e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.



F.Pessoa
O rei e poeta D. Dinis fundou a primeira universidade portuguesa e incentivou a agricultura.
É, portanto, responsável pela madeira das caravelas
do descobrimento (“O plantador de naus a haver”).

Tudo é ainda baixo, infante, nascituro, tudo ainda não é: a noite ainda não é dia; os pinhais ainda não são naus; ... o arroio ainda não é o oceano; ... a terra ainda não é o mar. E, no entanto, em movimento refluente, tudo já foi: as naus já foram pinheiros; o oceano já foi arroio; o mar já foi terra, porque em D. Diniz estão, de forma clarividente, o antes e o depois.
(Maria Almira Soares)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Fé na paisagem


O Rio de Janeiro é uma cidade cujas formas – naturais, urbanas e históricas – abastecem com luminosidade e ritmo o olhar de quem cria, fazendo com que os pés vejam, os olhos ouçam, o corpo fale. Leitora diária da paisagem carioca há mais de duas décadas, Jussara Santos ouve o diálogo entre natureza e cultura nas formas de Copacabana, Flamengo, Largo do Machado e Tijuca, dentre outros. Seus painéis inscrevem os cenários culturais que nos circundam, consomem e abastecem nossa fé.

Jussara assume que suas paixões são sociais. Senhas dessas paixões estão nos fios elétricos que atravessam o painel visto a partir da margem, e na miniatura dos corpos negros que compõem o cenário. São também visíveis, essas senhas, na fé que a artista ostenta ao subir às margens, escalar morros, filmar comunidades em busca de ângulos inusitados. Visão que rasura a beleza previsível e colorida do cartão postal.
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Os “Painéis do Rio” não ostentam a nobreza solene e segura que as molduras delimitaram na história da arte. Nada limita as margens destes painéis. Seus leves suportes dizem muito da ação da portabilidade e da noção de movência do nosso tempo. Dizem também estar, nestes amplos espaços públicos, a matéria que Jussara usa para aproximar a arte e a cultura dos cenários cotidianos nos quais transitamos.

Através desses painéis – antes desenhados na pele de quem cria –o leitor de imagens banha os olhos nas formas do Rio e ouve, cheio de fé, a fala da paisagem.

domingo, 26 de outubro de 2008

A letra segundo Clarice Lispector e Ana C.

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Mini-curso
– Semana de Letras –
UNIGRANRIO,
27 a 31 /10 / 2008


Leitura dos percursos bibliográficos de Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar, atentando para a inscrição da letra contemporânea e para as figurações do corpo nos livros A Hora da Estrela e A teus pés. Apresentação dos vídeos A Letra Segundo C. L. (Nonato Gurgel e Monique Agueda) e Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem (João Moreira Salles).

Di Chirico

a lesma quando passa deixa um rastro prateado

Há um fio narrativo na voz em off, ouça



-- A revista pequena morte completou dois anos e celebrou a data neste dia 15/10 lançando uma antologia poética da qual participo apresentando o poeta Leonardo Gandolfi, autor de No entanto d’água (7 Letras, 2006). A seguir, um trecho do meu texto e um dos mais belos poemas que comporá Os espiões aflitos, o novo livro do poeta --


(...) Nestas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto polifônico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles” (Os espiões).

(...) A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Se a sua poesia inicial sugere “o sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética – isso dá um alívio! Por isso a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Poesia feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo/ do caminho.” (“Mande nem que seja um telegrama”).



Mande nem que seja um telegrama
(“Half away”, W.H. Auden)

O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.

É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.

O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.

Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.

Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.

Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.