxe de corpos, gestos, cheiros e afetos urbanos. Sintaxe que se (a)firma em "A alma encantadora das ruas": “A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há um suor humano na argamassa do seu calçamento”.


sexta-feira, 24 de junho de 2011

e fez da leveza combustível

Encontro, na livraria Empório das Letras, a segunda edição do livro "Entre quartos, ruas e cafés", de Fernanda Lima, sobre a poesia do Kaváfis. Neste volume escrito a partir da tese de doutorado da autora, há um poeminha nosso cuja versão final - dez anos depois - ficou assim:


carta de São José aos hóspedes do saber

Botafogo, 27 de setembro de 2001


Farto e pai
do exílio humano
Deus tem sede
da chuva da carne

Ele fez do leito, altar
deletou acne, abismo
e de legumes e curvas
a humanidade proveu

Deus mediu (com a pluma
que serviu de peso) a exatidão
e fez da leveza combustível
para transportar desejo

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Viver é luxo

O título acima é uma frase de Clarice Lispector. Com ela, um grupo de alunos de Teoria da Literatura encerrou, na UFRRJ, o seminário sobre a novela "A Hora da Estrela" (1977) e o ensaio "O Drama da Linguagem" (1995), de Benedito Nunes. Luxuosa manhã.



Tratando do jogo de identidades criado pela autora que perdoava Deus, o crítico canibal diz que ela oferece "o conduto para a problematização das formas narrativas tradicionais em geral e da posição do próprio narrador, em suas relações com a linguagem e a realidade..." (p. 161).




O cotidiano real de Macabéa começa com uma alta taxa de oralidade animal. Do seu quarto de pensão na rua do Acre, ela ouve, no centro do Rio, "o cantar de galo na aurora sanguinolenta... Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe gratidão." (A Hora da Estrela, p. 46/47).

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Agrário

... para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido
Fernando Pessoa, “Poesia Completa de Alberto Caeiro”


Sua pele conhecia o vigor e a violência do vento frio. Vento que erode a alma e petrifica a carne. Vento que geme o nome e dá roteiro: vou aonde a brisa me leva e não me deixo pensar.

Noite eólica. Porque atualiza e vinga, esse vento entorta raciocínios e guarda-chuvas. Lê espáduas, abre vielas. Ventania que abençôa derrubando troncos, arando corpos, chuvendo.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Letras do século XX



Borges, Freud,  Kafka, Pessoa, Eliot, Barthes, Sartre, Camus, Clavino e Benjamin. Esses e mais 40 autores estão aqui reunidos, numa seleção do editor José Mario, ratificando o que eles nos ensinaram: http://sapoblogs.do.sapo.pt/ler/autoresinfluentes.pdf

domingo, 12 de junho de 2011

Canção da Manhã

O amor te põe pra funcionar, relógio de ouro puro.




Sylvia Plath, Poemas

trad. Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda de Mendonça

sábado, 11 de junho de 2011

Largo I


Dizendo de nordestinos e demais brasileiros como transeuntes que gostam de andar pelo Largo do Machado, no Rio, comecei esta viagem no domingo. Para atestar a geografia afetiva e cultural do Largo e seu entorno, citei alguns dos seus moradores mais ilustres desde os tempos do Império: José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos, João Cabral, Moacir C. Lopes... Largo de Letras.


No Largo fica a Escola Estadual Amaro Cavalcante, senador potiguar que nasceu em Jardim do Piranhas – RN, onde morei durante anos. Nesta escola, a poeta Ana Cristina Cesar (objeto de minha dissertação de mestrado) estagiou como professora. Essa sintonia espacial se repete, a cada pleito, quando trabalho nesta escola como presidente de uma seção eleitoral. Com ou sem roteiro, ando a esmo pelo Largo que é uma beleza. Músculos e retinas estocados, gosto de mexer, sem prazos, nos tomos dos sebos e das estantes da livraria Empório das Letras. Lá, Denise e Sonia narram as melhores histórias, dão dicas e risadas. Largo ri.


Há no Largo bens gastronômicos aos quais recorremos como viciados.  A esfihra do Árabe com café quente, no balcão ou nas mesinhas, é pedida minha e de uma exímia leitora do sertão: Alexandra Moraes. Carioca florescida sertaneja na Casa da Leitura, nas Laranjeiras, ela sabe que o Largo – parodiando o sertão de Rosa e os habitantes da Barra –, é lugar onde os cercos não carecem de fechos. Largo não pede muro.


Redes e mantas coloridas da Paraíba, tapiocas de goma do Ceará, açaí e castanhas do Pará... O Largo dá saudades do Brasil. Mas quem tem saudades do Brasil na Barra? “A Barra é como se a gente estivesse num lugar que não é o Brasil” – diz orgulhosa, na tv, uma moça na Avenida das Américas. No Largo do Machado é diferente. Lá, com todos os timbres cariocas e sotaques estrangeiros, é como se a gente estivesse no Brasil. Largo é o Brasil.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Largo II


Para Numa Ciro e Leonardo Gandolfi

I


Continuo lendo a geografia afetiva do Largo. O Largo do Machado e seu entorno. Ratifica o trânsito e a predileção dos nordestinos pelo Largo e suas adjacências, a presença de vários artistas, escritores, professores, pesquisadores e produtores culturais que residem nesta região. Tem sido assim desde os tempos do Império até hoje, não é Jussara Santos?

Decepcionado com a tristeza da Europa, o escritor e deputado José de Alencar – conhecido como o patriarca do romance nacional – morou na rua Pinheiro Machado, nas Laranjeiras; hoje, o autor cearense senta petrificado num belo cruzamento do Flamengo, bairro onde viveu o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.


Quem também transitou pelo Largo e suas adjacências foi Graciliano Ramos. Ao sair da prisão da Ilha Grande, em 1937, o escritor e ex-prefeito alagoano encarou uma pensão no Catete. Ficava na rua Correa Dutra. Hoje essa rua vive repleta de motoboys nascidos na Tavares Bastos e em Campina Grande na Paraíba. Uma rua tipicamente carioca com alta taxa da oralidade nordestina.
  
II


Nascidos no Nordeste, alguns escritores contemporâneos continuam transitando no Largo e seu entorno. Ao lado do Largo, o ensaísta e professor Eduardo Portella continua ministrando o seu curso de pós-graduação no Colégio Brasil. O poeta e professor paraibano Aderaldo Luciano aparece nas aulas do mestre baiano, de quando em vez. Conterrâneos, os poetas Eli Celso da Silveira (Rua do Coração Perdido) e Nei Leandro (Dunas Vermelhas), conhecem muito bem o pedaço. A professora e poeta baiana Helena Parente Cunha, também. O cantor e compositor Jackson do Pandeiro conheceu muito bem a Glória.

Próximo ao Largo, brota a prosa marítima e sertaneja do escritor cearense Moacir C. Lopes. Autor de mais de 20 romances, entre eles “A Ostra e O Vento”, o ex-marinheiro viveu durante décadas na rua das Laranjeiras, onde autografou para mim, em 2007, “A ressurreição de Antonio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos”. Como o título anuncia, neste seu ultimo romance Moacir relê Euclides da Cunha e os seus mitos mais produtivos: os sertões, Canudos e o Conselheiro.


O beato Antonio Conselheiro nasceu em Quixeramobim, no Ceará, onde nasceu também o professor Ary Pimentel. Pesquisador da UFRJ, ele transita pelo Largo, e estuda a literatura dos excluídos e da margem, num diálogo profícuo com as narrativas contemporâneas produzidas na América Latina.

domingo, 5 de junho de 2011

Largo III

Para Henrique Cairus (RJ) e Tetê Bezerra (RN)


I


Nordestinos e demais brasileiros, no Rio, adoram transitar pelo Largo do Machado. O Largo e suas adjacências – Catete, Glória, Lapa, Laranjeiras, Flamengo, o aterro, a baía da Guanabara... Alguns desses lugares eu conheci antes de chegar por aqui, através de canções populares ou das páginas dos romances do sertanejo José de Alencar e do carioca Machado de Assis.

Recordo uma passagem do romance “Esaú e Jacó”, onde o Bruxo do Cosme Velho diz: Viverei com o Catete, o Largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das lojas. ...Lá os meus pés andam por si. Há ali cousas petrificadas e pessoas imortais...

Narrativas e canções rendem o Largo e seu entorno. Um carioca me garante ser de olho no trânsito noturno do Aterro que um compositor cearense canta no corcovado quem abre os braços sou eu.

Nessa canção do Belchior, ouço o aboio melancólico dos vaqueiros nordestinos na hora do sol posto quando a treva se anuncia. Nessa letra, vejo o olhar luzidio do carioca noturno sem desejo de transcendência ou contemplação. Dentre outros motivos, pode ser por isso que o título da canção remete a duas coisas que caminham juntas: “Paralelas”.


II


Projeto do paisagista Burle Marx, o Largo soa como um espaço meio carioca, meio outro estado. Espaço onde gestos sertanejos e sotaques urbanos e cosmopolitas dialogam. Dialogam e convivem com a leveza das cores das mantas de Brejo do Cruz - PB e a mancha escura da pedinte da comunidade, em meio à beleza e violência de cada dia.


O Largo tem uma porção nordestina bem animada. Digo isso não só com base nos traços físicos dos porteiros e na oralidade dos garçons, nem por causa dos produtos da cultura popular, visíveis a céu aberto no entorno do Largo. Digo nordestino como jeito encontrado de ler o Rio por quem não nasceu no Rio.


Nordestino com um olhar aceso, às vezes desconfortável, perdido na cidade. Olhar que Clarice - criada no Nordeste - leu na feira nordestina de São Cristóvão. Ela leu, captou e colocou na retina de Macabéa nA Hora da Estrela. Segundo Caio F, aquela Macabéa é o Brasil.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Caio F, cidades e afetos

01 – Sampa, 24 de junho de 1981

... ô Jacqueline, como São Paulo pode ser bonito ás vezes, com uns crepúsculos cor de pêssego querendo amanhecer, demoradíssimos, tão lentos quanto um acorde de Erik Satie. (p. 32/35)


02 – Rio de Janeiro, 24 de maio de 1983

...a cidade é mágica, sensual, afetiva, tesuda. ...O livro chama-se Triângulo das Águas (a água dos rios, dos mares, da chuva). Passam-se à noite. Terminam ao amanhecer. É assim que me sinto: amanhecendo. (p. 52)


03 – Rio, 21.09.83 (A Maria Adelaide Amaral)

... Aqui em cima do morro fico em retiro quase absoluto. Quando vou à cidade, volto irritado. Silêncio, ando obcecado por silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o barulho do vento. E o bater do coração. E se possível isso que chamamos de Deus, existindo devagarinho em cada coisa. Existe sim.


04 – Porto, 1º de novembro de 1983

...Uma culpas atravessam. Tivesse sido mais paciente, quem sabe? Horrível confirmação: a décima terceira voz, que eu não compreendia direito – é que foi escrita praticamente toda para Ana – agora faz todo sentido do mundo. Fica claríssima.

(Nesse olhar para a literatura como roteiro existencial, Caio refere-se ao suicídio da poeta Ana C. e à sua novela “Dodecaedro” do Triângulo das Águas (1983)).


05 – Sampa, 09 de julho de 1984

... me puteio por ter me enganado OUTRA VEZ. Mas gosto de perceber que as dores são cada vez mais rapidamente superadas. Acabo sempre no velho Oswaldo: “o amor, ah o amor, o quero porque quero da vida”. E quero, como quero. (p. 84)


06 – Sampa, 1º de agosto de 1984

Um I-Ching me aconselha a “limitação”: um lago não deve querer transbordar seus limites. ... E atravesso os dias, um pouco opaco, com breves iluminações – como há pouco, no portão, olhando o céu.


07 – São Paulo, 24 de agosto de 1984
(não é aniversário do suicídio de Getúlio?)

Fui ver Carmem, de Saura, e meu sangue espanhol ferveu. Quanta paixão. Dá vontade de sair dançando flamenco. E dá uma outra coisa: vontade de viver a humanidade do corpo, com seus vendavais de ciúmes e impulsos homicidas e traições e sedes trágicas.


08 – Sampa, 29 de outubro de 1984 (A Maria Adelaide Amaral)

... De braços abertos é a tua melhor peça. ...Há um grande gesto de bondade sua, de compreensão se derramando sobre todas as personagens. Aí me lembra John Fante, do Pergunte ao pó, que foi o único livro que me fez chorar nos últimos anos. Como a tua peça também me fez. Chorar de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas freqüentemente tão inábeis, mas tão sinceras também, de “acertar”, de fazer as coisas “do melhor jeito”. ... E é por isso que quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. (p. 101/102)


09 – ...odeio São Paulo porque me percebo, às vezes, sendo nas minhas atitudes a própria cidade. (São Paulo, 10.09.91)


Abreu, Caio F. Cartas. Org. Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.