e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 29 de março de 2016


O Chico Antônio de Mário de Andrade
 
Para o amigo e poeta Marcus Salgado

                                                                                     Jornal O Galo n 3, Natal, Março de 2016


Ao longe as dunas, o mar verde do Rio Grande do Norte
Mário de Andrade, Café

O coqueiro potiguar Chico Antônio é o personagem luzidio e sensual, inconsciente do seu valor cultural, em Café, último romance de Mário de Andrade

I – Romance “narrado” nas cartas

Quem lê ou estuda a cultura brasileira sabe que o escritor Mário de Andrade (1893 - 1945) adorava cartas. Passados mais de 70 anos da sua morte, sabemos que o escritor paulista – um dos principais inventores do nosso Modernismo – correspondeu-se com grande parte da intelectualidade brasileira, como atesta a publicação de sua correspondência com Carlos Drummond, Câmara Cascudo, Henriqueta Lisboa, Moacir Werneck de Castro, Fernando Sabino e Manuel Bandeira, dentre outros.

Numa carta a Manuel Bandeira em 1929, o autor paulista refere-se ao livro que seria o seu primeiro romance após a publicação de Macunaíma (1928). Diz Mário, nesta carta ao poeta pernambucano, estar escrevendo um “romance Café”, cujas páginas estão “cheias de psicologia e intensa vida”. Doze anos depois, o romance de “psicologia” e “vida” continua sendo “narrado” na correspondência. Numa carta a Moacir Werneck, em 1941, Mário escreve: “... Café ... tem um sentido mais viril e mais geral.”

Café é um livro cuja “virilidade” estetiza o contexto fascista dos anos 20 e 30, quando o país intensifica o projeto urbano-industrial, e inicia o declínio econômico do produto de exportação que intitula o romance. O Estado de SP é o espaço narrativo, sendo a cidade, a “Pauliceia Desvairada”, uma “personagem” relida com ironia e afeto. O autor critica a porção inculta da aristocracia ítalo-paulista, nas primeiras décadas do século XX, quando o centro de São Paulo ainda ostentava ares provincianos.

Trata de viagens, travessias e migrações o romance inacabado A pegada antropológica da narrativa e suas etnias deslocadas atualizam a ficção de Mário, e o seu desejo moderno de dar uma alma para o Brasil. Nas referências às culturas nordestinas e italianas, lemos o desconforto do nordestino na metrópole de múltiplas identidades culturais. Por terem “senso de sonho” e “a pecha de... brigões e instáveis” (p. 85), os nordestinos sofrem quando comparados aos italianos e suas conquistas materiais.

II – Potiguar é personagem principal

Café foi publicado em 2015, setenta anos após a morte do seu autor, pela pesquisadora Tatiana Figueiredo. Dividida em duas partes, a narrativa tem Chico Antônio (1904-1993) como personagem principal que atravessa a primeira parte. O homem que formata e viriliza o romance de Mário de Andrade nasceu em Pedro Velho, município situado no litoral do Rio Grande do Norte, cujo nome homenageia o médico potiguar que fundou o jornal A República, e foi o primeiro governador do Estado.

Mário de Andrade e Câmara Cascudo no RN

Chico e Mário se conheceram na primeira viagem etnográfica do poeta ao RN em 1927, tendo como anfitrião o escritor Câmara Cascudo. Na ficção, o cantador é filho de um homem sem passado que “fuzila com a voz”. Se o pai fuzila, o filho ilumina quando canta cocos tipo "Boi tungão", um dos preferidos de Mário, e "Usina (tango no mango)", gravado pelo grupo pernambucano Mestre Ambrósio.

Os textos publicados nas imprensas potiguar e paulista registram o impacto que o coqueiro causou no cronista. Café é o sexto livro de Mário que tem Chico como personagem. Os outros livros são Os Cocos, Danças Dramáticas do Brasil, Melodias do Boi e Outras Peças, O Turista Aprendiz, que reúne crônicas publicadas no Diário Nacional, e Vida de Cantador. Este último foi escrito, segundo o autor, com “elementos da vida e da psicologia do Chico Antônio de carne e osso que foi meu amigo”.

Mário abre assim o seu Café: “Chico Antônio apenas se percebera um pouco enfarado quando a noite caída não permitiu mais enxergar as paisagens passando pelo trem.” O autor ficcionaliza a chegada do cantador de coco nordestino à metrópole paulista, onde a “boniteza violenta” lembra Recife. Homem forte e aluado, o potiguar “enfarado” é movido pelo ritmo, pela música. Interage com animais e transita na ficção como personagem potente, mas sem “noção de tempo nem de espaço”.

Essa potência inconsciente é lida em fragmentos romanescos que ratificam o “sentido” viril e a “intensa vida”, anunciados pelo epistológrafo nas cartas para Manuel Bandeira e Moacir Werneck. A página 49 de Café dá conta da intensidade vital do personagem, ao estetizar um Chico vitorioso em seus deslocamentos: “Andarilho por delícia, por destino, não possuía noção de tempo nem de espaço. ... tinha uma paciência chegadeira que na sexualidade o levava até as vitórias do macho...”.

O autor celebra os “traços confiantes” do cantador, cujo repertório narra as aventuras de bichos fortes e velozes da fauna sertaneja, como o boi. Inscreve o instrumento musical que acompanha o coqueiro e os “valores de som” do seu canto. Atento aos efeitos do significante linguístico, ele escreve: “... na pancada do ganzá, desintelectualizado, todo ele se fundia numa nebulosa de inconsciência eloquente, em que as próprias palavras não possuíam mais que valores de som” (p. 67).

Embora Café não ambicione explorações linguísticas, o registro destes “valores de som” sugerem a força estética do significante, e os seus efeitos lúdicos no repertório musical de Chico. O romance ratifica escritos antigos nos quais O empalhador de passarinho sugere a inconsciência do artista potiguar: “Não sabe que vale uma dúzia de Carusos, vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. Já são 23 horas e desde as 19 horas que canta...”.

III – Coqueiro: máquina de ritmos

Escrito nas três últimas décadas nas quais Mário viveu, o Café brotou de antigos textos do autor que era crítico de música e pesquisador de teoria musical e de musicoterapia. O coqueiro transformado em personagem do romance, foi descrito em crônica de 1929 no Diário Nacional: “De noite, aparece Chico Antônio, o coqueiro. Simpático e formidável. Noite inesquecível”. O cantador comoveu o crítico moderno que diz: “Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida”.

O corpo de Chico – amolado e aceso – é uma máquina de ritmos. Na memória do cronista, o coqueiro é “esporte” e “sonho”. Sua performance é também “heroísmo”. A esses temas e procedimentos, Mário associa o repertório musical do cantador e sua força nativa, além de criar o verbo relumear para dizer da luz dos seus olhos, vejam:

“Que artista. ... O que faz com o ritmo não se diz! ...Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo. Não se perde uma palavra... ajoelhado pro Boi Tungão, ...contando a briga que teve com o diabo no inferno, numa embolada sem refrão, durada por 10 minutos sem parar. Sem parar. Olhos lindos, relumeando numa luz que não era do mundo mais. Não era desse mundo mais...”

Além do canto e da luz de Chico, registrados nesta crônica, Mário celebra, no romance tardio, o corpo jovem do coqueiro norte-rio-grandense e sua sensualidade viril. O Chico romanesco de Mário é feito de ritmo, luz e carne. Repleto de figurações metonímicas do corpo, como atestam os takes de pele-olhos-nariz formatados pelo narrador: “a tez polida brilhando e os incomparáveis olhos meigos, com o nariz sensual mas bem feito, o corpo pesado mas com uma juvenilidade esbelta...” (p. 105).

IV – Eles deixaram algum espaço

Café estetiza, no corpo, a angústia do embolador em trânsito pela cidade. O canto e o andar de Chico conduzem o trio masculino pela travessia urbana. Na noite paulista, o narrador registra o “recato de desaponto” (p. 103) do coqueiro excitado, cuja noitada atribulada expõe a sexualidade do personagem potiguar, e acaba assim: “Ficou indiscretamente excitado, no poder da angústia. Respirou forte, abanando as narinas, como colhendo no ar a direção das fêmeas.” (p. 10).

A prosa moderna de Mário de Andrade expressa a percepção dos seres que deixam para traz algum espaço seja um estado, uma região ou um continente. Nela o autor celebra o canto luzidio e o corpo do cantador potiguar deslocado de sua terra. Estetiza as culturas do interior paulistano. O cotidiano moderno dos ricos pouco civilizados que mudam de classe social, trocam o interior paulista pela capital, onde os saberes e os gestos da cultura são permanentemente atualizados junto com a história.

 Capa do CD Carretilha de Cocos, produzido pela Fundação Hélio Galvão, Natal, 2001.

Café estetiza a imigração no contexto sócio-político do Brasil no entre guerras. Os nordestinos, a exemplo dos imigrantes italianos, transitam por São Paulo em busca de emprego ou possibilidade de ganho. “Andarilho por destino”, Chico Antônio atua no romance com a firmeza de quem canta desde os antigos cadernos, crônicas e livros de Mário de Andrade. Ao reler as nossas identidades culturais, o autor moderno retirou o colete da linguagem beletrista e carnavalizou, nos trópicos, a vida dos seus personagens.

Bibliografia
 
ANDRADE, Mário de. Café. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
____ O Turista Aprendiz. Introdução e notas: Telê Porto Ancora Lopez. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
____ A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
____ Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Introdução e notas: Veríssimo de Melo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
____ Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. Marcos Antônio de Moraes. São Paulo: Edusp/ Instituto de Estudos Brasileiros, 2000.
JARDIM, Eduardo. Eu sou trezentos. Vida e Obra de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.
Nonato Gurgel é autor de miniSertão (poesia) e Luvas na Marginália (ensaio), e professor de Teoria da Literatura e Literatura Universal da UFRRJ.

Rio de Janeiro, 2015/Baía Formosa, 2016