e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 26 de março de 2009

"Minha música não quer pouco"




A Revista Suite Rio n 9 publicou uma entrevista que fiz, em 2005, com a cantora e compositora Adriana Calcanhotto. A seguir, 3 dentre as perguntas e respostas dessa entrevista.

NG – O diálogo entre múltiplos campos da arte é audível em seu trabalho. Principalmente com o artista plástico Hélio Oiticica e com poetas de diferentes contextos e estéticas, como: Antonio Cicero (“Água Perrier”, “Inverno”, “Pelos ares”), Waly Salomão (“A fábrica do poema”, “Remix século XX”), Mário de Sá-Carneiro (“O outro”) e, dentre outros, Ferreira Gullar (“O ronrom do gatinho” e “Dono do pedaço”). Gostaria que comentasse a sua relação com as outras artes, a poesia, os seus parceiros.

AC: Sempre tive dificuldades para respeitar as fronteiras entre as linguagens, nunca achei que isso funcionasse ou mesmo existisse na prática. Sou sinestésica e acredito que todo artista, em maior ou menor medida, também o é. Gosto de me deixar impactar por autores e inventores de qualquer linguagem e me deixo permear por eles quase como um exercício de aprendizagem, de humildade e de poesia.

NG – Numa sacada genial, você relaciona a passagem do tempo à perda das certezas. E os ganhos? Haveria algum em amadurecer?

AC: Amadurecer é ganhar. Perde-se a juventude, as certezas vão-se embora, mas ganha-se experiência, rugas, peso e alguma autoridade. Hoje em dia, quando alguém me pede algo que considero chato ou absurdo eu digo – não posso fazer isso, sou uma senhora – e ninguém ousa retrucar, rs,rs.

NG – Quais cores e imagens você usaria para pintar um painel do seu tempo?

AC: Acho que pintaria um painel como um borrão de algo que passou em alta velocidade, e usaria todas as cores. O tempo em que vivemos parece ser o mais veloz que consegue ser e mesmo assim anseia por mais rapidez. Eu gosto dessa idéia, mesmo com seus exageros e com o nível de superficialidade que parece predominar; prefiro o privilégio de viver em um tempo assim do que num tempo de marasmo.

Minha música não quer pouco

Na revista Suite Rio n 9 há uma entrevista que fiz com a cantora e compositora Adriana Calcanhoto em 2005. A seguir, 3 respostas

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ana C na semana da poesia



A história está completa:
Minha boca também
está seca
deste ar seco do planalto
bebemos litros d'água
Brasília está tombada
iluminada
como o mundo real
pouso a mão no teu peito
mapa de navegação
desta varanda
hoje sou eu que
estou te livrando
da verdade

segunda-feira, 16 de março de 2009

O amor desnudo

...o amor cantado por Drummond... não será aquele feito sob os lençóis macios do amor tradicional... Trata-se do quinto grau do amor, aquele que representa a sua mais elevada forma, segundo a tradição hinduísta. O amor clandestino. Apaixonado e ilícito. Esse amor transgressor teria o poder de intensificar em um devoto, pelo seu caráter arrebatador, o conhecimento da própria identidade com o Ser dos seres e com o mundo.

Adriano Espínola

Drummond na semana da poesia

Quarto em desordem

Na curva perigosa dos cinqüenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
e esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

sábado, 14 de março de 2009

Hoje é o dia da Poesia


Surto com rajadas de água lusa

Título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa, de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, o livro narra um surto psicótico da cantora e compositora, e tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos.
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Neste contexto, a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto da autora recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:

“Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.”

“To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. O livro de Adriana é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Pira com lucidez e roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.

A autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas e as cenas ao seu redor, ela contata uma dimensão antes relacionada à loucura, e hoje cada vez mais administrada no meio social, através de pílulas e da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais.

Como nas canções, a escrita de AC possui humor – ingrediente raro em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir, sentir prazer, pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro. Diz muito da nossa condição doída, mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”

quinta-feira, 12 de março de 2009

Auschwitz, Analfabetismo, Amor




Analfabetismo, Amor, Auschwitz. Não necessariamente nessa ordem, são esses os ingredientes do filme O leitor. Stephen Daldry, o diretor, demonstra habilidade no diálogo entre letras e telas desde As Horas, onde narra a vida da escritora Virgínia Woolf.

Baseado num livro do escritor alemão Bernhard Schlink, O leitor é uma história carregada de dois ingredintes produtivos e perigosos: poesia e erotismo. A narrativa de Schlink é escrita numa linguagem clara e direta, numa forma linear, às vezes meio previsível. Mas a história não é nada previsível. Um garoto de 15 anos conhece farpas e mel - do amor e dos fatos - ao envolver-se com uma mulher de 36. Ela, uma ex-vigilante que encaminhava judeus para as câmaras de gás nos campos de concentração nazistas; ele, um jovem (futuro estudante de Direito) que lê Homero, Rilke, Cicero e Horácio, vivendo numa família cercada de Letras (seu pai é professor de Filosofia e sua irmã estuda Literatura).
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A ficção de Schlink se desenvolve numa Alemanha pós-guerra, cujo contexto traduz-se, no filme, em cores sóbrias que sugerem imagens trágicas. Entre os dois amantes rola sexo, leituras e "batalha verbal". Hanna doa para o seu amado -"menino" dois elementos raros na juventude: segurança e decisão. Em troca, Michael lê em voz alta - atendendo aos pedidos da funcionária do bonde - e submete-se às ciladas da "maturidade" feminina. As brigas e os descompassos produzem mais intimidades. Cenas de sangue e poesia se alternam e aproximam o casal que grita de prazer enquanto trepa.

Sem efeitos grandiloquentes nem ritmos alucinantes, O leitor cria ritmos. É aquele tipo de filme que afeta a respiração de quem vê. Isso, por um motivo atroz: aquele que narra e lê - belo, resignado, cheio de memórias - mostra que a verdade e a lei, em alguns contextos, são coisas bem distintas.

domingo, 1 de março de 2009

Drummond nos 444 anos do Rio


Retrato de uma cidade

I

Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.

Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.

As coisas se amaram. E despertam
mais jovens, com apetite de viver
os jogos de luz na espuma...

Um riso claro, que vem de antes da Grécia
(vem do instinto)
coroa a sarabanda a beira-mar...

Este Rio peralta!
Rio dengoso, erótico, fraterno,
aberto ao mundo, laranja
de cinqüenta sabores diferentes
(alguns amargos, por que não?),
laranja toda em chama, sumarenta
de amor.

...

LAPA

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Dioniso guia a noite luzidia nas sombras da Lapa, limites da Glória. Perto de onde morou Carmem Miranda, o deus da dança põe na mesa do bar duas divas: a artista plástica Jussara Santos (Fé na Paisagem) e uma musa cult que inscreveu o seu nome na música pop final do século: a cantora Daúde.
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Entre caldos, boêmias e pastéis, falo para a baiana do meu gosto por uma letra do poeta Antonio Cicero que ela canta três vezes seguidas no cd Daúde # 2. Ela diz que Caetano fez a música para ela, e fala o primeiro verso: “Por uma estranha alquimia”. Digo os “elementos” do segundo verso.

A seguir, a letra transcrita de Guardar – livro de poemas que deu a Cicero um prêmio Jabuti, e onde a leveza é combustível.

QUASE

Caetano Veloso e Antonio Cicero


Por uma estranha alquimia
(você e outros elementos)
quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.
Havia só a magia
dos seus aparecimentos
e a música que eu ouvia
e um perfume no vento.
Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa,
é quase quase alegria.
Quase fui feliz à beça
mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.