e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Seis lições para o próximo ano - 6

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Seis lições para o próximo ano - 5

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Com a persistência de quem esculpe madeira e marca café como pré-texto, bebe na fronte onde frui suor poesia e afeto. No milagre da repartição, a garçonete engole farelos e fonemas úmidos. Alia-se.

Quem vem dribla a esclerose burocrática e virtual do dia. Confere in loco nada será como dantes e aquela parte do inferno. Atravessa o éden. Entorna o rio que trago no bolso direito e não se molha. Nada de bobeira. Jamais afoga-se quem vem.

Mergulho outra vez nas curvas. Da baía, deleto o dialeto das farpas com a plenitude do bebê que se espreguiça no carrinho ao sol, enquanto a mãe digere a bunda da vitrine ao lado.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Seis lições para o próximo ano - 4

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Aprendeu na escola das facas a lição da pedra quente e da audição do rio. Pedra bruta. Sem limo. Úmida no reverso escuro da terra. Pedra bonita. Filha de sã solidão que nada pede.

Cultivou o pomar e o porão como um deserto às avessas. Haja frutos. Haja. Mirou na mancha do muro e no banheiro o sonho claro da engenharia e dos agroboys da barra. Aprendeu que aventura às vezes vira cal.

Riso que acende na manhã o sol da pele. Queima a roça onde chove a noite inteira. Rega o pão que o diabo... e vara. Im-passível. Andaimes avisam o monumento. Na casa dela é melhor, pelo menos não lavo a louça.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Seis lições para o próximo ano – 3

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Antiga fé na pedra no peixe e no sonho inaugura roteiro são. Acerta no alvo alvo que nem brancura de lençol quarando ao vento na paisagem luzidia do sertão nordestino. Entorna palavras e líquidos.

Vem quando convém. Às vezes rói o nome. Rói também a alma, a conta no banco, a cabeça, o pau. Pula o muro. Tem habilidade manual e o sabor da tapioca branquinha que herdamos dos índios. Ajuda a alcançar os prazos. Mais para a frente. O corpo formata o seu próprio texto.

Isso tem, desde o tempo bíblico e enfermo do Cântico dos Cânticos, nome, preço, validade: amor. Qualquer bobeira, já viu: ferrão, colméia, vôo.

sábado, 27 de dezembro de 2008

A Urânia

para I.K.
Tudo tem limite, inclusive a mágoa.
O olhar esbarra na vidraça como a folha na grade.
Podes engolir em seco. Agitar tuas chaves.
A solidão é o homem ao quadrado.
O dromedário franze o cenho ao farejar os trilhos.
O vazio se estende como uma perspectiva infinita.
E afinal o que é o espaço, senão
a ausência de um corpo a cada ponto dado?
Por isso é que Urânia é mais velha que Clio.
De dia, ou à luz de sebosos candeeiros,
veja: ela nada oculta
e, se olhares fixo para o globo, é a sua nuca que verás.
Ei-los, os bosques carregados de mirtilos,
os rios, onde se pode pescar esturjões com a mão,
e as cidades cujos catálogos telefônicos
já não te incluem. Mais para o sul,
melhor dizendo, para sudeste, erguem-se as escuras montanhas,
éguas selvagens correm entre as bétulas
e os rostos amarelecem. Mais adiante, singram os cruzadores
e a amplidão fica azul clarinho como roupa de baixo rendada.
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Joseph Brodsky
trad. Lauro Machado Coelho

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Seis lições para o próximo ano - 2

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Ela curte a viagem no espelho. Irriga, sem batom, as simetrias abstratas do shopping com promoções de Natal. Marca: mas não abre a porta.

Cansou de esperar Godot nas estações de metrô do Catete. Colheu nos canteiros urbanos uma jura secreta, ceciliana. Volta inteirinha da silva após as podas primaveris.

Sem respostas ao tempo, aliou-se ao corpo e seu discurso selvagem. Haja líquidos. Quer plantar horta na serra (chama o técnico agrícola, querida). Quer ser atriz. Quer.

Chique mesmo era Ana. Ela sacou um problema realmente literário em Machado: falta peido. Tia Lica dizia não imaginar um mundo sem.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Seis lições para o próximo ano - 1

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De tudo fica um pouco, leciona a pedra com limo. Tem ferro na alma, essa pedra sem cabelos. Ela saca o almíscar no frasco abafado. Mas adota a maresia final da tarde como olor da estação.

A cidade amanhece com paisagens que se amaram durante a noite. Enquanto isso, o Flamengo perde a taça. Perde também Ronaldinho e outras mumunhas mais. Que pena! Fosse uma manhã de sol, hein, Oswald?

Resta o mapa e seus rompantes. Olhos vidrados na madeira do armário e a cabeça voando acima – isso, acima – das curvas da baía (ou seriam as curvas da torre?).

Os dias eram assim: mesmo com essa neblina inglesa que insiste rosa, ninguém reclamava do sol.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Nava, Minas

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A inclinação barroca de Minas interfere
na arquitetura lingüística das Memórias:
alma partida, dispêndio, contorções de estilo enxundioso.

... o olhar terrível do médico, experiente
no diagnóstico, soma-se ao amorável olhar do esteta.

Pedro Nava, um homem no limiar,
Ana Cristina Chiara
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Recordações da Casa dos Mortos

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® Alec Soth


Minha mãe viveu encalacrada entre sua arte poética, suas diminutas crias e marido, la paramour, a cruz, o terço e a memória... Ela trocou o mito de Sísifo, vivido na pia da cozinha, pela lavra de professora.

A ciência não salva, mas dá chaves. Para quem vive na prisão, uma chave é a toda-esperança.

No laboratório dessa vida, o fígado dos ratos, os cânceres dos ratos, o sexo dos ratos, os olhos e a noite-virada dos ratos refulgiam como nossos paradigmas mais caros.

Adicionamos ferro, vidro e madeira para pôr em pé esse edifício de ossos, músculos, nervos, artérias e veias.

A geometria nos transpassava revoltosos imaginários.

Passou pela nossa janela, na rua humilde, o circo Circe e seu elefante, meu primeiro irmão africano, quando a África era uma áfrica.

João Antonio Cajado Botelho
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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Os olhos do deserto

I

Cultivo Jardins abstratos. Formas do silêncio. Mas não se preocupe. Juro pela superfície.

II

Minha busca do deserto foi e tem sido eminentemente poética, que tangencia claramente questões outras como as de ordem teológica, lingüística e política. ...O deserto é uma fábrica de metáforas.
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Marco Lucchesi
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sábado, 6 de dezembro de 2008

Benjamin, "Passagens" # 3

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A folhagem pintada na abóboda da Bibliothèque Nationale. Quando se folheia um livro embaixo, ouve-se o farfalhar lá em cima.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Benjamin, "Passagens" # 2

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Em 1757

só havia três cafés em Paris

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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Benjamin, "Passagens" # 1

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Kafka diz:


a dependência
mantém a juventude



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sábado, 29 de novembro de 2008

Às curvas da torre branca

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I

Do alto de sua juventude cosmopolita com pequenos tiques rurais, questiona. Consegue respostas hábeis, soluções dinâmicas, quase sempre em terra plana. Formas evidentes. Não saca a vertigem de quem vive o ciclo do fogo no triângulo das águas. Por isso não vê o pasto que a chuva aduba nem sente o tamanho do glorioso guarda-chuva que Rita Bahiana quase agarra em pleno restaurante.

II

Embora tenha viajado por mares dantes, nunca ouviu chuva com a entrega de quem assiste missa. Também não desprende o tesão de quem urra num show. Sabe que a antiga pitonisa continua solta dando senhas: “São as pernas andróginas de Orlando. Mas sempre do outro lado.”

III

Só falta o garçom voltar trazendo a inquietude de bandeja, anunciar novo prato e repetir falando sério: é bem melhor você parar com essas coisas... Se não, a torre treme, o sertão inunda e é bem capaz do Riobaldo dessa vez fazer acordo –- não pacto.
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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Quando o poeta não cabe na página

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Pan – cinema permanente, de Carlos Nader, é um documentário sobre o poeta Waly Salomão. O baiano de Jequié fazia e usava poesia como roteiro de vida, como alimento e tempero cotidiano. Misturava ficção e real o tempo inteiro. Passou a vida encenando um personagem para quem entre o seu “ser e o alheio, a linha de fronteira se rompeu”.

O filme tem muitas imagens de diferentes fases do poeta. Numa delas, Waly canta Lupiscínio Rodrigues na viagem que faz a Síria em busca dos seus ancestrais. Lá declama, durante uma entrevista, um dos seus versos mais pungentes e populares:

provo do favo do teu mel e agarro o sol com a mão

Waly é uma máquina de fazer poesia. Indaga ao câmara se quer que apareça nos seus olhos refletido o Redentor. Na Linha do Equador dialoga com a ninfa Eco. Interpreta seu conterrâneo Gregório de Matos no filme feito por Ana Carolina em 2002.

Em meio a águas muitas águas, Waly fala. Fala sobre tudo. Não perde o ritmo nem a fortaleza do tom. Quando lê Lábia na amplidão da paisagem baiana, terra corpo céu e mar testemunham porque o poeta não cabe na página.

No velório de 2003, na Biblioteca Nacional, Waly salta da moldura ao som dos tambores do Afro-Reagge. O poeta foi secretário nacional do livro no Ministério da Cultura, nomeado pelo Ministro Gilberto Gil, um dos seus parceiros.

oO

Anjo Exterminado

Quando você passa três, quatro dias desaparecida
Eu me queimo num fogo louco de paixão
Ou você faz de mim alto relevo do seu coração
Ou não vou mais topar ficar deitado
Um moço solitário, poeta benquisto
Até você tornar doente, cansada, acabada, das curtições otárias
Quando você passa três, quatro dias desaparecida
Subo desço, desço subo escadas
Apago acendo a luz do quarto
Fecho abro janelas sobre a Guanabara
Já não penso mais em nada
Meu olhar vara vasculha a madrugada
Anjo Exterminado
Olho o relógio iluminado
Anúncios luminosos
Luzes da cidade
Estrelas do céu
Eu me queimo, num fogo louco de paixão
Anjo abatido
Planejo lhe abandonar
Pois sei que você acaba, sempre por tornar ao meu lar
Mesmo porque não tem outro lugar
Onde parar…
_________________________________________

(...)

Pára de ondular, agora, cobra coral
a fim de que eu copie as cores com que te adornas
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada
a fim de que tua beleza
teu langor
tua elegância
reinem sobre as cobras não corais

Waly Salomão

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Escrito com os dedos


Para Telma

Lembro da página em branco. Circulo vermelho, letreiros azuis. Como um poema concreto. Quando eu crescer, dizia para minha mãe, quero ser que nem tio Bento. Até namorei no riacho uma menina linda, Benta. Mas nunca nas festas em família consegui atuar e dançar como o tio.

O que eu não sabia naquele tempo é que tio Bento beijava bem. Deixava a mulherada boba querendo mais e mais e mais. Cursando as melhores universidades européias, o tio aliava informação com afeto. Bento lia. Bento ria. O mundo girava no ritmo de tio Bento. Seu riso traduz até hoje a viabilidade técnica de quem vence campeonato de xadrez, natação ou punheta.

Tio Bento só tinha um porém: ficava às vezes meio over e destilava todo suor. Sem combustível, rompia consigo, era ninguém. Não o ninguém que salva Ulisses, mas o nada. As histórias do Catete e da Paraíba nos ensinam que, seja Getúlio Vargas ou João Pessoa, os extremos matam qualquer parada.

domingo, 23 de novembro de 2008

Dos ritmos do tempo

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sou uma mulher do século XIX
disfarçada em século XX
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(Ana C., 1982)

Sou um homem do século XIX extraviado neste século

(Borges, 1985)
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Pois os grandes escritores... fazem suas combinações em um mundo que vem depois deles...

(Benjamin, 1995)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Glória a Deus

para Natália (RJ) e Tetê (RN)


entre o aterro e o centro
Santa Tereza no limite

o MAM
a Casa da Suíça
o primeiro relógio público




caminhada na praça Paris
o monumento da II Guerra

os lustres urbanos no Hotel Glória
a Manchete projetado por Niemeyer


o palácio da arquidiocese
Sebastião flechado na praça
Luís de Camões e o outeiro
onde Rugendas pintou a baía

mendigos vinis aipins na calçada
passeia a loucura esguia e viril de David
um rosto global flutua entre frutas, sucos
do Hobby repleto de Haleys

dvds piratas na boca do metrô
taxistas de plantão no alto Glória
mototaxis zarpam da Arthur Bernardes
571, 572, 434 via Grajaú

livros na Empório das Letras
e no sebo Beta de Aquarius
chás, cds, revistas e jornais
na banca do Sérgio tricolor



frente ao Amaro Cavalcante
onde presido seção, esfihas
no Árabe, Largo do Machado
projetado por Burle Max

risos de Flora e Donatella no Merca Dez
chope no Amarelinho e na Villa Rica
beijo noturno na Taberna e rango
na Estação República, no Odeon

pastel no Mundo Mix – onde viveu Pedro Nava
açaí na Santo Amaro – onde morou Mário de Andrade
filme no Palácio do Catete – onde vive Vargas
barcos e shows na Marina da Gloria

na crônica de Bandeira,
remanescentes de Canudos
no mercado demolido

riem na rua Augusto Severo
as meninas do Paraguai
e de outros países


“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?”
- o que eu vejo é o beco do rato na Lapa
com roda de samba e cerveja a 1 real



quarta-feira, 19 de novembro de 2008

(...)

Em outros termos, vislumbro alucinada a morbidez deste barato.
Logo eu que amo os transatlânticos, as viaturas pesadas, o
transporte visível da malícia. As contradições. O nonsense
perfilado. Logo eu que abocanho fantasmas como quem mastiga
uma iguaria. Olho de longe o paquete, mas como? Se é escuro e
não basta aguçar a vista para ver e contentar-se. Estou encos-
tada no lampião da rua nonchalante e lúbrica. Atmosfera maríti-
ma, paralelepípedos, nada de pesadelos, ou será que o professor-
zinho passou na outra dobra com o seu guarda-chuva? Era um cogu-
melo. Era um guardanapo. São as pernas andróginas de Orlando.
Mas sempre do outro lado. Logo eu que biograficamente me conver-
ti numa saudade de pedra. ...invisível e
imóvel o cargueiro refaz minha figura. Meus hábitos aguardam a
partida: a expulsão do cais.

Ana Cristina Cesar, Antigos e Soltos, 2008

domingo, 16 de novembro de 2008

-- Meu fim é meu começo

klee


"a estrada vai além do que se vê"



segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Glória, Glória Aleluia

“O coração de quem não desistiu é sempre jovem”

Esta frase da atriz Glória Menezes na TV, na tarde nublada, é senha para o inverno que brota em plena primavera de in-ventos e neblinas. Essas alterações do ser e do tempo – “ser o verão o apogeu da primavera” – são há muito relidas pelo imaginário popular, como cantava o ministro-realce em 1979.

Hoje não é dia do Gil, mas da Glória. Sempre gostei da Glória Menezes. Curto o seu jeito de observar duvidando – olhar que se desloca – e que ela empresta para dona Irene na atual novela das 9. Foi Glória quem lecionou, na minha adolescência, uma lição que muitos pais esquecem: filhos a gente faz para o mundo. Nesta, tirei 10.

Glória reflete e faz poesia na TV enquanto fala o discurso mais coloquial. Como nesse verso que parece de um poeta atemporal e que ela diz ao narrar um mero acontecimento da sua carreira: “A água escureceu e eu não vi mais a luz.” Ou como na sugestão de que com a raça humana é preciso “pegar antes de dizer”.

Na leitura do tempo, a atriz traça comparações contextuais para dizer que as temperaturas de hoje alternam com mais rapidez. As estações deixaram de ser lineares, delimitadas, e passaram a ser imprecisas, mutantes, fragmentadas; o que me faz lembrar as identidades contemporâneas.

Ventos

No Grande Sertão: Veredas de Rosa, “o sentir forte da gente” é o que produz os ventos. A lição da Glória é referencial: o rumo e a direção dos ventos interferem na estabilidade dos climas. Ela sabe da rosa dos ventos. Leu ventos que assustam. Ventos que retiram águas de piscinas! “As estações enlouqueceram”, diz ela, sabendo da necessidade de corpos portáteis e roupas atemporais. Ou seja: é uma mulher sintonizada com a leitura do seu tempo, dos ventos do seu tempo. Nada de discurso tipo “no meu tempo...” ou no meu vento.

Glória atravessou décadas representando. Vem da TV feita ao vivo, do Teatro Brasileiro de Comédia, transitou pelo cinema. Seu corpo e seu discurso expressam crenças. Parece que ela chega aos 73 anos desatada. Repassa uma leveza de fazer inveja a muito corpo belo, sem paz. Sua leitura de mundo deixa em polvorosa muito ser humano que já atravessou décadas e não aprendeu sequer a desatar o nó que traz no peito.

sábado, 8 de novembro de 2008

AMA



Foi criado entre livros. É filho de economista com uma antropóloga professora universitária. Estudou Direito e Ciências Sociais em Harvard, Columbia e trabalhou como professor. Deseja menos dor nas bibliotecas da América. Tem sorriso firme e humor suficiente para comparar-se ao vira latas que atualmente procura para a filha.

Aos 47 anos, sua biografia atesta uma vida em trânsito. Viveu na Indonésia e no Havaí. Viu pegou e tirou ondas. Ouvido treinado por Males Davis e U2, assume que tragou. Sua imagem aciona o exercício da diferença (já tem político italiano confundindo negro com bronzeado).

No filme da América em crise, ele vê além das diferenças raciais: "não há um EUA branco e outro negro, e sim os Estados Unidos da América". Em português, seu nome conjuga o verbo amar no presente do indicativo e no imperativo. Inspira.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

As pessoas são frases orações períodos poemas


Um homem resvala à flor dos trilhos nos cenários ferroviários de sua infância. Acesas estão as lanternas, vejam as cabines que passam, lá vem o guarda. Haja apitos. Em meio a essas figurações, a mão paterna e o brinquedo antigo anunciam as formas e os corpos que formatam silêncios e futuros textos. Movido por um jeito de pontuar, o lápis fabrica entonações; mexe na respiração de quem lê. O leitor sabe que tudo isso acontece quando ainda não estamos possuídos por aquela máscara a qual os adultos chamam de experiência. Sim, Murilo: as pessoas são frases, fases...
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Nessa escritura do pretérito, o poeta dialoga com as bagagens do menino que se passa “a limpo” quando lido no presente: “o menino que foi o pai e nele avulta”, como na primeira estrofe de UM DIA, O TREM, do poeta e professor Fernando Fábio Fiorese Furtado. Nestas paisagens de letra e ferro são tecidas a fogo e som as ”ficções da infância” com as quais suportamos – seja com a fala, seja com os ombros – o mundo que nos comporta. É preciso muita infância para nutrir um pai. O texto do pai é a oração do menino.
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Uma boa dose de oralidade marítima ecoa destas orações e versos de ritmos e desvios ferroviários: “trem é coisa de se medir com mar”. Baseado nessa medida, o homem circula com a lanterna que adia o breu e sinaliza a morte ao “passar o menino a limpo e a luto”. Seu apito guarda e celebra a vida com “aquela demasia de ferro e fuga” que o país do ouro, o uni-verso do outro contém, o país da infância ostenta. Às vezes esbanja. É, pois, esse universo rubricado pelas impressões do menino – todo lacunas, emendas, erratas – que o poeta devolve, via linguagem, para quem lê como um luxo a infância em qualquer período da vida.
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Nessa viagem pela infância ecoa a respiração do menino e a repetição da ferrovia e sua música agitada. Ecoa também, além desse trem que ora, os ritmos do serrote herdados do pai e o piano no caos tocado pela mãe tonta. No ritmo do detetive que caça e guarda, o leitor habita o vagão da transgressão, da deriva que a linguagem da poesia aciona, e ganha um mundo novinho em folha, em texto, em corpo como templo da escritura. Sim senhor leitor, as pessoas são templos da escritura. São poemas que andam. São.





domingo, 2 de novembro de 2008

O personagem do poema é o meu avô Cândido Rosendo do Amaral Gurgel


Varzinha

Para Altanízia e Geise Gurgel


ao sol claro fortaleço íris
para encarar Eulina e os frutos
que às vezes vingam. Do alpendre

diviso a Fortaleza e parte do
meu reino: a manga, a macambira
o curral e o queijo que eu

mesmo faço, além de um certo
preto afoito que afaga égua
com jeito de quem acarinha

moça – meiga matéria que muito
me confunde: duas filhas tenho;
mas o ciúme não me deixa ver

as cores do seu agrado. Devoto
cioso de São Sebastião – a quem,
gestos suaves, às vezes imito -,

tenho como hábitos a pergunta
e o pigarro quando – carrasco –
ouço ou vejo o que não gosto

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.



F.Pessoa
O rei e poeta D. Dinis fundou a primeira universidade portuguesa e incentivou a agricultura.
É, portanto, responsável pela madeira das caravelas
do descobrimento (“O plantador de naus a haver”).

Tudo é ainda baixo, infante, nascituro, tudo ainda não é: a noite ainda não é dia; os pinhais ainda não são naus; ... o arroio ainda não é o oceano; ... a terra ainda não é o mar. E, no entanto, em movimento refluente, tudo já foi: as naus já foram pinheiros; o oceano já foi arroio; o mar já foi terra, porque em D. Diniz estão, de forma clarividente, o antes e o depois.
(Maria Almira Soares)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Fé na paisagem


O Rio de Janeiro é uma cidade cujas formas – naturais, urbanas e históricas – abastecem com luminosidade e ritmo o olhar de quem cria, fazendo com que os pés vejam, os olhos ouçam, o corpo fale. Leitora diária da paisagem carioca há mais de duas décadas, Jussara Santos ouve o diálogo entre natureza e cultura nas formas de Copacabana, Flamengo, Largo do Machado e Tijuca, dentre outros. Seus painéis inscrevem os cenários culturais que nos circundam, consomem e abastecem nossa fé.

Jussara assume que suas paixões são sociais. Senhas dessas paixões estão nos fios elétricos que atravessam o painel visto a partir da margem, e na miniatura dos corpos negros que compõem o cenário. São também visíveis, essas senhas, na fé que a artista ostenta ao subir às margens, escalar morros, filmar comunidades em busca de ângulos inusitados. Visão que rasura a beleza previsível e colorida do cartão postal.
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Os “Painéis do Rio” não ostentam a nobreza solene e segura que as molduras delimitaram na história da arte. Nada limita as margens destes painéis. Seus leves suportes dizem muito da ação da portabilidade e da noção de movência do nosso tempo. Dizem também estar, nestes amplos espaços públicos, a matéria que Jussara usa para aproximar a arte e a cultura dos cenários cotidianos nos quais transitamos.

Através desses painéis – antes desenhados na pele de quem cria –o leitor de imagens banha os olhos nas formas do Rio e ouve, cheio de fé, a fala da paisagem.

domingo, 26 de outubro de 2008

A letra segundo Clarice Lispector e Ana C.

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Mini-curso
– Semana de Letras –
UNIGRANRIO,
27 a 31 /10 / 2008


Leitura dos percursos bibliográficos de Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar, atentando para a inscrição da letra contemporânea e para as figurações do corpo nos livros A Hora da Estrela e A teus pés. Apresentação dos vídeos A Letra Segundo C. L. (Nonato Gurgel e Monique Agueda) e Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem (João Moreira Salles).

Di Chirico

a lesma quando passa deixa um rastro prateado

Há um fio narrativo na voz em off, ouça



-- A revista pequena morte completou dois anos e celebrou a data neste dia 15/10 lançando uma antologia poética da qual participo apresentando o poeta Leonardo Gandolfi, autor de No entanto d’água (7 Letras, 2006). A seguir, um trecho do meu texto e um dos mais belos poemas que comporá Os espiões aflitos, o novo livro do poeta --


(...) Nestas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto polifônico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles” (Os espiões).

(...) A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Se a sua poesia inicial sugere “o sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética – isso dá um alívio! Por isso a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Poesia feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo/ do caminho.” (“Mande nem que seja um telegrama”).



Mande nem que seja um telegrama
(“Half away”, W.H. Auden)

O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.

É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.

O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.

Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.

Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.

Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.