e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

domingo, 22 de dezembro de 2013

Hilda, que seja


Para Ilza Matias

 
Hilda releu na modernidade – desde meados do século XX até a sua morte em 2004 –, a angústia do infinito que acomete principalmente os autores românticos. A releitura desta “obscena senhora” H parece acelerar, na veia de quem lê, o sangue que escorre acendendo sombras.  Sangue veloz na direção do infinito. Embora sua literatura possa atentar tanto para o ser que ama ou enlouquece, como para um sapo que gostaria de tomar banho de sol pelo cu, é o infinito que Hilda traz no peito.

 
Esse peito que transita da terra ao infinito produz um texto cuja voltagem de erotismo e tensão é alta. Hilda é alta tensão. Assim como Clarice Lispector e Ana C, ela fabrica uma escrita do desejo que possui na sintonia com a diferença do outro – o pai, o mestre, a paixão – o seu alvo. Sob as bênçãos de Lilith, essa trindade seduz. Escreve com o corpo. Muda o tom do discurso feminino na literatura brasileira, ao estetizar uma linguagem da paixão que não descarta o grotesco em comunhão com o sublime, o efêmero, o sagrado.

 
Tendo na compaixão e na liberdade do ser o seu jeito de existir, essa estetização detona o excesso de gráficos e tecnologias que automatizam os modernos. Como lidar com sentimentos como a compaixão e a liberdade, num tempo no qual a violência e a deselegância ditam condutas? Essas indagações procuram entender o "exílio" da escritora que foge da cena literária urbana, nos anos sessenta, para a solidão da sua “torre de capim”, no interior de Campinas. Foi lá que ela pariu mais de trinta títulos nos principais gêneros: lírico, narrativo e dramático.

 
Uma obra intensa, como registram os estados febris e experimentaias do corpo que a inscreve. O mesmo corpo que vomitou, no internato, ao ler a vida de Santa Margarida. Corpo que viveria depois grandes paixões. Leu as fomes e febres do mundo e de si. Viu discos voares.  Dialogou com árvores. Recebeu recados esotéricos. Ouviu e gravou vozes do além. Hilda produziu uma literatura utópica ao ler, nas so(m)bras do contexto (e do próprio texto), as “pequenas epifanias” dos mundos que ela estetiza. Utopia que consiste em “fazer da tua linguagem uma extensão da tua própria atuação”. Hilda disse e fez.
 
 
 

sábado, 21 de dezembro de 2013

Hilda Hilda, que seja do jeito



Nas entrevistas copiladas em Fico besta quando me entendem (2013), parecem claros alguns dos motivos que dificultam a leitura de Hilda Hilst. Sua escrita intensa – parida do transbordamento, no silêncio e na urgência de quem se isola – causa prazer, mas produz uma beleza que, às vezes, desconcerta. Pode também causar inquietude e desconforto em quem lê, edita ou traduz.

 
Os textos de Hilda, assim como alguns escritos de Clarice Lispector e de Ana C, nem sempre confortam ou aliviam. Às vezes criados em estados extremos ou febris, esse textos podem produzir mal-estar. São escritos que rompem com as "bases de sustentação" (ideológica, existencial, estética) do leitor, causando aquilo que Roland Barhes chama, em O prazer do texto, de “fruição”.

 
Este tipo de leitura sugere uma entrega e um mergulho aos quais nem todo leitor contemporâneo se propõe. Trata-se de um texto cuja lucidez “desesperada” provoca inquietações metafísicas, sugerindo a aflição de quem assume ter “mania de Deus”, e escreve movida por temas incômodos como a loucura e a morte. Essa movência é oriunda de um pai escritor que enloqueceu, e das filiações estéticas a um cânone que a autora leu, desde o internato de freiras, e que inclui nomes como Franz Kafka, Jorge de Lima, Guimarães Rosa, James Joyce, Samuel Beckett e Otto Rank, dentre outros.
 

Nestas entrevistas realizadas em Campinas-SP, na Casa do Sol – onde a autora “exilou-se” desde os anos sessenta até a sua morte em 2004 –, inscreve-se um sentido de literatura como missão. Nesta literatura dialogam, sem subordinação, o sagrado (haja epifania), o humano (haja loucura), o animal (“tenho tudo a ver com o animal”) e o erótico (“tenho medo da minha boceta”). Situados na dimensão cotidiana e histórica de quem cria, esses elementos díspares ampliam o mundo de quem lê, mas não garantem nenhum acordo, nenhuma salvação.

 
Assim como acontece na leitura de Ana C, o texto de Hilda mais sugere e seduz do que comunica. Uma coisa, porém, é certa: nem sempre essas  duas senhoras fazem acordos com o leitor. Ambas adoram um pacto. O impacto desta obra vem disso: dos socos - no peito e na mente - que o texto produz, fazendo o leitor sair do lugar, ir adiante. Do jeito que for.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Hilda Hilda Hilda, que seja do jeito que for



Comecei a ler a poética de Hilda Hilst nos anos 80. Mergulhei em dois dos três gêneros por que ela transitou – a poesia e a prosa –, embora desconheça, até hoje, a incursão que a autora fez pelo gênero dramático, e que resultou numa dezena de peças teatrais. Devorei, espantado, Com os meus olhos de cão (1986), e transcrevi, no ritmo trepidante de quem procura entender as relações entre literatura, paixão e vida, alguns trechos das novelas que compõem este volume.


Hilda morreu em 2004. Em seus últimos anos, permaneceu afastada do universo literário e com pouquíssimos leitores, editores e tradutores. Dizia que era maldita, incompreendida. Possuía a maldição dos que escrevem para depois. Mas, ao contrário de Clarice Lispector e de Ana C, que após a morte ganharam reconhecimento da crítica e do público, Hilda continua pouco lida, e sua ressonância no universo acadêmico é mínima. Mesmo assim, planejei para 2014, na UFRRJ, o seminário “As mulheres de minha vida: Clarice Lispector, Hilda Hilst e Ana Cristina Cesar”, e por este motivo estou lendo um livro belíssimo organizado por Cristiano Diniz: Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst (2013).

 
Como o subtítulo anuncia, o volume reúne algumas das entrevistas que a autora paulista concedeu, durante mais de 50 anos de vida literária, para críticos, escritores e jornalistas, como Caio Fernando Abreu, Nely Novaes Coelho, José Castello e Marilene Felinto, dentre outros. A maioria deles inscreve a dificuldade e o assombro que a leitura de Hilda provoca; outros a chamam de hermética, e demonstram como, definitivamente, Hilda não é para principiantes. Assim como a Clarice de A paixão segundo G. H., ela sugere um leitor de “alma já formada”. Sobre essa poética do mergulho e da sombra, escreverei no próximo post.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Stefan de novo e fim



 

Neste testemunho político e estético que é O mundo de ontem: recordações de um europeu, Stefan Zweig inscreve o seu convívio com alguns dos principais artistas e intelectuais modernos do século XX. São encontros com Joyce, Rodan, Strauss, Gorki e Salvador Dali, dentre outros, além de políticos do contexto das duas grandes guerras.

 

Dentre as relações duradouras de sua vida, Stefan relembra Freud e Rilke, dentre outros. Diz do preço pago, pelo amigo médico e conterrâneo, ao negar o poder da cultura sobre o instinto; e da amplitude do silencioso Rilke, como poeta e como ser humano que “amava os livros como se fossem animais mudos”.

 

O mundo de ontem é um texto de sintaxe romanesca. Um livro do tempo das longas narrativas. Uma prosa com parágrafos caudalosos que parecem embalar o leitor. Documento de uma época na qual a literatura, sua sintaxe preciosa e dilatada, tinha aura. Deste “mundo” relido no final da vida, emergem luzes e sombras. Emergem imagens e tons que afetam as percepções de quem lê.

 

Pelos cenários dO mundo de ontem, o leitor de hoje ouve e vê. Sente cheiros de ambientes kafkianos. Espaços sombrios e burocráticos, com carimbos, digitais exiladas e números. Ambientes que registram como a inflação alemã, nas primeiras décadas do século XX, foi determinante para o exercício da violência instaurada por Hitler – o responsável pelo exílio e morte de Stefan Zweig no Brasil.

 

domingo, 8 de dezembro de 2013

"O mundo de ontem"


o mundo muda de ritmo, acelera 
 
Stefan Zweig nasceu num mundo cujo ritmo era lento. Um mundo onde, segundo ele, o amor e a arte eram considerados “dever comum”.  Neste mundo, o autor aprendeu, desde cedo, a “amar de todo coração a idéia da comunidade como sendo a mais elevada”.

 
Adentrado o século XX, o escritor austríaco viu o ritmo daquele mundo lento – atento às batidas do “coração” e aos passos da “comunidade” –, ser substituído pela rapidez do mundo moderno e do seu cotidiano maquínico. Nas primeiras décadas do século XX, o ritmo comum cedia espaço para os ritmos livres da massa.

 
Estas mudanças de ritmos e de percepções mexeram com a vida e com a escrita de Stefan. Ele ouviu o mundo moderno e a sua multiplicidade de formas e ritmos culturais acelerando o corpo humano, expandindo sua mente, criando novas técnicas.
 
crimes do mundo acelerado

 
Stefan viu o cinema e a música fabricarem astros. Atento às conexões entre mídia, tecnologia e guerra, ele viu também a fabricação de atletas e de novas linguagens para uso das grandes massas. Leu, sem nenhum nacionalismo ufanista, os cenários em ruínas do pós-guerra na Áustria, registrando a censura de Hitler aos seus livros, e os preconceitos sofridos por causa da descendência judia e do exílio (na Inglaterra e no Brasil).

 
O autor de O mundo insone viu a pressa, antes considerada “deselegante”, ser substituída por hábitos cotidianos mais rápidos. Hábitos repetitivos, e gestos automatizados de uma cultura na qual a noção de profundidade perde o tom, e o ideal de verdade, contido na página impressa, começa a ser questionado. Ele diz que a palavra do poeta perde força e o seu poder visionário, após a primeira guerra mundial.
 

Ao registrar esses fatos e essas perdas, nos camarins e nos cenários bélicos da Europa moderna, "O mundo de ontem" “narra” os crimes capitais do século XX. Crimes de um tempo no qual a violência, patrocinada pelas duas grandes guerras, vence o direito e as leis.


 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Stefan, autor do futuro



Conhecia Stefan Zweig como o escritor austríaco que publicou, no final da era Vargas, o livro Brasil, um país do futuro (1941), e que se matou, junto com a esposa, em 1942, em Petrópolis - RJ. Traduzido para vários países, este texto afirma e celebra a nossa história, sem esquecer as contradições sociais e as farturas naturais que nos erigem. Sobre o autor, o seu final trágico e a escritura deste livro, no período do Estado Novo (1937 - 1945), brotam filmes, narrativas e lendas políticas infindas, sobre os quais eu não tenho nenhuma competência para comentar.

 
Brasil, um país do futuro tornou-se um clássico do nacionalismo moderno e uma expressão clichê. Neste longo ensaio no qual contrapõe, em poucos momentos, os ares europeus aos ventos de cá, o autor reconhece que aqui “a tensão no ar é menor”. Ao lançar o seu olhar sobre a cultura brasileira, Stefan ratifica as obras de José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Vila Lobos, dentre outros; e o seu olhar cosmopolita dialoga, no Rio de Janeiro dos anos trinta, com uma multiplicidade de formas históricas e urbanas pelas quais o autor transita voltando no tempo.

 

Stefan adora voltar no tempo. Autor de sucesso crítico e editorial nas primeiras décadas do século XX, principalmente na Europa, ele é também um intelectual humanista atento aos fatos políticos e às memórias coletivas dos povos europeus durante as duas grandes guerras. Eles são os principais “personagens” deste belíssimo testemunho – ideológico, sócioexistencial e estético – que ele nos lega, e que acabo de devorar com rapidez e espanto: O mundo de ontem – recordações de um europeu (Assírio & Alvim, Lisboa).

 

Em O mundo de ontem, o termo cultura é associado ao que é terno, sublime, refinado. Os autores e as práticas culturais “narrados” nestas “recordações” são constantemente associados aos elevados valores espirituais, dos quais a luta pelas liberdades e a noção de profundidade do eu são os dois valores mais destacados.

 

Este testemunho cosmopolita e moderno, inscreve uma noção de cultura, cujo sentido e prazer das formas estéticas são sempre direcionados para a noção do belo e do mais profundo. Essa direção nos faz pensar nos fatos sociais, e nas noções de cultura que engendram, de forma contrária, alguns discursos estéticos e multiculturalistas neste início de milênio.

 

Através destes discursos, as histórias das “minorias” (mulheres, negros, índios, homossexuais, detentos ... ) e as linguagens “periféricas” começam a ecoar nas “margens plácidas” do re-finado cânone literário ocidental. O mesmo cânone masculino, heterossexual e eurocêntrico que Stefan ajudou a inscrever (calma, leitor: sabemos que por sua altíssima qualidade estética, e pela sua densidade secular, este cânone não vai acabar nunca; assim como sabemos, também, que o coneito de literatura é mutante como a própria vida: o que hoje chamamos de literatura, e que este cânone branco e universal representa tão bem, possui pouco mais de dois séculos).

 

São raros os livros de Stefan Zweig traduzidos hoje no Brasil. Nunca li o seu nome numa bibliografia acadêmica brasileira, mas as suas percepções e a sua sintaxe me ajudaram muito a entender o século bélico e fragmentado no qual nascemos. Por isso ele é um autor do futuro. No próximo post volto aO Mundo de ontem “com uma sede de anteontem... e vamos botar água no feijão”.
 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

minicurso hoje na UFRRJ


O arquivo de formas da margem


Ana C, Caio F e Paulo Leminski



EMENTA: Margens, marginalidades, periferias - o que é literatura marginal? Panorama moderno e marginal da literatura brasileira nos séculos XX e XXI, de ouvido atento às margens da história e da cultura:  o "terrorismo literário", das periferias, e o "brado retumbante", das chamadas minorias, ecoam nas "margens plácidas" do cânone literário. Do moderno ao contemporâneo: diálogos entre a poesia marginal, a modernidade e o arquivo da tradição literária. Leitura dos procedimentos críticos, culturais e estéticos relidos pela geração alternativa ou mimeógrafo, no Brasil dos anos 70/80. Nem toda marginália é vã. Abrangendo a produção escrita neste contexto da Contracultura, passando pelas últimas décadas do século XX até a primeira década do século XXI, esses diálogos elegem algumas formas breves como poema, conto, crônica, ensaio, resenha e carta, escritos por Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski e Caio Fernando Abreu, dentre outros.


 

sábado, 23 de novembro de 2013

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Cazuza no museu II



Para Jo, Jurema, Rita e demais colegas da graduação em Letras - UFRN

 

Creio que a maioria dos leitores conhece Cazuza como o roqueiro exagerado que morreu de aids nos anos noventa, pedindo uma ideologia para viver. Poeta porralouca, seu desbunde tem a ver com a contracultura, e com o comportamento desejante dos jovens, como atesta essa fala que está no Museu da Língua Portuguesa: "eu não estou cabendo no mundo, me ajude alguém”.

 
Carregado nas referências literárias, o post anterior gerou indagações em torno do Cazuza leitor. Alusões às gerações beat e marginal parecem mais fáceis de engolir; não as relações de Caju com os textos de Carlos Drummond e Clarice Lispector. “Como assim”, pergunta Julia, “o que tem a ver o exagero do mar de Ipanema com a melancolia do pó de Minas”?

 
Bela pergunta, Julia, daria uma tese. Exímio leitor de prosa e poesia, Cazuza gostava de Água Viva, livro publicado em 1975 por Clarice Lispector. Dela, ele musicou trechos da crônica “Que o deus venha”, do livro póstumo A descoberta do mundo. O compositor transformou, em parceria com Frejar, o texto da escritora num belo blue gravado por Cassia Eller em seu primeiro vinil.
 
 
"lírios não nascem da lei"

 
Se com Clarice havia uma relação de identidade (“Sou inquieta, áspera e desesperançada”), com Drummond, parece haver uma filiação existencial em relação ao tempo. O poeta mineiro e o compositor carioca são do mesmo partido, como sugere o poema “Nosso tempo”, do livro A rosa do povo: “Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos”. Este poema lembra a forma como Cazuza inicia sua canção “Ideologia”: “Meu partido é o coração partido”.

 
Mesmo partido, esse coração continua batendo. Quem muito bateu em vida, bate agora no museu. Logo ele que cantava, no final da vida, “eu vejo um museu de grandes novidades”, é agora peça viva de um ambiente interativo, onde as pessoas, ao atenderem a um telefone antigo, podem ouvir um Cazuza ríspido (“caralho, tem que ter uma mente nova”) ou esperançoso (“O Brasil vai ensinar ao mundo”). Coisas de quem portou, na veia, o final do século sem filtro.

 

domingo, 10 de novembro de 2013

Cazuza no museu III



Para a professora Lucia Helena e as turmas
do curso Letras/Parfor da UFRRJ


Cazuza mostra a sua cara no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Cazuza - misto do Brasil urbano que toca na favela, no sertão e na periferia da metrópole. Ouvido de todas as raças e de todos os tons, ele canta vários credos ecumênicos e gêneros sexuais.  Mistura de ritmos com poesia, ele tem a manha do poeta rápido, rasteiro.

Cazuza é letra pop. Escrita cultural que a academia acolhe como produto da era da redemocratização, nos anos oitenta, quando ele cantava “a burguesia fede” e, contradizendo o seu próprio discurso demolidor, afirmava: “eu tenho esperança, eu fiz o que pude”.

Além dessa esperança, Cazuza traz o sonho ("quem tem um sonho não dança") e a religiosidade ("Peço a deus que me perdõe no camarim") dos autores românticos ("adoro um amor inventado"). Cercado de paradoxos, ele vive no limite proposto pela rapidez moderna de um tempo veloz e trepidante que não pára.

feito de letras e verbos
 
"Exagerado" assumido, o poeta sabe que “viver é gastar a vida” (Mário de Andrade). Como o jagunço Riobaldo, ele aprendeu, através da carne e do verbo, que "viver é muito perigoso"; e viu que "virar pelo avesso é uma experiência mortal" (Ana C). Amigo do escritor Caio F, o compositor também se alimentava de "pequenas epifanias", "morangos mofados", o escambau...

Cazuza conjuga os verbos do seu tempo. Ele vive, gasta, vira, dá e pede. Pede até piedade. Pede muito: pede “uma” ideologia para viver, pede para o Brasil, corrupto e autoritário, mostrar a sua cara e respeitar as leis; e pede também, ao contrário do compositor social, que quando estiver cantando ninguém cante nem se aproxime muito dele.

Cheio de sarros e “segredos”, esse canto - às vezes ao pé do ouvido - põe no liquidificador cultural a bossa nova, o rock in rol, a tropicália, Cartola e o samba canção. Cazuza junta a esses ritmos a poesia beat americana, a poética marginal brasileira, a luz e a farpa de Clarice Lispector, e muito pó, muita pedra das minas do poeta Carlos Drummond.

Coração "batendo travado na escuridão do quarto”, ele é o primeiro espanto numa geração que, ao ver a cara da morte, assume ser “cobaia de Deus”, e numa MPB que canta “dois homens apaixonados”.

Político, poético, porralouca e religioso, ele é um desses que "viram messias e andam no mar”. Por isso, ao contrário do que sugeriu a revista Veja, nos anos 90, sua obra fica. Fica e eu creio que ele ainda será trilha de outras gerações.


 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

o leitor e os livros


Formado em geologia pela Faculdade de Ciências de Lisboa (FCUL), o geólogo Pedro Caetano trabalha na livraria da editora Assírio & Alvim, em Lisboa. Exímio leitor de poetas modernos como Pessoa e Pascoais, ele conhece a tradição cultural produzida na terra de Camões, e discorre com saber e sabor sobre os mais diferentes autores, temas e livros da sua e de outras terras, como podemos ler na entrevista a seguir.

As páginas citadas por Pedro e o recorte do seu “cânone” literário sugerem, além de uma rigoroa mirada estética, que ele gosta dos livros e da literatura porque, como diz Todorov, ela “ajuda a viver”. Esse apreço pelos livros lembra a forma como o escritor austríaco Stefan Zweig rememora o poeta alemão Rilke: “ele amava os livros como se fossem animais mudos.”, diz o autor de O mundo de ontem.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

o leitor e os livros I

1- Pedro, qual é o melhor início de livro da literatura portuguesa?

A vila é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe interromper o sono, atravessa uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno de Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa ao planalto ao encontro de uma igreja que foi couto de mouros e abades e ali se fica, arrogante a desafiar o pasmo da campina. À volta da igreja, as casinhas brancas, com altas chaminés que lhe furam o dorso atarracado, fecham-se num reduto que a voracidade calma do trigo não consegue romper.” Fernando Namora, O Trigo e o Joio.


2 - Quais os livros marcantes editados pela Assírio & Alvim?

O Medo, Al Berto, O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, Folhas de Erva, Walt Whitman, Morte a Credito, Céline, O Marinheiro que perdeu as graças do Mar ,Yukio Mishima, O Céu Que Nos Protege, Paul Bowles, A Campânula de vidro, Sylvia Plath, etc.

 
3 - Lidando diariamente com edições de livros e projectos afins, na sua opinião, para que serve um livro no século XXI?
 
Numa era cada vez mais electrónica o livro serve como objecto cultural, como farol a mostrar o caminho para uma leitura de qualidade. Todos nos sabemos que até o ipad mais básico é capaz de armazenar milhares de livros, logo as livrarias estariam condenadas a extinção, mas a minha experiência como livreiro diz-me que o livro não desaparece, o que desaparece são maus livros, livros sem conteúdo, muitas vezes mal escritos e com fraca capacidade de cativar um publico.
 
 
 

domingo, 3 de novembro de 2013

o leitor e os livros II



Pessoa personagens heterônimos


4 - Bernardo Soares diz, nO Livro do Desassossego, haver “metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher.” Qual personagem da literatura universal lhe vem à cabeça, ao ler essa afirmação do ajudante de guarda livros criado por Fernando Pessoa?

PC: No livro o Mentiroso, de Henry James, a personagem do coronel Capadose, o mentiroso, vive, respira e contamina a mulher, assim como os restantes. No final, não existe apenas um mentiroso, mas três, e cada qual encarna uma personagem. Sempre me pareceram reais, pessoas com quem poderíamos tomar um café, ou um chá no Pavilhão chinês.


5 – Sabendo que Bernardo Soares faz parte do seu cânone literário particular, com qual dos heterônimos de Pessoa você se sente mais identificado e por quê?

PC: Apesar de nascer no mesmo dia que o heterônimo Ricardo Reis, o meu preferido sempre foi o Álvaro de Campos. Na sua poesia, encontramos o tópico das viagens, quer sejam reais ou imaginarias, fala de mar, de aventuras, é sempre uma emoção ler um poema de Álvaro de Campos. A Ode Marítima é prova disso. A Poesia de Álvaro de Campos tem vida, movimento, um sal que não encontramos em Ricardo Reis nem em Caeiro. São poemas com genica, com força, parecem feitos de um só impulso.

 
6 – Poderia citar uma estrofe da Ode marítima que ratifica isso?

 PC: Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina
E eu cismo indeterminadamente as viagens.
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola
Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!
O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar pra bater
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!
 
 
 

sábado, 2 de novembro de 2013

o leitor e os livros III



o cânone luso


7 – Pedro, quais são os nomes mais representativos da literatura portuguesa contemporânea, na prosa e na poesia?

PC: Na poesia, Herberto Hélder e Cesariny. Na prosa, Miguel Esteves Cardoso, António Lobo Antunes (mais as coisas iniciais, as finais estão a ser um pouco já forçadas), Lídia Jorge, Valter Hugo Mãe e Miguel Sousa Tavares.

 
8 – Apesar das idéias de multiplicidade e diferença, na cena literária contempoânea, você vê alguma coisa em comum entre estes autores citados?

PC: Eu nunca me apercebi de nenhum fio condutor, sempre fui guiado pelos meus gostos pessoais. A única coisa que os liga a todos é a qualidade da escrita, que marca, e não nos deixa indiferentes, mesmo com o passar dos anos.

 
9 – Quais autores e livros portugueses compõem o seu “cânone” literário particular?

PC: Almada Negreiros: Manifesto Anti-Dantas, Poemas e Nome de Guerra

Mário Cesariny: Noblilíssima Visão, Pena Capital, A cidade Queimada,

Teixeira de Pascoaes: Napoleão, Belo, À Minha Alma, Sempre e Terra Proibida, O Penitente (obra sobre Camilo Castelo Branco).

Camilo Castelo Branco: A queda de um Anjo

Antonio Lobo Antunes: Os Cus de Judas

António Gedeão: Movimento perpétuo

Ângelo Lima: Poesias Completas

Alves Redol: Os Avieiros, Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos.

Camilo Pessanha: Clepsydra

Fernando Assis Pacheco: Respiração Assistida, Memórias de Um Craque

Luiza Neto Jorge: Poesia

Ana Hatherly: O Pavão Negro

Al Berto: Apresentação da Noite, Diários, O Medo

Carlos de Oliveira (Nasceu no Brasil, mas aos dois anos de idade regressa a Lisboa, por isso é metade Brasileiro, metade Português): Casa Na Duna, Uma Abelha na Chuva.

 Alexandre O'Neill: Uma Coisa em Forma De Assim, Poesias Completas.

 Fernando Pessoa: Livro do Desassossego, O Banqueiro Anarquista, Quaresma.

Almeida Garrett: Viagens na Minha Terra

Eça de Queirós: A Relíquia, O mistério da Estrada de Sintra, O Primo Basílio.

Cesário Verde: O livro de Cesário Verde

Eugénio de Andrade: As mãos e os frutos

Jorge de Sena: Sinais de Fogo

José Rodrigues Migueis: Gente da Terceira Classe

 Herberto Helder: Oficio cantante, Servidões

 Urbano Tavares Rodrigues: Os Bastardos do Sol, A Vaga de Calor

 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ana C



Faz hoje 30 anos que morreu a poeta Ana Cristina Cesar (1952 – 1983). Publicada na Alemanha, França, Portugal e Argentina, além de outros países da América Latina, a autora possui a sua obra traduzida também na Espanha. Os textos a seguir foram selecionados e traduzidos por Teresa Arijón y Bárbara Belloc, e constam da antologia Medianoche mediodía, Madrid: Amargord, 2011.
 
*
Quería hablar de la muerte
y su juventud me acariciaba... A teus pés, 1982

 
*
Corrupta con finezas me deja tu amor. Inéditos e dispersos, 1985

 
*
Siete llaves

 
Vamos a tomar el té de las cinco y te cuento mi
gran historia pasional, que guarde bajo siete
llaves, y mi corazón late desacompasado entre
obleas. Sigue contando esa historia, me
aconsejas como un mariscal del aire haciendo
alegorias. Estoy tocada por el fuego. Outro
roman à clé?
Ni respondo. No soy dama ni mujer
moderna.
Ni te conozco.
Entoces:
de aqui saco versos, de esta fiesta – con
silencioso arbitrio y origen que no confieso –
como quien borra sus pecados de seda, sus três
monumentos patrios, y pasa el puento y los guentes.  A teus pés, 1982

 
*
Y de mi padre carpintero
heredé este ritmo de sierra. ... Inéditos e Dispersos, 1985
 

*
Un bejo
 
que tuviera un blue.
Es decir
imitase feliz
la delicadeza, la suya...  Inéditos e Dispersos, 1985


domingo, 27 de outubro de 2013

Coimbra é uma lição



Para Guilherme Borges, Isadora Pessoa, Patrícia e Mariza

 no coração do país

Localizada no centro de Portugal, Coimbra possui a mais antiga universidade do país. Fundada por D Dinis - "o plantador de naus a haver" (Pessoa), ela data do século XII. Nela estudaram escritores fundamentais da literatura portuguesa, como Almeida Garret e Eça de Queiroz, dentre outros. Como na canção eternizada pela cantora Amália Rodrigues, no Olympia, "Coimbra é uma lição".

Por suas tradições culturais e pela suntuosidade do seu passado histórico (aqui nasceram vários reis lusos), a cidade estará sempre a lecionar aos seus transeuntes. A lição é dada na rua, ao vivo, frente aos arcos, claustros e monumentos que os turistas devoram, através de lentes que parecem para sempre famintas.

Mas, se a lição entoada por Amália, na antiga canção, era feita "de sonho e tradição", a lição de hoje, esta que está nas ruas, possui bem curta a sua porção onírica. Não há lágrima pela fragmentação existencial, como nos tempos de Garret, nem sonhos pichados nas paredes de hoje. O tempo urge nas mentes jovens que habitam a cidade antiga, de hábitos e ritmos lentos, onde os templos do Mc Donalds convivem, sem atrito, com igrejas seculares.
 
anjos bezerros
 
Nenhuma utopia inscreve-se nos muros brancos desta cidade linda. Mesmo assim, sua aura de sabedoria e liberdade seduz mais de 30 mil estudantes do mundo inteiro. Eles reinam nas ruas. Pro-movem uma espécie de carnaval negro, chamado Latada, onde álcool, corpo, alegria e melancolia dão o tom. Com suas ostentosas trajes pretas, eles voam feito anjos negros. Parecem sempre em busca.

A dimensão desse vôo, dessa incessante busca juvenil e da falta de utopia podem ser lidos nas linguagens das ruas. Como neste grafite a carvão, escrito num muro branco, próximo a universidade: "parecem bezerros a gritar, animais". Outro grafite parece traduzir a crise, e o grito ancestral que emana deste grafite anterior: "somos filhos do Euro = Nada".

"é naquele trem que eu vou também"

Atento aos grafites escritos nos espaços históricos e mais asseados da cidade, fui surpreendido por uma espécie de grafite oral, ao vivo, na estação Coimbra B: "Comboios, ao contrário dos passageiros, dificilmente saem dos trilhos". A frase foi dita por uma transeunte para o senhor ao seu lado, cuja mala parecia pesar-lhe além das suas forças. 

Ouvi este grafite oral como uma pequena epifania, para lembrar Caio F, o escritor brasileiro que é objeto de pesquisa acadêmica de Isadora P - estudante da UFRRJ e de Coimbra. Além de Caio F, nascido em 1948, ela selecionou um poeta que nasceu neste mesmo ano em Coimbra: Al Berto. 

Mas voltemos àquela jovem senhora de pssagem: ao pronunciar o grafite epifânico, ela não sabia que algo mudaria o roteiro de nossas viagens, e a noção de pontualidade tão cara aos europeus: o trem que ali esperávamos, atrasaria cerca de 40 minutos. Coimbra é, para sempre, uma inesquecível lição do tempo.

 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Porto

“Os homens são como as moedas; devemos tomá-los pelo seu valor, seja qual for o seu cunho”

Carlos Drummond de Andrade, Jornal Público, edição Porto, 21/10/13

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Portugal




"... que criou tanta treva e luz"



sábado, 28 de setembro de 2013

Festival do Rio 2013




Para quem curte cinema e literatura, o “cardápio” estético é dos melhores. São 380 filmes. Comecei por Invadindo Bergman. Gostei bastante dos depoimentos dos cineastas e do cenário escolhido – a casa, isolada numa ilha, onde o cineasta sueco viveu cerca de 40 anos; mas senti muita falta de... cinema.



Até o dia 10 de outubro, tem tela para todas as tribos. Selecionados da programação, os títulos a seguir são de filmes e documentários cheios de letras e referências culturais: O retrato de Dorian Gray na imprensa marron, Gore Vidal e os Estados Unidos da Amnésia, O espírito de 45, Google e o cérebro humano, Encantadores de histórias e Tatuagem.

 
O Brasil aparece bem na fita. Autor de vasta filmografia envolvendo letras e telas - Sermões, Bras Cubas, Miramar - o cineasta  Julio Bressane lança Educação sentimental. Além deste, outros títulos internacionais prometem: Salinger, Stuart Hall e os Estudos Culturais, Mishima: uma vida em quatro tempos, Em Berkeley e Fragmentos de dois escritores.
 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Cândido G2



O vento varre. Há tempos, a paisagem é um estado de alma repleta de lirismo sem nenhuma explicação.  Pela janela, mesmo nublada, a manhã sinaliza: a primavera estala na ramagem, assim: "Uma rosa de Guimarães/ nos ramos de Graciliano". O resto é Bandeira: o vento varria folhas, varria flores, varria frutos. Em qualquer estação, o vento varre, escreve árvore, nem sempre dá fruto. 

 

domingo, 15 de setembro de 2013

a trilha sonora das coisas

 
 
Para Lara A


Hermeto Pascoal é todo música. Música em estado bruto. Seja do palco ou da platéia, ele retira, ao vivo, o melhor do som dos seres. De ouvido, das antigas.
 
 
No diálogo que empreende entre o piano e os demais instrumentos, o multiinstrumentista colhe e divide, com os seus músicos e com os ouvintes, a alma sonora – geralmente inaudível, esquecida – dos homens e das coisas simples.
 
 
Aos 77 anos, de pé durante mais de uma hora, o músico rege, no Rio, uma sinfonia moderna que sugere ouvidos desautomatizados. Através deles, Hermeto conecta-se com o pulsar e os fonemas que a platéia lhe devolve, numa vibração que tonifica quem toca e quem ouve, seja clássico, jazz, bossa nova ou baião.
 
 
Nessa sinfonia que relê a memória musical do ouvinte, alguns objetos de uso cotidiano – como a chaleira de metal ou o porquinho-cofre de barro, no balanço de suas moedas –, anunciam a melodia que existe em todo utensílio ou fala.
 
 
Tocados pelo corpo de Hermeto, esses instrumentos e linguagens revelam uma musicalidade multiétnica, ancestral, onde  homens, bichos e coisas se tocam. Musica atemporal do Olho d`água, onde nasceu o compositor alagoano, na trilha sonora do mundo.

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Lobo bélico


I

 
Os cus de Judas foi publicado por Lobo Antunes em 1979. Detentor de vários prêmios, o romance é uma narrativa feita dos estilhaços de vozes e fragmentos de imagens lidas pelo autor na guerra de Angola. Um livro escrito de ouvido atento ao “...silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala...” (p. 34).

 
Como médico e escritor, Antunes viveu nesta guerra colonial portuguesa o medo e a perda, além da sua falta de justificativa. Por isso, em seu romance “os homens caem”, morrem. Terminam feito peixes findando nos confins, nos Cus de Judas. Apesar das quedas e mortes, o narrador não esquece a vida, o sonho: “...mas já imaginou o espaço que sobra para o sonho, não um sonho de mobílias, doméstico, conjugal... ...o sonho à Infante D. Henrique feito de mares desconhecidos, de mostrengos e de especiarias...” (p. 126).


Além dos sonhos e pesadelos, o livro de Lobo Antunes é repleto de seres famintos e aflitos. Personagens cujas existências parecem pautadas no ritmo da “aflição de pedras que respiram”. As falas estilhaçadas do narrador e os nacos de imagens desta guerra africana alimentam uma linguagem fragmentada de diferentes tons. Dessa linguagem, ecoa a dicção nobre – herdada principalmente da literatura do século XIX –, assim como uma boa taxa da oralidade contemporânea que nos circunda.

 
II


Essa oralidade, em Os cus de Judas, é bastante sedutora. O autor seduz o ouvido de quem lê com expressões do tipo “percebe”, “sabe como é’, “escute”, “já reparou”... Essa sedução lingüística é motivada pela noção de diferença que se inscreve desde a especificidade espacial proposta pela guerra, e tem o outro como parâmetro. Ela parece, essa sedução, típica de um narrador que assume estar “a fim de se escutar a si próprio nos ouvidos dos outros”.

 
Neste romance-testemunho, o leitor é bastante convocado. Ele transita literalmente nos "cenários em ruínas" da guerra. Adentra suas derivas sem luz, e visita trevas de suas próprias entranhas. O leitor transita pelos desvios e deslocamentos de uma narrativa atravessada – toda ela – por dois “ingredientes” explosivos, de ruptura, presentes em toda colonização: cultura e violência.


Antunes escreve uma narrativa bélica, de busca. Nela, dualidades infindas e atemporais se cruzam: a história e a identidade, amor e guerra, grotesco e sublime, desejo e morte, memória e testemunho. Todos esses núcleos temáticos ajudam a ler o que lateja na prosa do mundo. Eles podem re-encantar o homem-pós-guerra que, mesmo não acreditando em si, escreve: “me encanta: posso ainda considerar-me um homem para mais tarde... (p. 125). Essa descrença em si é destrutiva, cita nomes, é narrada de forma radical, assim:

 
“Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados... ...Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de troca? A esses, os Camilos Torres, os Guevaras, os Allendes, apressemo-nos a matá-los porque o seu amor combativo nos incomoda...” (p. 136).


sábado, 7 de setembro de 2013

Saramago canino



... chega ao seu destino, antes lhe ladraram cães desaforados...

José Saramago, Viagem a Portugal, 1995

 
... Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas [Ensaio sobre a Cegueira]... Se no futuro puder ser recordado como "aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher", ficarei contente. Se alguém procurar naquilo que eu tenho escrito uma certa mensagem, atrevo-me pela primeira vez a dizer que essa mensagem está aí. A compaixão dessa mulher que tenta salvar o grupo em que está o seu marido é equivalente à compaixão daquele cão que se aproxima de um ser humano em desespero e que, não podendo fazer mais nada, lhe bebe as lágrimas.

Entrevista de José Saramago do Jornal Público, 2008


... o cão prometido por Obama às filhas será precisamente um cão de água português. Trata-se, sem dúvida, de um importante trunfo diplomático de que Portugal deverá tirar o máximo partido para bem das relações bilaterais com os Estados Unidos, subitamente facilitadas graças à presença de um nosso representante directo, diria mesmo um embaixador, na Casa Branca. Novos tempos se avizinham. Tenho a certeza de que se Pilar e eu formos aos Estados Unidos, a polícia das fronteiras já não seqüestrará os nossos computadores para lhes copiar os discos duros.

O Caderno de Saramago, 26 de Fevereiro de 2009