e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Adélia Prado


Perdi o medo de mim. Adeus.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Leitura das férias I



Dentre várias outras coisas, o bom das férias é a liberdade para ler. Ler o que quiser. Ler sem a preocupação com os planos de aulas nem com as ementas dos cursos que roteirizam a vida do professor.



Nunca tinha ouvido falar de Buell Quain – o etnólogo americano que tinha fascínio por ilhas e viagens. Gostava de escrever cartas e adormecer embalado por histórias. Cientista suicida que bebia e fumava, fazendo do próprio corpo um laboratório. Um homem silencioso que carregava segredos e “arrastava alguém no seu rastro”.



Lendo “Nove noites”, o premiado romance do Bernardo Carvalho, descobri este viajante que viveu entre os índios krahô. Ele morou numa pensão da Lapa, no Rio, e suicidou-se aos 27 anos em Carolina – uma cidadezinha morta no interior de Goiás. Cheia de mistérios, sua morte envolve problemas com afeto, dinheiro e família. Não necessariamente nesta ordem.



Criado em torno de cartas, entrevistas, fotos e relatos, este belo romance é baseado em fatos reais, mas inscreve uma forma contemporânea repleta de “memória e imaginação”.  O autor tematiza tempos modernos: o Brasil na era Vargas; os costumes e o desmatamento da selva; os roteiros de Rondon e dos irmãos Villa Boas;  o encontro de Buell Quain com Lévi-Strauss, em Cuiabá; e até a queda das torres americanas no 11 de setembro...



Sem nenhum desejo de ser governado pelos mortos, o narrador de “Nove noites” ouve os vivos que é uma beleza. Com a fome de quem atravessa o sertão e necessita de um rosto real, ele sabe que “a realidade é o que se compartilha”.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Palavra poética, cor e história

 
Maria Aparecida Andrade Salgueiro*


 

Acaba de ser lançada, pela Editora da UFMG, "Literatura e Afro-descendência no Brasil: Antologia crítica".  Trabalho de fôlego, reúne em quatro volumes, resultado de pesquisa liderada ao longo de mais de dez anos pelo Professor Eduardo de Assis Duarte, daquela Universidade. Fruto da colaboração de 61 pesquisadores de 21 universidades brasileiras e 06 estrangeiras, tendo contado com o apoio de órgãos de fomento, diferentes instituições e inúmeros cidadãos e estudantes da UFMG, a obra necessariamente conduz a novas formas de pensar a Literatura Brasileira.



Lançando foco sobre 100 escritores afro-descendentes, vindos de tempos e espaços diversos, através de ensaios e referências biográficas e bibliográficas sobre cada um deles, dos tempos coloniais até os dias de hoje, a coletânea procura organizar a ainda dispersa reflexão acadêmica atual sobre o tema, num percurso histórico que vai de clássicos (Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa) a contemporâneos (Nei Lopes, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves), passando por nomes importantes ‘esquecidos’ (Maria Firmina dos Reis, José do Nascimento Moraes). A Antologia deixa claro que seu real objetivo é “mostrar que existe uma produção literária importante que caminha na contracorrente das normas ainda vigentes no circuito literário”. Buscando mapear e conceituar, a Antologia “inclui escritos daqueles que mesmo não assumindo explicitamente um projeto literário afro-brasileiro (termo e conceituação contemporâneos), apresentam traços discursivos que os situam, em muitos momentos, numa órbita de valores socioculturais distintos dos abraçados pelas elites brancas. E que, de uma forma ou de outra, expressam tais valores, transformando-os em linguagem literária”.



Nesse sentido a obra se insere em categoria relevante dos Estudos Literários na contemporaneidade – a do resgate. Resgate de obras que, nas palavras da autora afro-americana Alice Walker, “por instintos contrários”, ou por questões múltiplas de relações de poder e hegemonia acabaram, como tantas outras, ‘perdidas’ ou ‘esquecidas’, apesar de produção literária consistente e valorosa. Rotas que necessariamente avançam na contemporaneidade ao se discutir identidade e Literatura. Nessa ótica, o trabalho de pesquisa liderado pelo Professor Eduardo de Assis Duarte trilha caminhos próprios, porém, semelhantes àqueles que foram decisivos nos Estados Unidos, para o reconhecimento e a visibilidade da produção literária dos afro-descendentes, tal como o trabalho do renomado crítico afro-americano Henry Louis Gates, Jr., e seus estudos de arqueologia literária. Ligados a estudos pós-coloniais de Literatura, ao cruzar gênero e etnia, apresentou descobertas absolutamente impensáveis até anos atrás entre os autores literários, e que passaram, então, a embasar os currículos e redimensionaram os estudos da Literatura Estadunidense.



Assim, em época de revisões, quando as ações afirmativas estão em torno dos dez anos nas Universidades no Brasil, a “Antologia Crítica”, ao lançar um novo olhar sobre a Literatura Brasileira torna-se obra de referência e de encontro identitário para o amplo grupo de alunos afro-descendentes que ingressou na Universidade pelo sistema de cotas e que tem sido submetido a currículos fundamentalmente eurocêntricos. É obra que servirá como fonte de referência para aqueles que devem aplicar a Lei 10.639/2003 que estabelece que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileiras.”



Com metodologia rigorosa, liderança firme, metas claras e definidas, a obra constitui um marco, um ponto capital, e destaca-se no cenário da pesquisa propositiva em Letras em nosso país. Apresenta produto de trabalho sério e orgânico, organização, consistência e conteúdo crítico. Ao se impor o desafio de realizar pesquisa em todas as regiões do país (fato incomum na área, em geral voltada para aspectos pontuais) com vistas ao mapeamento (absolutamente inédito) e estudo da literatura produzida pelos afro-descendentes desde o período colonial, traz contribuição de peso para os estudos dessa literatura em nosso país, nos colocando, inclusive, em posição de destaque na Afro-América Latina.



Em brevíssimas linhas, um pouco da riqueza de cada um dos volumes. O Volume I – Precursores - parte do século XVIII e se dedica a 31 autores e autoras nascidos até 1930. Passando por clássicos como Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza, chama a atenção também para escritores ‘esquecidos’ ou ‘pouco lembrados’ como o poeta do século XVIII, Domingos Caldas Barbosa, e os pioneiros de meados do século XIX, Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis – autora de “Úrsula” (1859), o primeiro romance abolicionista do Brasil, cuja republicação em 2004, após mais de um século fora de circulação, vem contribuindo para a reescrita de nossa história literária. Chega ao século XX com Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento, entre outros. O volume abre com denso ensaio introdutório - “Entre Orfeu e Exu, a Afrodescendência toma a palavra” - de autoria de seu Organizador, Eduardo de Assis Duarte, e nele são traçadas de forma assertiva os pressupostos da Antologia Crítica.



O Volume II – Consolidação – nos apresenta mais 30 autores e autoras nascidos nas décadas de 1930 e 1940, entre eles, os eminentes intelectuais afro-brasileiros, Joel Rufino dos Santos e Muniz Sodré, o poeta e romancista, Domício Proença Filho, membro da Academia Brasileira de Letras, e o compositor, escritor e pesquisador da cultura afro-brasileira Nei Lopes. Entre as mulheres, a poeta, contista, romancista e ensaísta, Conceição Evaristo. O título do volume marca época quando se consolida a existência de uma vertente afro na literatura brasileira.



O Volume III – Contemporaneidade – reúne 39 autores e autoras, nascidos na metade do século XX. Entre eles, o poeta e ficcionista Cuti; Marcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro, mantenedores da decisiva série “Cadernos Negros”, publicação ativa desde 1978; Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”; Ana Maria Gonçalves, autora do romance histórico “Um defeito de cor”, vencedor do prestigiado prêmio Casa de las Américas. E ainda, Miriam Alves, Lia Vieira e, na nova geração, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva e Allan da Rosa, entre outros, com temática predominante urbana e voltada para as populações marginalizadas nos grandes centros brasileiros.



O Volume IV – História, teoria, polêmica – co-organizado com Maria Nazareth Soares Fonseca, encerra a presente série e abre novas perspectivas de avanços e formulações. Estruturado a partir de diferentes visões e impressões da sociedade brasileira e da literatura produzida por escritores afro-descendentes, reúne depoimentos de escritores e intelectuais negros, reflexões sobre a produção literária e sobre o próprio conceito de literatura afro-brasileira, refletindo a multiplicidade e a diversidade características da contemporaneidade. Os textos críticos problematizam a questão e são assinados, entre outros, por Octávio Ianni e Silviano Santiago.



A obra terá lançamento nacional, em pelo menos seis capitais do Brasil e um lançamento oficial no Rio de Janeiro, no Teatro Machado de Assis da Biblioteca Nacional, com a presença de autores incluídos na Antologia e uma homenagem a Abdias Nascimento. É o início da visibilidade do que até então não era visível ou conhecido, almejada ao longo de todo o texto por seu Organizador.



_____________



Maria Aparecida Andrade Salgueiro é Professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Pesquisadora da FAPERJ e Visiting International Scholar do Dartmouth College, nos Estados Unidos.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Perseu

 
No Dicionário de Símbolos, o mito de Perseu ilustra a complexidade da relação pai-filho, filho-pai, existente em todo homem. Apesar de complexa, essa relação pode ser leve (com Perseu e Medusa, Calvino abre a proposta da Leveza em "Seis propostas para o próximo milênio").



Perseu não tem pai humano. Descende diretamente de Zeus. Esse mito alado me lembra um amigo que, como Perseu, nunca teve pai. Ele era pai do seu próprio pai. Até que esse pai do meu amigo morreu. E depois dessa morte o meu amigo continuou eternamente pai. Pai para toda obra.



Paternal e alado, Perseu corta a cabeça da Medusa (simbologia da culpa). Com esse corte, ele abole  a sua própria culpa. Poucos lembram que, depois da Medusa morta, nasce Pégaso - um cavalo cujo coice abre uma fonte (ok, mestre Yoda, eu falo a sua língua). "Coice que abre uma fonte" é um bom título.




Dizem que quem prova daquela fonte é possuído por uma sede infinda. Perseu mata a sede. É o mito que simboliza o ideal realizado. Mas não pensem que é fácil. Esse ideal tem preço. Ele é realizado ao preço de combates e escolhas. Difíceis combates e escolhas corajosas, engenhosas.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Nelson Freire amanhã no Rio



O músico mineiro apresenta, dentre outros, Schumann e Liszt no teatro municipal, às 17 h. De graça. No link abaixo, a uol disponibiliza 5 faixas do cd de 1980, gravado ao vivo neste mesmo teatro do Rio onde Nelson se apresenta neste domingo.


http://www.radio.uol.com.br/#/album/nelson-freire/ao-vivo-no-tatro-municipal-do-rio-de-janeiro/19687

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Ao modo da seca

para Nonato Gurgel



Da épica resta o esqueleto da lira:
arcadas de carneiros despidas
de suas próprias cordas, cujas peles,


antes de secas no curtume do baldio,
são escritas por bizarras partituras
para grasnos e crocitos,


não com as onívoras plumas,
pelos cálamos de garras e bicos,
as carcaças da epopéia se transmutam


em elegias aos homens e odes ao pó,
onde nada é potável a vida viceja
entre larozes e fungos, vermes e lesmas,


cria-se o húmus na penumbra idílica,
e as notas recomeçam sem a escala
de sol, e sob a pedra ainda resta,


na acústica concha de um caracol,
a umidade lírica.


Marco Antonio Saraiva, Sol Sustenido, Rio de Janeiro: Mundo das Idéias, 2011.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Sócrates Brasileiro

José Miguel Wisnik


Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira
Deu um pique filosófico ao nosso futebol
O sol caiu sobre a grama e se partiu
Em cacos de cristais
As cores vestiram os nomes
E fez-se a luta entre os homens
Até os apitos finais
(Disseram os deuses imortais)



A história não esquece que a bola
Se negou mas chorou nosso gol
E vai se lembrar para sempre
Da beleza que nada derrotou
Mas quem será que diz que venceu
No país em que o ouro se ganhou e perdeu
(Derreteu)



O futebol é a quadratura do circo
É o biscoito fino que fabrico
É o pão e o rito o gozo o grito o gol
Salve aquele que desempenhou
E entre a anemia a esperança
A loteria e o leite das crianças
Se jogou



Com destino e elegância dançarino pensador
Sócio da filosofia da cerveja e do suor
Ao tocar de calcanhar o nosso fraco a nossa dor
Viu um lance no vazio herói civilizador
(O Doutor)


sábado, 3 de dezembro de 2011

somos ossos de Ovídio?

Entrevista concedida ao escritor Lohan Lage, editor do blog Autores S/A.


Lohan: Olá, Nonato Gurgel. Primeiramente, é um prazer imenso recebê-lo aqui, no blog Autores S/A. Nesta semana, o tema proposto aos poetas concorrentes do concurso foi: O Sertão. Esta ideia foi concebida a partir de uma homenagem ao escritor Euclides da Cunha, autor do livro Os Sertões. O que esta obra proporcionou a você (reações, aprendizados, trabalhos...), e o que ela representa, na sua opinião, no cenário literário do nosso país?


Nonato Gurgel: Parabéns ao blog pela escolha do tema e do autor. É um prazer falar deste livro de Euclides da Cunha, um marco na Literatura Brasileira. O texto de “Os Sertões” rompe. Há nele uma ruptura de gêneros literários e a construção de uma outra forma estética que se situa entre o ensaio e o romance. Além disso, Euclides introduz a interdisciplinaridade entre artes e ciências, possibilitando uma infinidade de leituras ideológicas, formalistas, psicanalíticas...


Essas rupturas e os demais procedimentos estéticos dos quais Euclides faz uso nOs Sertões, dizem muito da violência social que o seu texto encerra. Com medo dessa violência, adiei durante anos a leitura do livro. Li o “Grande Sertão: veredas”, de Rosa, releitura assumida de Euclides, e atravessei sertões de Graciliano, José Lins, Cascudo e Cabral, mas sempre adiando solos e desertos de Euclides. Até que, atentando para a identidade do Brasil e suas contradições, deparei com a sua dimensão paradisíaca e violeta. Dimensão essa que Euclides traduziu muito bem neste livro híbrido e viril que traumatiza e vinga. Depois dele, a literatura deixou de ser “o sorriso da sociedade”.


Lohan: Em seu ótimo texto, Overdose do real, encontrado no blog Arquivo de Formas (http://arquivodeformas.blogspot.com/), você afirma que "o perfil literário contemporâneo surge em sintonia com os gráficos da mídia e do mercado, mas de ouvido aberto ao discurso da crítica". Seria possível um autor posicionar-se de modo a atender tanto aos estímulos mercadológicos quanto aos oriundos da crítica especializada? Qual autor você apontaria, hoje, com um perfil exemplar condizente com sua visão de autor contemporâneo?


NG: Esse perfil condiz com a maioria dos autores contemporâneos publicados pelas principais editoras. Autores que freqüentam as bienais e os mega eventos, a fim não apenas de autografar e comercializar os seus livros, mas principalmente de contatar o leitor – o grande personagem desta história.


Lohan: De acordo com sua experiência profissional e de vida, o que mais importa, em um certame como este: o autor, a sua obra ou o leitor/jurado? Na sua opinião, o leitor/jurado deve valorizar a trajetória do autor-competidor ou uma análise isolada de seus poemas seria mais justa?


NG: Sabemos que, desde a produção das vanguardas e a construção das poéticas modernas, no início do século XX, o autor perdeu muito da sua onipotência. Sabemos também que, a partir deste contexto estético e histórico da modernidade, o papel do leitor e a produção da obra ganharam leituras infindas e criaram procedimentos inusitados. Neste sentido, sou borgiano e prezo muito por uma poética da leitura. Para Borges, importavam muito mais as páginas lidas do que as páginas que ele escrevia. Na verdade, essa poética da leitura consiste numa descarada declaração de amor às formas herdadas da tradição literária. Por isso, um poeta contemporâneo como Paulo Leminski pergunta no seu belo “Catatau”: Não somos os ossos da tradição?


Lohan: Nonato, pra terminar, qual conselho você deixa aos poetas dessa competição em relação a esta temática, O Sertão? Você poderia dar alguma sugestão de leitura?


NG: Gosto muito desta temática do sertão. Não chega a ser um conselho, mas uma sugestão. Sugiro aos poetas a releitura de autores da tradição modernista que possuem o sertão como tema: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, João Cabral, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Antonio Torres... No link abaixo encontra-se um texto nosso, sobre o tema do sertão, que acaba de sair na revista da Uniabeu: http://arquivodeformas.blogspot.com/2011/06/os-sertoes-e-alguma-coisa-do.html




sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

hoje é o dia do samba

Ouça Cara do Mundo  e + 4 canções de "Recanto" - o novo cd de Gal Costa

http://www.radio.uol.com.br/#/volume/gal-costa/recanto/25110

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

leve


Adivinhação da Leveza (2011), de Duda Machado, é um livro repleto de poemas aludindo à sombra, como “Revelação da sombra”, “Ok, sombra”, “Vulto”, “O que vem depois”... Outros poemas marcantes aludem à nuvem (“Explicitação da Nuvem” e “Nuvem”) e ao vento (“Como se fosse o vento”, “Nas quebradas”). O vento entra também no poema que abre o livro:



História Invisível



Era o vento entrando

pela casa, abrindo seus recessos

em varandas, instando pelo

espaço sem limites, até

se defrontar com o espelho

e logo se deter, cristalizado.



Vento sombra nuvem... Não pensem que esses signos naturais de filiação poética tradicional, sugerem alguma porção romântica do poeta moderno de “Hotel das Estrelas” (Gal Costa em Fatal, “Pela janela sozinha...”). Duda é um poeta do seu tempo. Fabrica linguagens densas. Exclui peso. Ele sabe que a leveza está nos procedimentos lingüísticos e estéticos; não nas certezas apresentadas pelas doutrinas.



Além dos signos naturais – vento sombra nuvem árvore montanha paisagem –, esta poética contemporânea possui nas idéias de reinício, retorno e recorrência (“A cada vez”, “A forma desde fora”) e na ação de refazer (“Onde estás” e “Enfim”) os procedimentos que o poeta utiliza para adivinhar o que é leve.



Nesta poética repleta de memórias, a ação de fazer parece que refaz o próprio poeta, e lembra muito uma assertiva do escritor argentino César Aira: e recomeçar era a tarefa mais repetida.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Trecho de carta relida

Vale do Ceará-Mirim, outubro de 2006



My dear

Curto a foto. Fico de pau duro só de fitá-la (quando puder diga, mesmo pelo site, a leitura da máscara). Curto a cabeça no espelho. Cheiro cabelos pretos. Biso a nuca no beijo. Torço com uma força que me surpreende. Olhando essa foto decidi: chega do pé-de-página que ocupo na tua história, porra. Esta foto é pura epifania. Acende o pavio da imaginação e a reta. Só você conhece. Segura firme, vai. O espelho afasta o fantasma do retorno que dormiu comigo no sonho. O espelho narra a luz que eu trago embutida no corpo. Por isso não posso bruscamente voltar para trás.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

relendo lição



Quem vem dribla a esclerose do dia. Atravessa éden. Entorna o rio que trago no bolso e não se molha. Nada. Jamais se afoga quem vem.


Com a persistência de quem esculpe, mama na fronte onde frui. No milagre da repartição, a garçonete engole fonemas úmidos. Alia-se. Forma trio.

Mergulho nas curvas. Da baía, deleto farpas com a plenitude do bebê que se espreguiça no carrinho ao sol, enquanto a mãe digere a bunda da vitrine ao lado.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

nas tetas de Ana de novo



I don't like: essa poética marginal acerta minha paz. Fere o silêncio viril. A letra desce da torre de marfim e, de olho no chão grotesco e banal onde a vida trisca, nenhum oh! se ouve – a poesia é vivida na veia, no ato. Na cobra laranja ligada que é boa.


Atos, fatos. Recolhendo os restos de leituras e conversas, esta poesia ouvida e escrita na mesa e na rua tem, às vezes, o luxo de ser também vivida na pele. Poesia vivenciada, como sugere Cacaso em Beijo na boca, num intertexto com "Poesia" de Chico Alvim, e "Antiode" de João Cabral:


Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo
E viva nós



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

estética dos fatos




1 – A poesia existe nos fatos.

 Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau Brasil



 2 – Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo.

 Machado de Assis, “O Espelho” in Papéis Avulsos



 3 – A construção da vida, no momento, está muito mais no poder de fatos que de convicções.

 Walter Benjamin, Rua de Mão Única



 4 - ... a teoria está muito bem, mas isso não impede que os fatos existam. ... a obediência... do cientista aos fatos não é a adversária, mas a fonte e a servidora da teoria.

 Peter Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo








sábado, 5 de novembro de 2011

Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica



Eduardo de Assis Duarte é ensaísta e pesquisador da UFMG, onde coordena o Literafro (http://www.letras.ufmg.br/literafro/). Professor do curso de Letras, ele lecionou durante quase duas décadas na UFRN onde promoveu eventos acadêmicos marcantes e publicou livros em torno das obras de, dentre outros autores, Mário de Andrade, Graciliano Ramos e Jorge Amado.



Na UFRN, Eduardo fundou o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Como seu aluno no mestrado, fiz duas das mais marcantes leituras da minha formação: “Quincas Borba” de Machado de Assis e “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Em 2010 ele participou de um evento na UFRRJ, onde leciono. Neste evento, falou com base  na sua conferência "Memórias póstumas da Escravidão", proferida num colóquio realizado em 2008 em Hamburgo, e publicada no livro "Machado de Assis e a escravidão" (editora annablume, 2010).



Autor de "Machado de Assis afrodescendente", em setembro deste ano o professor Eduardo de Assis demonstrou publicamente a sua indignação em relação ao comercial que a CEF veiculava na TV, mostrando um ator pintado de negro para representar o escritor Machado de Assis. O registro da indignação do professor e de outras vozes surtiu efeito, e a CEF refez o anuncio colocando no ar um ator negro para interpretar o nosso maior romancista.



No dia 28 de novembro, Eduardo de Assis lança, às 18h, na Biblioteca Nacional, uma coleção de 4 volumes e de fundamental importância para os estudos literários em torno da nossa tradição negra: “Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica”. Sobre a coleção, ele falou para o caderno Prosa e Verso dO Globo na entrevista a seguir.

Eduardo de Assis Duarte nO Globo



A literatura afro-brasileira é “um conceito em construção”, diz o professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde coordena o grupo de pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira”. Contribuição significativa para o edifício deste conceito, a coleção “Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica”, organizada por ele e recém-lançada pela Editora da UFMG, reúne, em quatro volumes, uma série de ensaios e referências biográficas e bibliográficas sobre cem escritores, dos tempos coloniais até hoje. Fruto da colaboração de 61 pesquisadores de 21 universidade brasileiras e seis estrangeiras, a coletânea procura organizar a ainda dispersa reflexão acadêmica atual sobre o tema, num percurso histórico que vai de clássicos (Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa) a contemporâneos (Nei Lopes, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves), passando por nomes importantes esquecidos (Maria Firmina dos Reis, José do Nascimento Moraes). O trabalho do projeto pode ser acompanhado no site .

Em entrevista ao GLOBO, Duarte diz que o objetivo da antologia não é estabelecer um cânone da literatura afro-brasileira, e sim compensar omissões da crítica nacional a autores negros — e à presença da questão racial na obra de escritores consagrados (tema de outro livro do pesquisador, “Machado de Assis afrodescendente”, de 2007).

— Nossa antologia não pretende instituir um cânone, mas trazer elementos para se refletir sobre as diversas facetas desta literatura e da literatura brasileira como um todo. Não se trata de evangelizar, criar novos altares (ou novas alturas), mas de fornecer elementos para uma formação mais aberta à diversidade, sobretudo para os jovens estudantes e pesquisadores de nossa literatura — afirma Duarte, por e-mail (leia a entrevista na íntegra abaixo).

Já disponível nas livrarias, a coleção será lançada oficialmente no Rio dia 28 de novembro, segunda-feira, às 18h, no Teatro Machado de Assis da Biblioteca Nacional, com a presença de 20 escritores cariocas (ou residentes no Rio) incluídos na antologia e uma homenagem a Abdias Nascimento.





Num ensaio da coleção, você propõe um conceito de “literatura afro-brasileira”. Como defini-la?


EDUARDO DE ASSIS DUARTE: Quando acrescentado ao texto do escritor negro brasileiro, o suplemento “afro” ganha densidade crítica a partir da existência de um ponto de vista específico — afroidentificado — a conduzir a abordagem do tema, seja na poesia ou na ficção. Tal perspectiva permite elaborar o tema do negro de modo distinto daquele predominante na literatura brasileira canônica. Os traços de negrícia ou negrura do texto seriam oriundos do que a escritora Conceição Evaristo chama de “escrevivência”, ou seja, a experiência como mote e motor da produção literária. Daí o projeto de trabalhar por uma linguagem que subverta imagens e sentidos cristalizados. É uma escrita que, de formas distintas, busca se dizer negra, até para afirmar o antes negado. E que, também neste aspecto, revela a utopia de formar um público leitor negro.


Na introdução à coleção, você aponta uma omissão histórica da crítica nacional quanto a autores negros, ou quanto a essa dimensão da obra de autores reconhecidos, como Machado de Assis. A que pode ser atribuída essa omissão?


O ponto de vista afroidentificado nem sempre se explicita como em muitos autores contemporâneos. E isto também tem a ver com o público leitor de outras épocas, sobretudo do século XIX e de pelo menos metade do século XX. O próprio Machado se considera um “caramujo” a dissimular sua negrícia perante o leitor branco de seu tempo. É um capoeirista da linguagem, como já afirmou Luiz Costa Lima. Por trás da aparente superficialidade de muitos de seus contos e romances, como “Helena”, está a crítica ao discurso senhorial e à branquitude que busca naturalizar esse discurso como verdadeiro. De fato, só mais recentemente tais aspectos passaram a ser enfatizados, em função do predomínio anterior de paradigmas críticos formalistas e/ou marxistas, entre outras razões. O eurocentrismo, a assunção dos valores estéticos ocidentais como norteamento crítico relegou muitos autores negros ao esquecimento. É o caso de Lino Guedes, que deixou 13 livros publicados entre os anos 1930 e 1940 e foi ignorado pela crítica modernista e pela história literária desde então. E este é apenas um exemplo. Poderia citar Solano Trindade, Nascimento Moraes, Raimundo de Souza Dantas, entre outros.



Em 2007, você publicou “Machado de Assis afrodescendente”, e agora volta a incluí-lo na antologia, no volume dedicado aos “precursores”. Como a questão racial se coloca na obra de Machado, muitas vezes tomado como avesso às questões políticas de seu tempo?


Machado é de fato um precursor, um ancestral que deixou inúmeras lições, e não apenas para os escritores negros. Tem razão Octávio Ianni quando, num texto magistral de 1988 que fizemos questão de incluir no volume 4 da antologia, aponta-o, juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil, sendo, portanto, “clássico duas vezes”: da literatura brasileira e da literatura negra. Ousaria dizer que o considero três vezes clássico, pois o é também da literatura mundial e, neste ponto, concordo com Harold Bloom. Machado é precursor da literatura afro-brasileira por diversas razões, conforme tentei mostrar no livro de 2007. Ressalto apenas duas, a segunda decorrente da primeira: o ponto de vista afroidentificado, não-branco e não-racista, apesar de toda a discrição e compostura do “caramujo”; e o fato de matar o senhor de escravos em seus romances, criando um universo ficcional que é alegoria do fim da escravidão e da decadência da classe que dela se beneficiou ao longo de mais de 300 anos de nossa História.


Além de Machado, você cita outros autores que se viram “encurralados entre a assunção e o recalque da afrodescendência”, como Cruz e Sousa, Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis. Quais foram as consequências dessa posição na obra e na recepção crítica desses autores?


São inúmeras e infelizmente não há espaço para detalhar todas elas. Fico contente com a menção a Maria Firmina dos Reis, autora de “Úrsula”, primeiro romance abolicionista, publicado em 1859, e, sem dúvida, texto precursor. Firmina coloca o negro como referência moral da narrativa: nela, os brancos, quando bons, assim o são porque conseguem ser tão bons quanto o jovem escravo Túlio... E este ponto de vista, absolutamente revolucionário para o Brasil de meados do século XIX, juntamente com outros méritos do romance, não foi suficiente para retirar Firmina do mesmo esquecimento que recai sobre outros autores negros. A autora chega a se desculpar no prólogo por ser mulher de pouco estudo... Já Cruz e Sousa, apesar da militância abolicionista, dos inúmeros poemas, crônicas, cartas, e do contundente testamento literário que é o “Emparedado”, continua caracterizado por muitos como “negro de alma branca”. Em geral, dele só se lêem “Missal” e “Broquéis”. Quando digo que estão encurralados, remeto à branquitude dos conceitos e valores críticos hegemônicos, detentores do poder literário capaz de elevá-los ou deixá-los no limbo, e isto ainda hoje, em pleno século XXI. Se verificarmos atentamente, é possível que o romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha” — onde Lima Barreto desnuda o racismo que perpetua a escravidão dissimulada —, não faça parte de nenhum programa de literatura de nossos cursos de Letras. Polêmico e provocador, Lima Barreto respondia sempre que o indagavam pela identidade étnica: “negro ou mulato, como queiram”... Resultado: morreu vendo serem-lhe fechadas todas as portas da cidade letrada.


O que há de mais singular na formação e no desenvolvimento da literatura afro-brasileira, em comparação com processos similares no resto do mundo?


Esta é uma questão complexa. Talvez o fato de os autores, sobretudo de 1930 em diante, terem a todo instante de declarar a palavra “negro” como instância de afirmação de uma identidade denegada pelo imaginário social hegemônico. Isto ocorreu também nos Estados Unidos, com o “New Negro Movement” e nos países francófonos com a “Négritude”, que assumiu a palavra “negro” como enfrentamento ao sentido pejorativo nela alocado. Tal rebaixamento decorre também do estigma que, a partir do discurso bíblico, envolve o signo “negro” no Ocidente. A transformação do negro em tabu linguístico talvez seja o mais cruel legado da escravidão. No dicionário, vemos dezenas de “sinônimos atenuantes”: preto, pardo (este adotado oficialmente pelo IBGE), marrom, moreno, bombom, chocolate... Diante disso, são inúmeros os autores a destacar a assunção pelos próprios afrodescendentes do estigma que os desqualifica a partir da cor da pele. E, diferentemente dos escritos africanos de língua portuguesa, na literatura afro-brasileira é uma constante a repetição de versos como “sou negro, meus avós foram queimados pelo sol da África”, como podemos ler em Solano Trindade.



Num dos textos da coleção, você afirma que a tese da democracia racial, no Brasil, “cristaliza a pátria como instância mítica de apagamento das diferenças”. Como a literatura afro-brasileira contesta a tese da democracia racial e que interpretações da sociedade nacional oferece em contraposição a ela?


Fico apenas num exemplo: já em 1915, em pleno São Luís do Maranhão dominado pelas oligarquias herdeiras do escravismo, o escritor negro José do Nascimento Moraes publicava seu romance “Vencidos e degenerados”, também presente na antologia. O livro se inicia às 8 da manhã do dia 13 de maio de 1888, algo raro, para não dizer inédito, no romance brasileiro. Além de toda a agitação ali ocorrida, traz, quase como crônica histórica, as reações provocadas pela nova situação na subjetividade e no comportamento de antigos senhores e dos novos homens e mulheres livres. Há cenas de crueldade e violência que nada ficam a dever a narrativas como “Cidade de Deus”, de Paulo Lins ou “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves: ex-escravos que devolvem no rosto dos antigos senhores as bofetadas que sofriam diariamente; outros que apedrejam suas mansões; outros que deixam o jantar queimando no fogão... E há brancos revoltados que se articulam para dar o troco, ou que, em desespero, investem contra os próprios filhos. Nascimento Moraes traça um panorama realista do regime servil e de sua continuidade sob novas formas de exploração, respaldadas pelo racismo, tal como previsto por Machado de Assis. E, muito antes de Gilberto Freyre, desconstrói o 13 de maio como happy end apaziguador e consagrador do mito da escravidão benigna. Hoje, escritores como Oswaldo de Camargo, Cuti, Miriam Alves, Conceição Evaristo têm na denúncia do preconceito um dos pontos centrais de seu projeto literário.


Como você interpreta a situação da literatura afro-brasileira hoje? Que temas são os mais importantes e como se dá a circulação dessas obras no mercado nacional?


Costumo dizer que, no meio acadêmico, a literatura afro-brasileira é um conceito em construção, isto é, em discussão. Na prática, ou seja, verificando-se o volume de textos acumulados todo este tempo, não há como duvidar da existência desta vertente de nossas letras, ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira, como já defendia Octávio Ianni no ensaio aqui citado. É uma produção consistente, que se afirma pela diferença. Na poesia de Oswaldo de Camargo, Éle Semog, Oliveira Silveira, Cuti, Miriam Alves, Edimilson de Almeida Pereira, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Salgado Maranhão, e Cristiane Sobral, entre outros, expressa de diversas formas a positividade do ser negro, mulher ou homem; revisita a História, celebra os ancestrais e as divindades do culto afro; e denuncia, às vezes de forma explicitamente militante, a discriminação contemporânea. Mas trata também de tópicos mais universais, situando-os em nova perspectiva, o erotismo, por exemplo. Na ficção, reproduz estas linhas de força, em especial a recuperação crítica do passado, como em “Crônica de indomáveis delírios” e “Bichos da terra tão pequenos”, de Joel Rufino dos Santos; “Ponciá Vicêncio”, “Becos da memória”, e “Insubmissas lágrimas de mulheres”, de Conceição Evaristo; “Vinte contos e uns trocados”, “Mandingas da mulata velha na cidade nova” e “Oiobomé”, de Nei Lopes; além de “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves; persiste ainda uma linhagem contundente sem se descuidar da leveza vinda do humor, a exemplo de “Contos crespos”, de Cuti, ou “Mulher mat(r)iz”, de Miriam Alves ou “Só as mulheres sangram”, de Lia Vieira. São obras que circulam majoritariamente em circuitos alternativos, infelizmente. Resta torcer para que consigam atingir maior visibilidade e, quem sabe, cumprir a utopia que os move: formar um público afrodescendente que com eles se identifique.


terça-feira, 1 de novembro de 2011

Poema de Finados



Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.


Manuel Bandeira


 outros roteiros da morte aqui no Língua do Pé

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

bandeira do divino


Uma versão deste texto foi utilizada na Aula da Saudade proferida em 1993 para a turma concluinte do Colégio Agrícola de Ceará-Mirim-RN.


I


Deus está solto

O único assunto é Deus
Deus salva; arte, alivia

Deus é curvo e lento
Deus não joga dados

Deus faz e junta
Deus sabe o poder das coxas

Deus não existe, mas é muito justo
Deus não castiga sem ter avisado antes

Deus é paciência. O contrário, é o Diabo. Se gasteja.


II

A raça humana
é uma semana
do trabalho de Deus

Um Deus dormiu lá em casa
e foi bom: acordei tarde
Deus não curte quem cedo madruga

A íris do olho de Deus tem muitos arcos


III


La fora, Deus nas acácias
Deus se expressa melhor pelo silêncio

Quando Deus quer penetrar uma alma,
abandona-a antes completamente

Deus existe, mas não presta
Deus corta emenda conecta

Meu Deus não sei rezar
Por que me abandonastes
se sabias que eu não era Deus?

Deus é hoje: seu reino já começou.




Índice onomástico: Carlos Drummond, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Lula, Caetano Veloso, Gilberto Gil,  Nonato Gurgel, Bruna Lambardi, Antonio Marcos, Hilda Hilst e Orígenes

domingo, 23 de outubro de 2011

O Turista Aprendiz

para Camila e Valéria, damas do Norte



Uma vontade de dar nome... p. 63

Vogamos rastejando a margem. p. 69

Então, despoje o caule dos espinhos e cheire, cômodo, a flor. p. 83

Pirarucu tem o coração na garganta. p. 96

Criei passado outra vez, botei a cara na estrada e lá fui num passo inclinado, comedor de légua. p. 140

E a beleza de Marajó com a sua passarada me derrubou no chão. p. 160

Nenhum tubarão, nenhum naufrágio, nem pelo menos um incêndio a bordo... p. 194

... chegamos ao Tirol, altura onde moro hospedado pela ventania.
 ...Não atravanco a paisagem. p. 207

... insistindo na conceitualidade marxista do caju, está claro que as tendências do meu tempo me levam a desimportar-me cada vez mais com a inutilidade individual. p. 215





Andrade, Mario de. O Turista Aprendiz. Estabelecimento do Texto, Introdução e Notas de Telê Porto Ancona lopez. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

a poesia de Moduan Matus


Com uma programação que contou com mais de 500 participantes, encerrou hoje o I Congresso Nacional Multidisciplinar – Identidade e Linguagens Hoje: Olhares sobre a Diversidade e a Inclusão.


Dentre os vários livros lançados e distribuidos no evento da UFRRJ, destacam-se dois volumes com forte influência do Concretismo: "Palavra: poemas visuais" (2011) e "Signos: poemas instalações" (2008), ambos do poeta Moduan Matus.

Publicado na antologia "Literatura Comentada - Poesia Jovem anos 70", organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto M. Pereira, o escritor Moduan publicou13 livros com poemas e crônicas, e possui um dos maiores acrevos literários da Baixada Fluminense. O poema a seguir faz parte do livro "Signos".

Os gritos (do)
Diário(s)
de
Carolina
Maria
de
Jesus
ainda
ecoam
por quartos
de despejos
nalguns
cadernos
amarelados
e pungentes




terça-feira, 18 de outubro de 2011

Encontro com Escritores na UFRRJ



Os textos a seguir fazem parte dos romances que os escritores Dau Bastos e Luiza Lobo lançam, nesta quinta-feira, no I Congreso Nacional Multidisciplinar de Letras na UFRRJ, Campus de Nova Iguaçu.



Boiô comparava Santa Tereza a Montmartre, devido à concentração de artistas, à arquitetura antiga e ao posicionamento sobre a montanha. Reconhecia a pobreza de sua origem, ao mesmo tempo que lhe enaltecia a presença da natureza e a riqueza étnica.

Dau Bastos, “Reima”


E o carreiro de sombras negras começou a subir o íngreme caminho de mata densa, pisando a terra escura rumo à serra de Santa Catarina, em Pati do Alferes. Sem candeeiro, no começo do quarto crescente, a lua alta no céu, subiam pela floresta com dificuldade, enxergando a custo a trilha pouco marcada no mato. No quilombo, uma vida de guerra os aguardava...

Luiza Lobo, “Terras Proibidas”




domingo, 16 de outubro de 2011

Diversidade e Inclusão


O Campus da UFRRJ de Nova Iguaçu promove, a partir desta segunda-feira, o I Congresso Nacional Multidisciplinar e a III Semana Acadêmica de Letras – Identidade e Linguagens Hoje: Olhares sobre a Diversidade e a Inclusão.


“Voz rouca da periferia” é o título da conferência de abertura que será proferida pela professora e ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda. Além dessa conferência, Heloisa lançará Escolhas: uma autobiografia intelectual, livro publicado Ed. Língua Geral.


Outros lançamentos que se destacam durante o Congresso, de 17 a 21 de outubro, são os livros de escritores como Luiza Lobo (Terras Proibidas), Dau Bastos (Reima), Lucia Assis (Identidade e Cidadania em Lima Barreto) e Marcos Bagno, dentre outros.


Mais informações sobre o evento serão obtidas através dos telefones (21) 2669-0105 / 2669-0817 e neste link onde está a programação completa: http://r1.ufrrj.br/wp/eventos/semanaletrasim/

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Para abraçar com as retinas


I



O filme “Bruta aventura em versos”, de Letícia Simões, estreou ontem no Festival do Rio. O documentário é uma descarada declaração de amor feita pela diretora à poesia de Ana Cristina Cesar (1952 – 1983), ratificando os melhores momentos de sua poética: “Samba-Canção”, “Carta de Paris”, “O homem público n 01”...



Depois dos documentários de João Moreira Salles (“Poesia é uma ou duas linhas e por trás uma imensa paisagem”) e Claudia Morandei (“Ana C”), realizados na década de 90, este filme filia alguns escritores do século XXI à poeta de “A teus pés”. Filia e fabrica uma ponte entre os antigos e novos leitores dessa jovem senhora que quando passa deixa sempre um rastro prateado.



O filme segue esse rastro luzidio deixado pela poeta que dizia serem as cartas mais arrepiantes que a literatura. Na sua rápida passagem por nossas letras, Ana deixou um legado cultural que foi transformado em 8 volumes de poemas, ensaios, traduções, resenhas e cartas. De olho neste manancial estético e na vida de Ana C, “Bruta aventura em versos” é um roteiro cheio de luz, câmara, desejo: nenhuma treva atravessa a tela.



II



Ana afeta quem a lê. Na tela, o seu verso mexe. Vaza o afeto que se encerra no peito da poeta. Vaza na diretora emocionada, no palco, falando antes do filme começar; vaza no leitor com quem a poeta dialoga sugerindo que delete o fiasco da noite velha, o salmo inútil, o amor que já não imprime.



O afeto vaza também no espectador que se desconhece em alguns versos daquela narrativa: “não sou eu que estou ali”. Um afeto que parece dialogar principalmente com o desejo e a ternura pede roteiro para quem desentranha. O que fazer, depois da sessão, com este afeto desabrochado?


Ana tenta explicar o desejo e a ternura em cada palavra. Em cada verso. Confessa mais que carola de igreja do interior. Daí o seu apreço pela carta e pelo diário – formas que melhor conduzem e suportam a confissão.  De forma didática e com leveza, o poeta Armando Freitas Filho e a ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda elucidam a importância dessas formas modernas na poética de Ana.



III



Seja através da sonoridade verbal ou por meio de imagens em movimento, a poética de Ana arrepia. Dá bandeira nos menores gestos. Mesmo quando a fala entope, não diz, o texto produz algum sentido. Escrita que rasura a página e a pele de quem lê.



Desejo, arrepio e bandeira é um coquetel que todo jovem adora. Por isso, a maioria dos leitores que se aventura na página cáustica e requintada de Ana C torna-se presa da sua sintaxe poética. Uma sintaxe repleta de contornos, curvas, desvios e não ditos. Sintaxe de formas e afetos numa poética cheia de ritmos.



 Como o poeta Fernando Pessoa, Ana C tem o coração despejado feito balde. Como Pessoa, ela se conhece feito verbo, sinfonia, imagem. Uma imagem em movimento que se perpetua na mente após a leitura e que, feito o tempo, não pára. Como a bela Alice Sant’Anna - exímia leitora - que aparece no filme dizendo que Ana será sempre jovem. Sim, a poeta será sempre linda, luz.


domingo, 9 de outubro de 2011

Bruta Aventura em Versos


O professor Rafael Cesar, sobrinho da poeta Ana Cristina Cesar, envia-me o seguinte texto acerca do filme que estreia amanhã no Festival do Rio 2011.
 
 
Bruta Aventura em Versos é a tentativa de agarrar a escritora Ana Cristina Cesar. Ícone da poesia marginal dos anos 1970 no Rio, Ana C. faleceu em 1983, aos 31 anos, deixando inúmeros leitores e adeptos. Partindo da apropriação de sua obra por outros artistas, o documentário procura captar a beleza e a originalidade de sua escrita através do olhar de atores, dançarinos, poetas e amigos. O filme une, pela primeira vez, imagens históricas de Ana Cristina enquanto constrói uma narrativa audiovisual a partir de seus poemas. Entrevistas com Armando Freitas Filho, Paulo José, Heloísa Buarque, Chacal, dentre outros.


Dia 10 de outubro, segunda-feira, Odeon Petrobras
15h15 – sessão de gala

Dia 11 de outubro, terça-feira, Estação Vivo Gávea 3
13h30

Dia 11 de outubro, terça-feira, Estação Vivo Gávea 1
18h10

Dia 12 de outubro, quarta-feira, Cinema Nosso
17h

Dia 13 de outubro, quinta-feira, Ponto Cine
20h

Direção Letícia Simões
Roteiro Letícia Simões e Márcia Watzl
Produção Executiva Guilherme Cezar Coelho e Pedro Cezar
Produção Letícia Simões, Luana Fornaciari e Mariana Ferraz
Fotografia Alberto Bellezia e Mariana Bley
Montagem Márcia Watzl
Música Marcos Kuzka Cunha

sábado, 8 de outubro de 2011

Ana C no Festival do Rio

Dentre os 420 filmes selecionados para o Festival do Rio 2011, destaca-se “Bruta aventura em versos”. Dirigido por Letícia Simões, o documentário possui a vida e a obra da poeta Ana Cristina Cesar como tema, e estréia no cine Odeon na próxima segunda-feira, 10 de Outubro.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Nobel de Literatura


A Academia Sueca anunciou hoje o nome do poeta sueco Tomas Tranströmer como vencedor do Premio Nobel de Literatura de 2011.



Elegia

Abro a primeira porta.
É um enorme quarto repleto de sol.
Um caminhão passa pela estrada
e faz com que a porcelana estremeça.

Abro a segunda porta.
Amigos! Bebestes da escuridão
e tornaste-vos visíveis.

Terceira porta. Um estreito quarto de hotel.
Vista sobre um beco.
Uma lanterna que brilha no asfalto.
Descobertas: belas escórias.
Sämtliche Gedichte ( Poesia completa ), Edition Akzente Hanser, 1997, tradução do sueco para o alemão por Hans Grössel. Trad. p/ português: Luis Costa


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Mal traçadas linhas para Vanessa

 A verdadeira vida do homem está nas suas cartas

James Joyce


I


Gosto muito de cartas. Durante décadas, escrevi e recebi muitas cartas. A maioria delas foram escritas principalmente por amigos, alguns amores, parentes e colegas de profissão. Apesar de ter queimado em Pureza, no Rio Grande do Norte, grande parte do meu arquivo epistolar, ainda carrego comigo algumas cartas de pessoas que ainda carrego comigo.



Começou na adolescência. Desde então, interesso-me por tudo o que tem a ver com o universo da epistolografia. Na escrita da carta encontrei, durante anos, a forma para driblar a minha solidão de escrevente longe da família e distante de onde nasci. E assim fui escrevendo cartas. Cartas do internato. Escrevendo cartas nas noites de hotéis e nos albergues, lugares onde durante anos verti a vida em narrativas epistolares escritas à mão, à máquina, no computador.



II



Na vida e no texto, as cartas me fizeram vingar. Sem essa forma estética que solicita e confessa, a segunda metade do século XX teria sido bem mais difícil. Através da correspondência vivi, com algumas vozes, relações afetivas da maior importância para a minha formação cultural e existencial; com outras raras, construí intensos e às vezes cômicos "romances epistolares". Eram narrativas cifradas numa escrita que, embora dirigida a um outro interlocutor, me devolvia a mim. Ainda não tinha lido o Bakhtin, mas sentia ser o outro e a sua diferença a ponte para o eu.



Durante anos, ela ocupou o lugar do analista. Como acontece na análise, a minha experiência com a carta possibilitou a elaboração de uma voz.  Dependendo do interlocutor, essa elaboração sugeria a construção de um estilo. Um estilo que se desenvolvia numa sintaxe entre o pessoal e o profissional, o antigo e o novo, a cidade e o campo. Como na maioria das vezes essas dualidades se separam de forma meio esquizo na esfera pública, a carta me dava o fio da meada.



Agora a carta é coisa do passado. Transformou-se em objeto de pesquisa. Neste mundo de i-pod e outras maquinitas, muitas coisas são coisas do passado. Ficou fácil ser do passado. Mas sem drama.  Perde-se uma forma estética, como se perderam alguns instrumentos e utensílios na história da cultura, assim como desapareceram algumas profissões do passado, e outras formas e profissões surgem.



III



Como trabalho com Literatura, interessam-me principalmente as cartas de escritores. Curto muito a Carta de Caminha. Além dos 21 livros de cartas que compõem o Novo Testamento, gosto das cartas de Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Paulo Leminski, Caio F, Ana C...




Além de "Cartas a um jovem poeta", de Rilke, um dos livros que mais impacto me causou foi “Carta ao Pai”, do Kafka. Findava a década de 70 no internato de Jundiaí, e a querida professora Ana Linda não tinha a dimensão das mutações existenciais que a sua sugestão de leitura causara no garoto de 16 anos que eu era. Como encarar o meu pai, na voltas das férias, depois da leitura dessa Carta cujo primeiro parágrafo usa a palavra medo 4 vezes?



As cartas não mentem jamais. Ana C diz que escrevemos cartas “para mobilizar alguém”. Segundo ela, esse desejo de mobilização traduz sempre alguma alegria. Sugere algum link com a vida. Para a ensaísta de “Escritos no Rio”, é sempre o outro quem importa numa carta. Por isso, mesmo quando falamos de coisas nossas, o outro é o alvo.