e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 31 de maio de 2013


2 – Qual é a importância desta biografia?

 
A importância do trabalho de Peeters se relaciona à dimensão da obra de Derrida. Era forçoso que, cedo ou tarde, alguém se debruçasse sobre o imenso arquivo que representa a obra e a vida de um pensador dessa estatura. Era forçoso não só pela notoriedade do biografado, mas também porque a própria obra de Derrida tematizou, em inúmeros momentos, as relações intrincadas entre vida e obra, escrita e autobiografia.
 
Grande parte das questões da escritura e da différance (termo francês por ele re-grafado com a em vez de e, numa rasura intencional) passam pelo redimensionamento da articulação entre subjetividade, história e contexto. Entre os primeiros textos, encontra-se Otobiographies [“Otobiografias”, de oto = orelha], conferência escrita a partir do Ecce Homo, de Nietzsche, ainda inédita em português. Desse modo, a vasta pesquisa de Peeters fornece um precioso material para os estudiosos da obra derridiana cotejarem texto e vida. Mas isso não deverá ser feito de modo mecânico nem positivista, pois a écriture (escrita/escritura) seria, entre outras coisas, uma reinvenção da vida e não sua mera reprodução.

 

quinta-feira, 30 de maio de 2013



3 – Dizendo que o pai se sentia mais próximo dos escritores, pintores ou arquitetos, o filho Pierre Alfiéri, diz que Derrida “tinha consciência de praticar cada vez mais a filosofia como artista” (p. 494). Qual é a leitura que você faz dessa afirmação?

 

A relação de Derrida com a filosofia foi sempre muito complexa. Apesar de ter feito sua carreira como filósofo, ele próprio talvez se definisse mais como pensador. Lembro o dia em que, num de nossos primeiros encontros como seu orientando, eu lhe disse que sempre me interessaram os filósofos que, como Nietzsche, Rousseau e Sartre, se interessaram profundamente pela literatura. Era óbvio que estava me referindo a ele próprio também, ao que me respondeu: Você está falando de mim como se fosse filósofo...  A desconstrução (ou as desconstruções, como preferia dizer) é sem dúvida a desconstrução da metafísica ocidental e da tradição filosófica.

 

Embora fosse dotado de grande erudição filosófica, sobretudo no campo da fenomenologia, interessava-lhe mais o pensamento do que a história da filosofia por si mesma. E o pensamento é um acontecimento que pode se dar em qualquer área, tendo, contudo, suas especificidades de acordo com o discurso em que se produz. Diria que o pensamento é o que acontece no intervalo entre os discursos: não pertence nem à filosofia, nem à literatura, nem às ciências, nem à arte apenas. Não sei se Derrida se consideraria um artista, pois decerto proporia também uma desconstrução do conceito romântico de arte e de sua produção. Mas creio que concordaria com Pierre Alfiéri – cujo sobrenome real é também Derrida, Alfiéri sendo um empréstimo da avó materna para configurar sua persona de escritor – que a arte, muitas vezes, mas nem sempre, está mais apta a acolher o pensamento do que o discurso filosófico tradicional. Todavia, isso não significa desqualificar a filosofia, mas sim apenas questionar o privilégio da atividade pensante que ela quase sempre reivindicou, desde pelo menos Sócrates e Platão.

 

4 – O último capítulo da biografia deixa clara a consciência que Derrida tinha, no texto e na vida, das relações entre o corpo e a escrita. “Um corpo implicado no ato de ensinar...” Em quais textos de Derrida o leitor pode encontrar essas relações entre corpo e escritura, corpo e pedagogia, enfim, corpo e cultura?

 

Respondendo de forma objetiva: sobretudo em Le Toucher, Jean-Luc Nancy (“Tocá-lo ou o Tato, Jean-Luc Nancy”. Ed. Galilée, 2001), inédito em português. Trata-se de um belíssimo livro, em que Derrida aborda a questão do corpo, indo muito além da perspectiva fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, por exemplo. O ponto de partida são os textos de seu fiel amigo, o grande filósofo Jean-Luc Nancy, ainda muito pouco lido e traduzido no Brasil.
 
 
 

quarta-feira, 29 de maio de 2013



5 – Evando, qual é a principal contribuição de Derrida para as ciências humanas?

Essa pergunta exigiria algumas teses de doutorado (risos). Creio que a contribuição dele é imensa, e se fosse preciso indicar um começo, ou melhor, um momento fundamental, diria que é o texto sobre Claude Lévi-Strauss “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, publicado em A escritura e a diferença. Trata-se originalmente de uma conferência realizada em 1966, na Universidade de Johns Hopkins, dentro de um grande colóquio de que participaram Lacan e Todorov, entre outros. A finalidade desse evento era de algum modo introduzir o estruturalismo, então em voga na França e em muitos outros países, mas desconhecido nos Estados Unidos. Ora, surpreendentemente a leitura proposta por Derrida em relação aos textos de Lévi-Strauss era mais uma desconstrução do que uma apresentação do movimento estruturalista...
 
Derrida começava questionando a própria fixidez e a unicidade do conceito de estrutura como estava sendo utilizado nas ciências humanas, sob a influência do cientificismo estruturalista. Contrapunha então a isso uma noção descentrada de estrutura que pusesse em questão, entre outros, os conceitos tradicionais de origem, de causalidade, de essência, de matéria, de Deus... e, por fim, mas não menos importante, de Homem. Sem ser anti-humanista, como muitos equivocadamente pensaram, Derrida questionava o antropocentrismo que redundava num etnocentrismo, pois o modelo de Homem era branco e ocidental. Os nomes que deu para esses centramentos foram logocentrismo (centramento no logos), fonocentrismo (centramento na fala) e falocentrismo (centramento no falo).

Esse gesto desconstrutor, inscrito nos textos assinados por Derrida e mais além deles, se disseminará nas décadas seguintes nos mais diversos campos de investigação: filosofia, literatura, artes, arquitetura, pedagogia, estudos de mídia, ciências sociais, linguística e até ciências ditas exatas. Seria uma tarefa titânica sintetizar, hoje, a contribuição derridiana para todas essas atividades humanas e, segundo alguns, pós-humanas...      

 

terça-feira, 28 de maio de 2013

espectros de Derrida


 
Derrida não é uma biografia intelectual. Apesar disso, o autor pontua as trajetórias acadêmica e editorial do filósofo argelino. O livro perpassa as principais obras e alguns empreendimentos profissionais deste filósofo que é reconhecido como um exímio leitor de, dentre outros autores, Husserl, Hegel, Freud, Marx e Heidegger – “o filósofo que sem dúvida mais o mobilizou” (p. 401).


Derrida não oculta os atritos e as polêmicas travadas com autores como Lacan, Foucault, Bourdieu e Habermas, dentre outros, nem as aflições de sua vida familiar. Além dessas polêmicas, o livro "traça" a carreira internacional do filósofo que tem nos Estados Unidos o principal espaço de inscrição acadêmica e midiática.

 
Derrida ficou conhecido no espaço universitário, a partir dos anos 60, principalmente por propor a “desconstrução”. Trata-se, segundo ele, de “um modo de pensar... a história da filosofia no sentido ocidental”. Lido, às vezes, como um autor cru, cruel e arriscado, cuja sintaxe dilatada nem sempre ajuda, ele fez, da sua voz suave e precisa, uma “assinatura sonora” (p. 535). Essa “assinatura” inscreve – ao vivo, no papel, na tela – as entrevistas, conferências e, principalmente, os seminários repletos de releituras em torno dos conceitos, dogmas e procedimentos que servem de base para o projeto da metafísica no Ocidente.

 
No próximo post, uma entrevista com Evando Nascimento. Ele é ex-orientando e tradutor de textos do filósofo argelino, como A universidade sem condições (Estação Liberdade, 2003) e Papel Máquina (Estação Liberdade, 2004). Autor de Derrida e a Literatura (EdUFF, 1999 e 2001 – 2ª ed) e Derrida (Jorge Zahar, 2004), Evando é também professor universitário. Como escritor, ele publicou, dentre outros, Retrato Desnatural (2008) e Cantos do Mundo (2011),  ambos pela Record. Além de autor, ele é, agora, personagem.  

 

sábado, 25 de maio de 2013

Derrida: força e significação



 
Ele é o cara que, segundo Roland Barthes, abriu o signo. Essa abertura desequilibrou, no século passado,  as estruturas culturais de Paris dos anos 60. Produziu polêmicas. Provocou abalo e rasura nos discursos e nos escritos da filosofia e demais disciplinas das ciências humanas. No texto e na vida, Derrida dilatou a sintaxe e os conceitos da metafísica. Interagiu com a literatura, a psicanálise e o marxismo, dentre outras áreas, nomeando os territórios da diferença, operando a desconstrução, intervindo.

Quase uma década após a sua morte, o filósofo e escritor Jacques Derrida (1930–2004) ganha a sua primeira biografia. Escrito pelo crítico e escritor francês Benoit Peeters, o livro foi lançado este mês, no Brasil, pela editora Civilização Brasileira. Com prefácio e revisão técnica de Evando Nascimento – aluno e tradutor do filósofo nascido na Argélia –, o volume com mais de 700 páginas é dividido em três partes: “Jackie”, “Derrida” e “Jacques Derrida”.

A parte I – “Jackie” – é dedicada aos anos da juventude e da formação do futuro autor de A escritura e a diferença, texto que “constitui talvez”, segundo o biógrafo, “o ato fundador do que logo virá a se chamar os “cultural studies” - os combativos estudos culturais. A parte II – “Derrida” – como o próprio título anuncia, registra a inscrição deste nome no universo acadêmico, e o desenvolvimento da obra filosófica do autor. Esse registro nominal leva em conta as leituras, os seminários, os escritos, as publicações do autor; ressalta suas filiações estéticas e institucionais, registra escolhas afetivas e atitudes políticas.  

 “Jacques Derrida” – a última parte – trata dos desdobramentos da obra e da sua celebração, ressaltando as posturas éticas e filiações sociais e políticas. São as travessias urabnas do autor pelos territórios - verbais, imagéticos - da desconstrução. Mas nem tudo tem a ver apenas com o homem que detonou a "clausura logocêntrica" e denunciou a existência do "significado transcendental". O alentado volume expõe também temas e episódios delicados como a depressão, o câncer e a prisão montada, em Praga, por porte de droga; além de um terceiro filho nascido da relação extraconjugal com a filósofa Sylviane Agacinsky.

Biografia entremeada de cartas, fotos, textos inéditos e depoimentos pessoais, o livro de Benoit é bastante informativo e confessional, além de bem escrito. Em algumas passagens, o seu texto ganha tons romanescos, sugerindo, na velocidade da ação narrativa, os desvios da paixão na - e pela - vida narrada. Tudo isso torna prazerosa e produtiva a sua leitura, e aviva os rastros e a "letra" do seu personagem - o cara que abriu o signo linguístico, e a quem Barthes agradeceu em vida. 


 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

concurso de minicontos




No link a seguir, estão os meus comentários como jurado do Concurso Literário do blog Autores SA

http://autoressaconcursosliterarios.blogspot.com.br/2013/05/comentarios-e-notas-da-3-fase.html

terça-feira, 14 de maio de 2013

país cordial?




Os números apresentados a seguir são do jornal O Globo e do canal GNT.



I - cordial no trabalho


a -  O ministério do trabalho contabilizou, no ano de 2012, o total de 2.849 trabalhadores em condições análogas à escravidão. 

 
 
II -  cordial no trânsito


a - Se comparamos o Brasil com a Europa e os EUA, as estátisticas sobre a violência urbana afirmam sermos o país campeão em acidentes no trânsito.
 
b - A cidade do Rio de Janeiro possui 9 mil ônibus que ciruclam diariamente. Em 1 mes, eles mataram 12 pessoas e feriram 53.

c -  O trânsito da cidade de São Paulo matou 450 motoqueiros em 2012.


 
III - cordial nas relações afetivas e sexuais

 
a - Uma média de 10 mulheres são mortas diariamente no país.
 
b - 1.505 estupros, no estado do RJ, nos 3 primeiros meses de 2013.
  
c - O Brasil é campeão mundial em assassinatos homofóbicos: foram 338 em 2012. Quase uma morte por dia.
 
 
 
 

sábado, 11 de maio de 2013

Cândido G1



Para Claudia F



Do alpendre da Varzinha, sabia o sertão de cor. Era um misto de Paulo Honório que não queria matar com Macabéa sem querer morrer. De Diadorim, trazia a neblina noturna que alumia o asfalto na noite neon; de Riobaldo, o coro cru que agasalha do jagunço a alma. 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Poesia - vende-se



Com o mesmo título acima, o texto a seguir foi escrito pelo poeta e tradutor Paulo Leminski. Publicado no Jornal Folha de São Paulo, em meados dos anos 80, este texto foi republicado em Ensaios e Anseios Crípticos (Unicamp, 2011).

A seguir, transcrevemos o referido texto respeitando a grafia, a pontuação e a forma utilizadas pelo autor do Catatau, no momento em que o seu livro Toda Poesia (Cia das Letras) se mantém, há 8 semanas, na lista de livros mais vendidos. Coisa rara, não só no Brasil, em se tratando de poemas.  

 

“Um livro de literatura (seja lá o que isso queira significar) é a mais singular das mercadorias.
Quando compra uma caixa de sabão-em-pó, você sabe que, no mínimo, aquele produto vai deixar sua roupa mais branca, uns mais outros menos.
No caso do livro de literatura, a situação é bem diversa.
Ao comprar um romance, você quase não sabe nada sobre ele. Será emocionante? Será tedioso? Quem sabe, um grande romance, mas para outras pessoas que não eu.
Os riscos aumentam extraordinariamente quando você compra um livro de poemas. Aí sim você está no mato sem cachorro.
No início do século, não, você pisava em terreno seguro.
Poesia era aquela caixinha de bombons chamada soneto, um pedaço bem cortado de frases enfeitadas, que emitia sempre o mesmo plim. Como um canário na gaiola ou uma caixinha de música.
No tempo de Bilac, você sabia o que comprava.
Nos anos 20, os modernistas de São Paulo, influenciados por doutrinas alienígenas, dinamitaram a central elétrica. E, em lugar de agradar, passaram a conjugar o verbo agredir.
De lá para cá, as coisas se tornaram nebulosas. A literatura era uma certeza e uma tranqüilidade. O modernismo a transformou em problema. De agora em diante, cada escritor tem que viver, em si mesmo, todo o processo da literatura, de Homero até o best-seller de ontem à tarde. Os mapas se perderam. As pistas foram apagadas. E as tábuas da lei voltaram a pó de onde vieram.
As ordens voltaram ao caos primordial. Não há mais normas. Cada um está condenado a ser seu próprio legislador.
E a confeccionar sua própria receita. Programar, sozinho, seu próprio processo de criação. Ser o único responsável pelo “software” da sua produção.
Ao contrário do que dizem, a poesia concreta paulista, nos anos 60, ampliou ainda mais o indeterminado dessa liberdade, sabe Deus se bênção ou maldição.
Liberdade de escrever no plano e até no volume (e não  mais apenas na linha). Liberdade de construir novos vocabulários, novas grafias, novas sintaxes.
Não há outro jeito.
A crise virou substância.
Poesia viva, hoje, é a que já nasce perguntando:
-         Poesia, ah, poesia, que diabo isso quer dizer?
(Por falar nisso, alguém aí quer comprar a minha crise?).”