e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 27 de agosto de 2011

Brecht de Aderbal

"É preciso olhar a vida no branco do olho." Essa frase pronunciada por um dos personagens de "Na selva das cidades", de Bertolt Brecht, pontua a peça  que se passa em 1912 na cidade de Chicago.  Com música, cenografia e iluminação certeiras, o drama possui  direção contemporânea e afiada de Aderbal Freire-Filho.


O elenco de "Na selva..." assombra. Daniel Dantas, Maria Luisa Mendonça (impecável) e Milton Filho, dentre outros, lecionam no palco o que é a educação de um ator.Vi algumas das peças mais elogiadas ultimamente aqui no Rio. Nenhuma como esta do autor que dizia não andarem bem juntas a arte e a moral.  Além da qualidade do evento, o preço é ótimo e a temporada vai até 09 de outubro.Vale a pena um novo assombro.


sábado, 20 de agosto de 2011

alegria de Clarice

"Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria".

A frase acima é a inscrição que li, nesta quinta-feira, no túmulo de Clarice Lispector, no cemitério do Caju - zona portuária do Rio.

Para a comunidade judaica, as flores significam festa. Por isso só encontrei pedrinhas sobre a lápide da autora que dizia ter vindo ao mundo para amar o outro, escrever e criar filhos.

O epitáfio de Clarice me fez lembrar Augusto dos Anjos. São do poeta paraibano os versos usados por ela na epígrafe de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres: "...a mais alta expressão da dor consiste essencialmente na alegria".

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Surto com rajada de água lusa



Para Vanessa M


Uma versão deste texto foi publicada em março de 2009 em:
http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522
 


 I
Com capas coloridas e título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa (2009), de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, a obra narra um surto psicótico da autora. Essa  narrativa tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície vivido atualmente no universo artístico e cultural, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada mais ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:


Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.

"To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. A narrativa é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nela, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras. Cancela shows, visita hospitais. Surta com a lucidez e os roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.



II

Em sua viagem lusa, a autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (geralmente sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas, as cenas midiáticas e as figurações contextuais ao seu redor, ela contata uma dimensão psíquica antes relacionada à loucura. Hoje, o contato com essa dimensão é cada vez mais administrado nos meios culturais e sociais; seja através do uso de pílulas ou por meio da criação, por parte da psiquiatria, de siglas como TOC e outros transtornos mentais (será mesmo verdade que, ao nomear, o homem perde o medo do que desconhece?).

Como nas canções, a escrita de Adriana Calcanhoto possui leveza e humor – ingredientes raros em nossas letras geralmente comprometidas em documentar algum contexto, representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir. Faz sentir prazer e pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro, e só quem é bobo não saca. Diz muito da nossa condição doída, das identidades em trânsito nesta primeira década do milênio. Mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”
 

Sabemos que toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente ou com alguma coisa que nos integra ou circunda. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin, Byron, Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade...


Embora os tempos não sejam nada platõnicos, concluo com uma pergunta que remete ao filósofo da abstração que cria no sentido eterno, imutável. A pergunta é: haveria nesses criadores citados acima e na própria Saga... de Adriana alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O livro como extensão da vida

Uma versão desta entrevista foi publicada, na semana passada, na Revista Dedo d' Prosa da UFRRJ e no site Substantivo Plural

Nonato Gurgel é professor adjunto de Teoria da Literatura da UFRRJ e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ. Cursou Mestrado em Estudos da Linguagem, Especialização em Literatura Brasileira e Graduação em Letras na UFRN.  Lecionou na UFRN, UFRJ, UERJ, UNIGRANRIO e várias escolas do Rio Grande do Norte. Atuou como pesquisador da FAPERJ e da EMATER.

Atualmente, cursa pós-doutorado no PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e conclui o livro “Luvas na Marginália”.  Disponibiliza as suas produções culturais e acadêmicas no blog Arquivo de Formas: http://arquivodeformas.blogspot.com



1     – Observando o seu currículo, percebemos haver algumas publicações relacionadas a experiências na área de Teoria Literária. Em que consistem tais publicações?



NG: Estas publicações são resultados das leituras que venho desenvolvendo desde a década de 80, quando me graduei em Letras na UFRN. São leituras pautadas, principalmente, na ficção moderna do século XX e na poesia contemporânea, e que levam em conta as formas e as noções de identidade do meu tempo. Com base nessas leituras, realizei algumas pesquisas que divulguei em livros, revistas, jornais e sites virtuais, onde leio quase sempre os mesmos autores: Euclides, Clarice, Guimarães, Ana C, Caio F, Leminski, Calvino, Camus... Na área da Teoria, releio Homi Bhabha, Zygmunt Bauman, Stuart Hall e os de sempre: Walter Benjamin, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin, Freud, Lacan, Compagnon...  



2     – Sabendo que é natural de outro estado, o que o motivou a vir para o Rio de Janeiro?



NG: O curso de doutorado em Ciência da Literatura da UFRJ. Até 1998, quando cheguei no Rio, não havia doutorado na área de Letras na UFRN. Essa motivação das letras, esse deslocamento do RN para o RJ é muito importante. A partir daí tracei um roteiro de vida e trabalho que inclui alguns dos espaços mais instigantes, sedutores e provocativos por que vivo: o Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense.



3     Qual é a importância de lecionar Teoria Literária, no campus da UFRRJ, na Baixada Fluminense?



NG: Durante mais de 5 anos lecionei na UNIGANRIO, em Duque de Caxias. Tive lá uma experiência bastante produtiva com diferentes cursos de graduação como Letras, Pedagogia, Comunicação, Educação Física, Informática... Portanto, quando vim lecionar na Rural, eu já conhecia o potencial e a multiplicidade do público da Baixada.



 Acho o máximo lecionar no curso de Letras de Nova Iguaçu. Para mim é uma coisa natural porque fecha um ciclo da minha vida profissional. Quando prestei concurso para a UFRRJ, escrevi um memorial que começa assim: “O meu percurso profissional e existencial é pautado numa dualidade que se concretiza na relação entre as pesquisas acadêmicas e a ação da extensão rural.”



Essa dualidade começou a pautar a minha vida quando concluí o curso Técnico em Agropecuária e fui trabalhar na EMATER-RN – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural. Nesta empresa, desenvolvi longo trabalho de extensão rural junto a líderes comunitários, agências bancárias, grupos de jovens e de pequenos produtores rurais em quatro municípios do RN: Serra Negra do Norte, Jardim do Piranhas, Pureza e Ceará-Mirim. Enquanto desenvolvia esse trabalho de extensão rural nestes municípios, cursava Letras na UFRN e lia muita poesia e os manuais de Victor Manuel, Antonio Candido e Alfredo Bosi, dentre outros livros.



Em meio a outros teóricos e críticos, Cândido e Bosi continuam sendo referências na Rural de Nova Iguaçu onde leciono Teoria da Literatura. Respondendo a pergunta, creio que a importância dessa disciplina esteja no fato dela sugerir, através da literatura, um exercício reflexivo que é bastante crítico. Além desse exercício, a teoria aciona um mergulho no imaginário que possibilita a produção de formas e idéias. Num momento histórico no qual a Baixada Fluminense se afirma socialmente como espaço gerador de formas e linguagens, penso que a teoria pode ajudar a ler e formatar os discursos que engendram as relações éticas, políticas, existenciais e afetivas. Ajuda também na leitura e na construção de traços identitários. Por isso creio que a teoria auxilia na projeção de roteiros de vida. Ou seja: é o momento da Baixada dizer e ela diz. O dorso da baixada fala. Eu vi isso no ano passado quando lecionei um curso sobre a Floração da Prosa no Sertão. Este curso aconteceu na Casa da Leitura, no Rio, e os alunos da Baixada se destacaram numa platéia onde havia professores, escritores, tradutores, coordenadores de cursos, estudantes de graduação e de pós-graduação...

 

4     Quais obras influenciaram na sua formação como intelectual e profissional na área de Letras?



NG: São muitas obras, mas vou destacar apenas algumas: “Magia e Técnica, Arte e Política” e “A origem do drama barroco alemão”, de Walter Benjamin; “Ensaios”, de T. S. Eliot; “Formação da Literatura Brasileira”, de Antonio Cândido; “Os sertões”, de Euclides da Cunha; “Grande Sertão: veredas”, de Guimarães Rosa; “A lição do amigo”, cartas do Mário de Andrade para Carlos Drummond; “Cenários em ruínas”, de Nelson Brissac Peixoto; “Seis propostas para o próximo milênio” e “Palomar”, de Ítalo Calvino e “O local da cultura”, de Homi Bhabha.



A leitura é uma ação. Através dos livros fundamentei a minha existência como homem e cidadão. Sou muito borgiano no sentido de amar a vida e os livros como uma extensão dela. Questiono se eu sobreviveria num mundo sem livros. Eles me “salvaram”: Kafka, Pessoa, Carlos Drummond, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Graciliano Ramos, James Joyce, César Aira, Henrique Vila-Mata... Seus personagens e narradores foram os meus heróis desde a infância e continuam.