e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 22 de junho de 2013

maior que um Passe




A internet promulga sua "constituição" no Brasil. Ela mostra que existem mais conexões entre a tela do pc e a rua do que supõe a nossa infinita fome de ideologia. O dedo que tecla, sozinho, na solidão do quarto, pertence ao mesmo corpo cuja perna vai à rua misturada a milhares de outros pés. Uma língua do pé feita de passes e passagens.


Passada a primeira semana do movimento Passe Livre, dá para perceber que isso é o começo de uma coisa maior em construção. Uma coisa maior que um Passe. Bem maior que a ação - reprovada, minoritária - dos vândalos. A serviço de quem eles queimam e quebram o que será pago por todos nós?

 
Embora pense que o pronunciamento federal pudesse ter outro tom, é bom perceber que Dilma olhou o país no olho e disse: vamos conversar. Isso é nutritivo para a democracia; lembrando que, na história do Brasil, não tivemos períodos democráticos mais longos do que os últimos 29 anos.  
 
 
Sabemos que o exercício democrático é difícil; sugere diálogo e atualização dos discursos. O som da rua, em uma semana, tornou obsoleta a conversa melódica de partidos que governam há anos. Alguns desses, em sintonia com os setores da economia, utilizam dispositivos e tons dos tempos da ditadura.


Independente de classe social, profissão e faixa etária, os discursos e gestos do Passe Livre possuem outros ritmos e tons. Eles são rápidos e breves.  Como na internet. O dedo virtual gosta de abreviar. Como no cartaz da rua: "menos eu e mais nós".
 
 

sábado, 15 de junho de 2013

quinta-feira, 13 de junho de 2013

para despertar vocação



Num país que lê pouco, e cuja bibliografia sobre a profissão e o exercício do magistério é curta, o livro Conversas com um professor de literatura (Rocco, 2013), de Gustavo Bernardo, é uma leitura imprescindível. Fazia falta, no universo pedagógico e cultural, um livro assim. Um livro feito das perguntas que fizeram ao autor "ao longo de muitos anos como professor de literatura".


Conversas com um professor de literatura é um livro voltado principalmente para quem leciona ou estuda disciplinas das áreas das ciências humanas. Um texto escrito ao longo de dois anos para professores e profissionais das áreas da cultura e do saber. Para leitores que lidam com aulas e alunos, métodos e temas afins.
 

Embora trate de autores, conceitos  e procedimentos presentes em vários manuais de educação e de teoria, este livro atualiza, no contexto cultural no qual é lançado, algumas formas e ideias do seu tempo.  O autor não subordina suas leituras. Ele vai da arte e da filosofia clássicas aos produtos da cultura contemporânea. Mesmo quando encara temas "difíceis" como big brother ou Paulo Coelho, suas leituras rendem.
 
 
forma e conteúdo
 

Construído em torno de perguntas e respostas divididas em quatro partes – Educação, Redação, Literatura e Filosofia – o volume aborda também questões  existenciais e vocacionais. Essas abordagens "traduzem" alguns mitos e lendas ligadas ao discurso do senso comum, cujo eco na sala de aula é forte, como ouvimos em "Basta ler resumo?" ou "Por que lutar contra moinhos de ventos?"


Em alguns textos, as respostas do professor são "narradas" pela voz do autor. A leitura flui. Ele "narra" com leveza e alta taxa de oralidade, como ouvimos no texto "Qual é a diferença entre ética e moral?" Para elucidar essa diferença, o autor lança mão de uma história árabe, e constroi um texto híbrido que mistura lenda, conceito filosófico e fatos políticos da história racial americana.


As lições de Gustavo abrangem diferentes questões éticas e culturais. Demonstram amplo repertório estético e vasta experiência pedagógica-existencial. O uso desse repertório aliado a essa experiência é bastante produtivo, como lemos no belo "A filosofia ajuda a literatura?", onde "a narrativa de Riobaldo é atravessada pela contradição e pela pergunta".

 
tom e cânone
 

O recorte vocabular do texto é acessível a mestres e alunos. É acessível também para os demais leitores interessados nas ações de ler, escrever e pensar. Esse recorte vem acrescido de um tom coloquial, às vezes meio confessional; o que torna sedutora a audição destas “Conversas”. Nelas, quem lê tem voz. Parece que o professor explica quando o aluno não entende.



Para sua explicação, o autor recorta um luxuoso “cânone” particular: ele cita desde autores clássicos como Cervantes e Machado de Assis, até escritores modernos como Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e João Cabral. O autor relê também filósofos fundamentais como Foucault e Vilém Flusser, além de autores contemporâneos como Mia Couto e Adriana Lisboa.

 

Todos esses autores são inscritos por um professor e escritor cujo trânsito nos universos da ficção, do ensaio e da literatura infanto-juvenil é bastante produtivo (vide bibliografia no final da entrevista). Um autor que tem na práxis da leitura e da sala de aula a sua mediação como intérprete do mundo, do outro e de si. A seguir, quatro perguntas para ele.
 
 
 
 

"O mundo é um texto a ser interpretado com cuidado"



NG: Gustavo, para que serve um professor no século XXI?
 
GB: Ele continua a ser um exemplo para os alunos, quer o professor esteja consciente disso ou não. Pode ser um bom exemplo – alguém que está sempre lendo, investigando, perguntando, duvidando, aprendendo – ou pode ser um mau exemplo – alguém que não lê mais, que não tem mais dúvidas, que não respeita o aluno como o outro que não sabe mas quer e precisa saber.
 
NG: No capítulo “A filosofia ajuda a literatura?”, você faz uma bela leitura do "Grande Sertão" de Guimarães Rosa. Utilizando o recorte vocabular deste autor mineiro, você diz: “A palavra, como o Diabo, tem rabo.” O que sugere essa conexão entre o verbal e o demoníaco?
 
GB: Aprendemos com a ficção que toda palavra, toda frase, toda ideia tem uma sombra, um não dito que na verdade se diz junto com o dito, mas subliminar e inconscientemente. Aprendemos também que todo discurso é fundamentalmente ficcional, hipotético. Logo, precisamos sempre pensar o que se diz na sombra das palavras. O mundo é um texto a ser interpretado com cuidado. Cada pessoa também é um mundo, logo, cada pessoa também é um texto a ser interpretado com cuidado.
 
NG: Como professor de uma das universidades que melhor acolheu o sistema de cotas no país, você assume que era contra, mas que hoje continua contra, embora seja a favor. Justifica que esse sistema compromete o “princípio básico do mérito”.  Gostaria que comentasse acerca dessa questão.

 
GB: Os candidatos a uma vaga na universidade devem ser julgados com a mesma medida, independentemente de classe social ou cor da pele. Por isso no início achava que as cotas eram uma solução que escamoteava o verdadeiro problema: a baixa qualidade da escola pública, associada à desvalorização crescente do professor brasileiro. Este é o problema que deveria e deve ser atacado. Entretanto, o resultado efetivo dos alunos cotistas na UERJ, que não deixam nada a dever aos colegas não-cotistas, transformou uma iniciativa populista e demagógica num problema político muito interessante. Estes alunos seguram com garra essa oportunidade e dessa maneira forçam colegas e sociedade a rever seus preconceitos sociais. A experiência das cotas acabou escrevendo certo por linhas tortas, digamos assim.

 

NG: Quais dos seus livros você prefere e por quê?

 
GB: Bem, publiquei 22 livros: 1 volume de poemas, 10 romances e 11 ensaios.

O romance de que mais gosto é o último, "O gosto do apfelstrudel", talvez porque seja o último e porque mergulhei minha vida nele. O romance conta tudo o que passou pela cabeça do meu pai durante o mês em que esteve em coma, antes de morrer. Como eu soube disso? Eu não soube, eu inventei – e assim, acabei sabendo.

O ensaio de que mais gosto é o que estou escrevendo agora; imagino que só consiga terminá-lo no ano que vem. Chama-se “A ficção de Deus”. Nesse ensaio, procuro mostrar a estreita relação entre literatura e religião, a partir do personagem Deus e sob o ponto de vista de quem não crê, mas admira quem de fato acredita em Deus.
 
 

bio-bibliografia


Gustavo Bernardo Krause nasce no Rio de Janeiro em 1955.

É mestre em literatura brasileira e doutor em literatura comparada. Professor Associado na UERJ, leciona Teoria da Literatura.

Publicou um livro de poemas, "Pálpebra" (1975).

Romances: "Pedro Pedra" (1982), "Me nina" (1989), "Lúcia" (1999), "A alma do urso" (1999), "Desenho mudo" (2002), "O mágico de verdade" (2006), "Reviravolta" (2007), "A filha do escritor" (2008), "Monte Verità" (2009) e "O gosto do apfelstrudel" (2010).

Ensaios: "Redação inquieta" (1985), "Quem pode julgar a primeira pedra?" (1993), "Cola sombra da escola" (1997), "Educação pelo argumento" (2000), "A dúvida de Flusser" (2002), "A ficção cética" (2004), "Verdades quixotescas" (2006), "Vilém Flusser: uma introdução" (2008), "O livro da metaficção" (2010), "O problema do realismo de Machado de Assis" (2011) e "Conversas com um professor de literatura" (2013).

Organizou e publicou as coletâneas: "Literatura e sistemas culturais" (1998), "Vilém Flusser no Brasil" (2000), "As margens da tradução" (2002), "José de Alencar" (2002), "Literatura e ceticismo" (2005), "Contos de amor e ciúme de Machado de Assis" (2008), "Machado de Assis e a escravidão" (2010) e "A filosofia da ficção de Vilém Flusser" (2011).

 

sábado, 1 de junho de 2013


1 – Evando, como você se tornou personagem de Derrida?

 
Gostei da formulação da pergunta: “como você se tornou personagem”. Isso indica, de pronto, o aspecto romanesco de toda vida e de toda biografia. É, portanto, como pequeno personagem de uma grande vida que respondo. Mas desconfio que, para bem cumprir a tarefa, teria de escrever minha própria autobiografia, que, claro, não tem muita importância. Relembraria, no entanto, que Derrida apareceu em minha vida quando ainda realizava o curso de Letras na UFBA. Uma excelente professora de teoria da literatura, Evelina Hoisel, hoje titular da disciplina, se referia com entusiasmo não só a Derrida mas também a Foucault, Deleuze e Barthes. Desses, Barthes foi sem dúvida minha primeira paixão e acabou fornecendo a base da dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio, ainda nos anos 1980, quando lá ensinava Silviano Santiago, organizador do Glossário de Derrida (de 1976). De Derrida, li, inicialmente em português, a maior parte dos textos de A escritura e a diferença, da Gramatologia, de Margens – da filosofia. O magnífico “A farmácia de Platão” foi o único que li no original antes de ir à França.

Pois bem, em 1991, recebi uma bolsa de pesquisa do CNPq para acompanhar os seminários de Sarah Kofman sobre Nietzsche na Sorbonne e também para fazer pesquisas sobre aqueles autores cujas ideias embasavam meu projeto de Doutorado, justamente os quatro cavalheiros acima citados, além da própria Kofman e de Kristeva. Por questões administrativas, demorei a obter uma inscrição na Sorbonne (mas depois consegui) e assim fui procurar outro professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Em função do projeto, fui aceito por Derrida como seu aluno. Aí começa toda uma história que narrei em dois artigos diferentes, publicados no “Prosa & Verso”, do Globo (em 2010), e na “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo (este ano).

Como aluno efetivo, tinha o direito de discutir regularmente minha pesquisa com Derrida, chegando a apresentar um trabalho em seu seminário. Fiquei espantado com a quantidade de livros que ele havia publicado até então, cerca de quarenta, desconhecidos no Brasil. Em seus textos, reencontrava algumas temáticas e descobria novas que me acompanham até hoje: a questão da metafísica, a centralidade do poder e a necessidade do descentramento, a amizade, a implicação permanente entre vida e morte, a diferença sexual, a alteridade etc. Assim, acabei escrevendo uma tese a partir do tema da literatura em sua obra, que se tornaria o livro Derrida e a literatura. Depois que defendi a tese, em 1995, fiquei mais um ano na França dando aulas na Université Stendhal, de Grenoble, onde já trabalhava desde 1993.

Em 1996, retornei em definitivo ao Brasil, mas mantive contato com Derrida, voltando a visitá-lo em seu escritório na Maison de l’Homme, em Paris. Em 2001, na segunda viagem dele ao Brasil, começamos a projetar a ideia de um colóquio internacional sobre sua obra. Por razões de ordem prática, o colóquio foi adiado, e, quando enfim pudemos realizá-lo, Derrida já estava muito doente. Apesar disso, ele manteve a palavra e veio ao grande evento realizado, numa parceria do Consulado da França e da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Teatro da Maison de France em 2004. Proferiu a conferência de abertura, participou de todos os debates, deu autógrafos e até concedeu uma entrevista para a GloboNews.

Por um lance do acaso, essa acabou sendo sua última viagem e também sua última aparição pública. Pouco antes de vir ao Rio para o colóquio, ele dera uma longa entrevista ao jornal Le Monde (“Je suis en guerre contre moi-même” [Estou em guerra contra mim mesmo], concedida a Jean Birnbaum e depois publicada como o livro Apprendre à vivre enfin [Aprender a viver, enfim]. Ed. Galilée, 2005), na qual havia uma referência à sua destinação ao Brasil. Isso chamou a atenção de seu futuro biógrafo, Benoît Peeters, que, ao começar as primeiras pesquisas, desejou saber como e porque o pensador tinha feito essa longa travessia do Atlântico, num momento em que sua saúde já era muito precária. Foi assim que um dia, em 2007, interrompendo um estágio de pós-doutorado que realizava na Universidade Livre de Berlim, fui a Paris relatar um pouco de minha relação com o pensamento derridiano, bem como os acontecimentos daquele derradeiro e belo, mas também muito triste evento.

Essa seria, em linhas gerais, a pequena história que me tornou personagem de uma vida de fato filosófica e também muito literária. A despeito ou por causa de tudo o que disse, não me considero um discípulo de Derrida, mas somente alguém que lê atentamente seus textos há mais de duas décadas, com o fito de desdobrar seu pensamento e não apenas o de propor uma explicação fiel ou coisa no gênero. Como você sabe, tenho escrito e publicado ensaios e ficções que em parte dialogam com a obra derridiana, mas em parte também fazem algo completamente diferente. Mesmo quando o cito explicitamente, tenho até certo ponto a consciência de que o reinterpreto a minha maneira. No caso da escrita literária, a reinterpretação e o afastamento são sem dúvida ainda mais radicais. Nunca li Derrida para aplicar de modo irrefletido seus conceitos (como muitas vezes, todavia nem sempre, ocorre em textos universitários), mas para que me servissem de ferramenta a fim de compreender minimamente as coisas da literatura e da cultura em geral. Do mundo, em suma.