e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Poética sertaneja



O texto a seguir foi escrito pelo poeta Carlos Magno Fernandes, professor da UFPB,.e publicado no blog Caminhos Cruzados: www.palavora.blogstop.com
 
 
Poeta e professor, Nonato Gurgel acaba de lançar seu primeiro livro de poemas, intitulado miniSertão (Ed. Caetés, Rio de Janeiro, 2014). Trata-se, sem sombra de dúvidas, de uma poesia refinada e concisa, inspirada sobretudo por suas andanças pelo sertão do Rio Grande do Norte, onde trabalhou com extensão rural no interior do estado e colocou em prática o humanismo defendido por Paulo Freire em Extensão ou Comunicação?, e por suas incansáveis leituras (em uma das inúmeras epígrafes utilizadas pelo autor, podemos perceber: "Os livros são nossa perdição. Os livros deram-me mais que as pessoas", Marina Tsvetáieva, Vivendo sob o fogo).

Nessa perspectiva, o autor convocou um paideuma heterogêneo e extenso para compor sua obra. Em epígrafes, citações nos próprios poemas ou ainda em introdução às partes do livro, aparecem trechos de Paul Valéry, Walter Benjamin, José de Alencar, Oswaldo Lamartine, Ricardo Piglia, Jorge Fernandes, Pero Vaz de Caminha, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo, Davi Arrigucci Jr., Clarice Lispector, Paulo Ronai, Manuel Cravino, Charles Baudelaire, Ana Cristina Cesar, Roland Barthes, Italo Calvino, Cesar Aira, Eli Celso, Elizabeth Bishop, Veríssimo de Melo, Haroldo de Campos, Fernando Fiorese, Marina Tsvetáieva, Mateus (Bíblia), Mário de Andrade, Gilles Deleuze, Carlos Drummond de Andrade e Marco Antônio Saraiva.

Diante dessa tradição literária eclética, Nonato Gurgel percorre o sertão de sua memória com segurança e desenvoltura, através de procedimentos poéticos da contemporaneidade: a citação, a intertextualidade, o lúdico, a concisão. É uma viagem a que o poeta nos convida enquanto leitores: um percurso pelo sertão munidos com a bagagem dos ensinamentos dos autores de sua predileção. Livro maduro, como uma fruta madura colhida na planta sertaneja!

 

O olho não se sacia
Haroldo de Campos, Qohélet-Eclesiastes

 

Olho no cio das cores
lê a tarde tangendo o sol
leitor de íris e arcos

Dedos pelas teclas
agitados feito bicos
de aves ávidas

pelas letras


Nonato Gurgel, miniSertão, Rio de Janeiro, Ed. Caetés, 2014


domingo, 20 de julho de 2014

russo de roer


Foi só o tempo que errou.

Renato Russo
 
para os mestres Ilza Matias,
Luiz Alberto e Fernando Vieira,
gauches no país do magistério

  
Dado à dor e à disciplina
à liberdade no confronto 
entre a loucura e o amor
ele ouvia ecos bíblicos
tinha mania de eleger
era máquina de optar

Destemido quanto à língua 
e o pau pra fora no palco
viveu a vertigem de ser
livre gauche incendiado
do afeto perdeu os prazos
luz e cinzas sobre o Rio é

Preveu o só o caos tocou
fogo nos mitos bebeu
o mar aberto a tempestade
o que vem é perfeição
minha laranjeira verde
animal que lodo sou

Fênix que ao voar devora
o tempo e trilha sonora é
do Brasil redemocratizado
releu ruínas sacras e cinzas
o livro dos dias e o sopro 
do dragão na ceia dos sonhos


 
 
Natal/Rio, 20 de julho de 2014


 


quinta-feira, 17 de julho de 2014

sertão de mitos e afetos


Tribuna do Norte, 17 de Julho de 2014


Yuno Silva
repórter

“O ‘miniSertão’ dialoga com o ‘Grande Sertão: Veredas’ de Guimarães Rosa. Ele, Euclides da Cunha e Graciliano Ramos são os patronos deste livro”, resume o poeta Nonato Gurgel, que coleciona versos há três décadas e enxerga a compilação como “uma declaração de amor ao Sertão, o sertão literário de Oswaldo Lamartine”. Potiguar de Caraúbas radicado há 16 anos no Rio de Janeiro, onde é professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Gurgel está de passagem por Natal para participar como convidado de uma banca de Doutorado, e aproveita a ocasião para apresentar sua cria nesta quinta-feira, às 15h, no Departamento de Letras da UFRN/CCHLA.

O autor avisa que o lançamento de “miniSertão” (Editora Caetés, R$ 25) será simbólico, mas adianta que o título poderá ser encontrado no Sebo Vermelho e na Cooperativa Cultural Universitária.

Repleto de referências literárias e culturais, o livro traz epígrafes diluídas como se fossem pistas que revelam um pouco da personalidade do autor e sua relação com o universo literário, caso de “IV – Corpo que lê” (pág. 69) que traz citação da poetisa russa Marina Tsvetaeva (1894-1941): “Os livros são nossa perdição. Os livros deram-me mais que as pessoas”. Nonato faz uma releitura dos livros, mitos, lendas e geografia sertanejas, e apresenta uma paisagem livre das abstrações místicas e ideológicas: “Meu Sertão é terreno, pé no chão, e inspirado por Oswaldo Lamartine (1919-2007) tive a ousadia de misturar literatura com Agronomia”, disse o autor, ex-servidor da Emater.

Apesar de impregnadas pela atmosfera do Sertão do Seridó, as poesias de Nonato não se enquadram no que costumam chamar de ‘leitura regional’. “É um livro de memórias, das andanças pelo Seridó, Rio de Janeiro e sertão mineiro, com uma vereda universal, cosmopolita”, analisa o autor, confessando que demorou a aceitar que o Sertão era o grande personagem do livro. “Sem ele (o Sertão) não haveria nada a publicar”.

Escritor de ritmo lento, é nítido o cuidado com que cada palavra, cada frase e cada verso se interligam, como em uma colcha de retalhos tecida infinitamente. “Acho que vou passar a vida (re)escrevendo esse livro, penso em uma segunda edição com pelo menos 20 alterações. Não penso em outro livro por enquanto, e sim em continuar lapidando este”.

Para Nonato Gurgel, “miniSertão” funciona como o trailer de um filme que traz as várias fases de sua vida, suas leituras e suas influências culturais, tanto que o prefácio é substituído pela ‘voz’ do poeta Jorge Fernandes (1887-1953): em uma carta para Câmara Cascudo (1898-1986) o modernista escreveu “ande vire”, como uma sugestão para o leitor seguir em frente.

Gurgel trabalha a tanto tempo no projeto que a primeira ‘boneca’ do livro mereceu comentário do jurista, professor e pesquisador Veríssimo de Melo (1921-1996), em artigo publicado nesta TRIBUNA DO NORTE em dezembro de 1993. É dele o trecho a seguir que acabou na contra-capa do livro: “Poesia de primeira água. Excelente por todos os títulos... Há miniaturas de Nonato que são magníficas da paisagem nordestina... A luz que ilumina a maioria dos seus versos anuncia uma visão nova das coisas e do mundo”.


No poema a seguir, o autor relembra a visita que fez a Cascudo





Natal, Av. Junqueira Aires

                                                                                         A vereda em vez do elevador 

    
                                                                                                          Câmara Cascudo
                                                                                    

                                                                                   Para Aluísio Barros que foi comigo

Ouvimos na chegada
sou mouco vejam bem
não façam perguntas

Paredes assinadas
e livros do chão até
o teto do homem
que leciona sertão:

“você tem o direito
de subir a montanha
pela vereda que escolheu”


segunda-feira, 14 de julho de 2014

uma dose de João


O amor, como a democracia, dá muito trabalho.
Ambos exigem muito investimento, principalmente
de caráter e afetivo.
 
João Antonio

 
Com trânsito bastante produtivo nos universos da literatura e do jornalismo, João Antonio assumia ser o tipo de escritor atraído pela vida e pelas formas que vingam às margens da sociedade brasileira. Ele preferia escrever sobre coisas experimentadas, situações vividas no corpo e na fala. Repórter de ícones importantes da mídia na década de 70, como a revista Realidade e jornal O pasquim, ele atravessou grande parte do Brasil urbano e rural, e parecia fascinado pelas coisas da cultura popular.
 
Alguns dos seus personagens exemplificam aquele narrador clássico, de quem nos fala Walter Benjamin, um narrador calcado na oralidade, conectado com a fala cotidiana e seus desvios. Como sabemos, este tipo de narrador recorre ao seu “acervo” de experiências próprias e alheias, a fim de inscrever a sua aprendizagem, os seus deslocamentos. Ele tem uma norma de vida que deseja repassar, ao vivo, na cara do freguês, como ensina a lição do crítico alemão, a partir da leitura que ele faz do russo Leskov e seus personagens agrários.
 
Esta narrativa que testemunha a experiência vivida e a memória - como lemos no texto de João “Corpo-a-corpo com a vida” - possui uma linhagem vigorosa em nossa literatura. A essa linhagem filiam-se autores da maior importância, como Graciliano Ramos e Lima Barreto. No século XX, estes autores são  parâmetros estéticos e culturais para a abordagem temática do cotidiano das camadas populares, e das linguagens produzidas pelas diferentes culturas brasileiras. Assim como João, os dois autores modernistas não enfeitam. Eles detestam a gordura literária; leia-se: eles deletam o excesso, a grandiloqüência.
 
 
sem cânone nem leitor
 
 
 
Influenciado pelo cinema de Glauber Rocha e pela literatura moderna, João Antonio considerava Lima Barreto o “maior romancista” da chamada República Velha, sendo Afonso Henriques de Lima Barreto o primeiro nome que aparece na dedicatória de Malagueta, Perus e Bacanaço. Por isso, ressalto a leitura de Antônio Arnoni Prado, ao reconhecer a filiação tonal da narrativa de João Antônio à escrita de Lima Barreto; isso se pensarmos em questões como ética, forma social e estética. Questões sugeridas nos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), sucesso de crítica que resultou em dois prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos).


Nas relações traçadas entre as ações dos personagens de João Antonio e suas falas, o texto escrito e o contexto social dialogam de forma determinante para a produção das linguagens que o autor constrói. Essa construção leva em conta a oralidade da tribo na qual ele age, e a visibilidade cortante que perpassa a retina do seu cotidiano concreto e carnal feito de sinucas, garrafas, tampas caídas, cafua, barrigas famintas, lutas, animais, jogos da rua... 
 
Apenas um seleto grupo de leitores conhece a obra de João Antonio. O autor de Malhação do Judas Carioca é lido por poucos e importantes nomes da crítica literária. Sua obra é ainda pouco estudada no universo acadêmico onde merece, sem dúvida, maior divulgação. É urgente a leitura deste autor não inscrito, premiado. Principalmente para os alunos dos cursos de Letras. Talvez não seja uma leitura pela qual o leitor se apaixona de cara, como acontece com Fernando Pessoa, por exemplo. João dá trabalho. Muito trabalho. Como o amor e a democracia.
 
 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma Arte


                                                        Elizabeth Bishop – trad. Paulo Henriques Brito


A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! e nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder
não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo,
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.



domingo, 6 de julho de 2014

copa violenta



Pancadas e quedas, sabemos, fazem parte do espetáculo do futebol. Teatro movido por altos gráficos capitalistas e discursos eufóricos ampliados por toda a mídia, o futebol está cada vez mais agressivo. Nunca vi copa mais violenta. Copa violenta sob as bênçãos dos árbitros indiferentes, burocráticos. É estranho não rolar sequer um cartão amarelo neste lance do jogador colombiano com Neymar.

No gramado, assim como na vida, são muitas as "pancadas": a vértebra partida do nosso craque, a mordida do vampiro uruguaio, a euforia dos jogadores de Gana beijando grana. Além destas ações violentas, duas outras "pancadas" deixam a copa mais triste: o baixo número de crianças negras ou pardas entrando em campo com os jogadores, e vaias.

Ao contrário do que pregam os discursos politicamente corretos, nas arquibancadas é pequeno o número de negros, assim como são raras as crianças negras que entram em campo. Vaiar o hino de um país adversário, como fizeram com o Chile, é covardia. Vaiar a presidenta, com palavrões, também é covardia, além de parecer atitude antidemocrática de rico mal educado.

Com ou sem Neymar, tendo a ter mais simpatia por quem não vaia.

 

sábado, 5 de julho de 2014

Copa



Sim, dá para sonhar sem Neymar.

Agora que a semifinal se anuncia, na próxima terça-feira em BH, antecipo aqui as memórias de um torcedor que acredita no hexa. Um torcedor que confirma, maduro, o que todo brasileiro parece nascer sabendo: a identidade e o caráter de um país tem muito a ver com a forma como o seu povo joga, como se comporta em campo, como este povo atua em relação aos seus adversários.

Narradores esportivos

Aprendiz de futebol, fui convertido nesta copa. Das copas que vi, esta é, sem dúvida, a que mais me chama atenção. Não apenas pelo esporte, mas principalmente por ela acontecer no Brasil. Como todos, tenho visto e ouvido bastante sobre futebol. Sinto-me envolto numa teia narrativa que não cessa, e me acompanha no ap, na rua, no taxi, no elevador, na fila da padaria. Tá tudo dominado. Dominado pela euforia que o futubol esbanja e oferta a todo ser independente da sua origem, corte de cabelo ou destino. 

Além da euforia dos torcedores, impressiona-me a atuação dos narradores esportivos e seus discursos edificantes.  Como são afirmativos, animados, entoados os narradores esportivos. Como eles levam a sério a matéria de suas narrativas em datalhes que somente um bom narrador repete e repete e repete. Imagino o que poderia render, nos campos da educação e da saúde, por exemplo, se esta alta cota de afirmação e foco fosse injetada na porção política e no olhar social de cada um que torce.

Como muitos torcedores, detesto o autoritarismo de Dona Fifa. Ela nos deve. Deve, no mínimo, uma final mais decente do que aquela festa boba da abertura. Mas, além da vitória na final, não espero grande coisa de um evento ritmado nos saltitos de Shakira e Ivete. Torço para que a cota de brasilidade que se anuncia esteja à altura do que o país é em graça, beleza, em nossa afirmação multicultural da miscigenação. O Brasil perante o mundo "sob o timbre da mestiçagem" (Wisnik).