e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sábado, 1 de junho de 2013


1 – Evando, como você se tornou personagem de Derrida?

 
Gostei da formulação da pergunta: “como você se tornou personagem”. Isso indica, de pronto, o aspecto romanesco de toda vida e de toda biografia. É, portanto, como pequeno personagem de uma grande vida que respondo. Mas desconfio que, para bem cumprir a tarefa, teria de escrever minha própria autobiografia, que, claro, não tem muita importância. Relembraria, no entanto, que Derrida apareceu em minha vida quando ainda realizava o curso de Letras na UFBA. Uma excelente professora de teoria da literatura, Evelina Hoisel, hoje titular da disciplina, se referia com entusiasmo não só a Derrida mas também a Foucault, Deleuze e Barthes. Desses, Barthes foi sem dúvida minha primeira paixão e acabou fornecendo a base da dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio, ainda nos anos 1980, quando lá ensinava Silviano Santiago, organizador do Glossário de Derrida (de 1976). De Derrida, li, inicialmente em português, a maior parte dos textos de A escritura e a diferença, da Gramatologia, de Margens – da filosofia. O magnífico “A farmácia de Platão” foi o único que li no original antes de ir à França.

Pois bem, em 1991, recebi uma bolsa de pesquisa do CNPq para acompanhar os seminários de Sarah Kofman sobre Nietzsche na Sorbonne e também para fazer pesquisas sobre aqueles autores cujas ideias embasavam meu projeto de Doutorado, justamente os quatro cavalheiros acima citados, além da própria Kofman e de Kristeva. Por questões administrativas, demorei a obter uma inscrição na Sorbonne (mas depois consegui) e assim fui procurar outro professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Em função do projeto, fui aceito por Derrida como seu aluno. Aí começa toda uma história que narrei em dois artigos diferentes, publicados no “Prosa & Verso”, do Globo (em 2010), e na “Ilustríssima”, da Folha de S. Paulo (este ano).

Como aluno efetivo, tinha o direito de discutir regularmente minha pesquisa com Derrida, chegando a apresentar um trabalho em seu seminário. Fiquei espantado com a quantidade de livros que ele havia publicado até então, cerca de quarenta, desconhecidos no Brasil. Em seus textos, reencontrava algumas temáticas e descobria novas que me acompanham até hoje: a questão da metafísica, a centralidade do poder e a necessidade do descentramento, a amizade, a implicação permanente entre vida e morte, a diferença sexual, a alteridade etc. Assim, acabei escrevendo uma tese a partir do tema da literatura em sua obra, que se tornaria o livro Derrida e a literatura. Depois que defendi a tese, em 1995, fiquei mais um ano na França dando aulas na Université Stendhal, de Grenoble, onde já trabalhava desde 1993.

Em 1996, retornei em definitivo ao Brasil, mas mantive contato com Derrida, voltando a visitá-lo em seu escritório na Maison de l’Homme, em Paris. Em 2001, na segunda viagem dele ao Brasil, começamos a projetar a ideia de um colóquio internacional sobre sua obra. Por razões de ordem prática, o colóquio foi adiado, e, quando enfim pudemos realizá-lo, Derrida já estava muito doente. Apesar disso, ele manteve a palavra e veio ao grande evento realizado, numa parceria do Consulado da França e da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Teatro da Maison de France em 2004. Proferiu a conferência de abertura, participou de todos os debates, deu autógrafos e até concedeu uma entrevista para a GloboNews.

Por um lance do acaso, essa acabou sendo sua última viagem e também sua última aparição pública. Pouco antes de vir ao Rio para o colóquio, ele dera uma longa entrevista ao jornal Le Monde (“Je suis en guerre contre moi-même” [Estou em guerra contra mim mesmo], concedida a Jean Birnbaum e depois publicada como o livro Apprendre à vivre enfin [Aprender a viver, enfim]. Ed. Galilée, 2005), na qual havia uma referência à sua destinação ao Brasil. Isso chamou a atenção de seu futuro biógrafo, Benoît Peeters, que, ao começar as primeiras pesquisas, desejou saber como e porque o pensador tinha feito essa longa travessia do Atlântico, num momento em que sua saúde já era muito precária. Foi assim que um dia, em 2007, interrompendo um estágio de pós-doutorado que realizava na Universidade Livre de Berlim, fui a Paris relatar um pouco de minha relação com o pensamento derridiano, bem como os acontecimentos daquele derradeiro e belo, mas também muito triste evento.

Essa seria, em linhas gerais, a pequena história que me tornou personagem de uma vida de fato filosófica e também muito literária. A despeito ou por causa de tudo o que disse, não me considero um discípulo de Derrida, mas somente alguém que lê atentamente seus textos há mais de duas décadas, com o fito de desdobrar seu pensamento e não apenas o de propor uma explicação fiel ou coisa no gênero. Como você sabe, tenho escrito e publicado ensaios e ficções que em parte dialogam com a obra derridiana, mas em parte também fazem algo completamente diferente. Mesmo quando o cito explicitamente, tenho até certo ponto a consciência de que o reinterpreto a minha maneira. No caso da escrita literária, a reinterpretação e o afastamento são sem dúvida ainda mais radicais. Nunca li Derrida para aplicar de modo irrefletido seus conceitos (como muitas vezes, todavia nem sempre, ocorre em textos universitários), mas para que me servissem de ferramenta a fim de compreender minimamente as coisas da literatura e da cultura em geral. Do mundo, em suma.   
 
 
 

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