e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Mal traçadas linhas para Vanessa

 A verdadeira vida do homem está nas suas cartas

James Joyce


I


Gosto muito de cartas. Durante décadas, escrevi e recebi muitas cartas. A maioria delas foram escritas principalmente por amigos, alguns amores, parentes e colegas de profissão. Apesar de ter queimado em Pureza, no Rio Grande do Norte, grande parte do meu arquivo epistolar, ainda carrego comigo algumas cartas de pessoas que ainda carrego comigo.



Começou na adolescência. Desde então, interesso-me por tudo o que tem a ver com o universo da epistolografia. Na escrita da carta encontrei, durante anos, a forma para driblar a minha solidão de escrevente longe da família e distante de onde nasci. E assim fui escrevendo cartas. Cartas do internato. Escrevendo cartas nas noites de hotéis e nos albergues, lugares onde durante anos verti a vida em narrativas epistolares escritas à mão, à máquina, no computador.



II



Na vida e no texto, as cartas me fizeram vingar. Sem essa forma estética que solicita e confessa, a segunda metade do século XX teria sido bem mais difícil. Através da correspondência vivi, com algumas vozes, relações afetivas da maior importância para a minha formação cultural e existencial; com outras raras, construí intensos e às vezes cômicos "romances epistolares". Eram narrativas cifradas numa escrita que, embora dirigida a um outro interlocutor, me devolvia a mim. Ainda não tinha lido o Bakhtin, mas sentia ser o outro e a sua diferença a ponte para o eu.



Durante anos, ela ocupou o lugar do analista. Como acontece na análise, a minha experiência com a carta possibilitou a elaboração de uma voz.  Dependendo do interlocutor, essa elaboração sugeria a construção de um estilo. Um estilo que se desenvolvia numa sintaxe entre o pessoal e o profissional, o antigo e o novo, a cidade e o campo. Como na maioria das vezes essas dualidades se separam de forma meio esquizo na esfera pública, a carta me dava o fio da meada.



Agora a carta é coisa do passado. Transformou-se em objeto de pesquisa. Neste mundo de i-pod e outras maquinitas, muitas coisas são coisas do passado. Ficou fácil ser do passado. Mas sem drama.  Perde-se uma forma estética, como se perderam alguns instrumentos e utensílios na história da cultura, assim como desapareceram algumas profissões do passado, e outras formas e profissões surgem.



III



Como trabalho com Literatura, interessam-me principalmente as cartas de escritores. Curto muito a Carta de Caminha. Além dos 21 livros de cartas que compõem o Novo Testamento, gosto das cartas de Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Paulo Leminski, Caio F, Ana C...




Além de "Cartas a um jovem poeta", de Rilke, um dos livros que mais impacto me causou foi “Carta ao Pai”, do Kafka. Findava a década de 70 no internato de Jundiaí, e a querida professora Ana Linda não tinha a dimensão das mutações existenciais que a sua sugestão de leitura causara no garoto de 16 anos que eu era. Como encarar o meu pai, na voltas das férias, depois da leitura dessa Carta cujo primeiro parágrafo usa a palavra medo 4 vezes?



As cartas não mentem jamais. Ana C diz que escrevemos cartas “para mobilizar alguém”. Segundo ela, esse desejo de mobilização traduz sempre alguma alegria. Sugere algum link com a vida. Para a ensaísta de “Escritos no Rio”, é sempre o outro quem importa numa carta. Por isso, mesmo quando falamos de coisas nossas, o outro é o alvo.

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