1 – Evando, como você se tornou
personagem de Derrida?
Gostei da
formulação da pergunta: “como você se tornou personagem”. Isso indica, de
pronto, o aspecto romanesco de toda vida e de toda biografia. É, portanto, como
pequeno personagem de uma grande vida que respondo. Mas desconfio que, para bem
cumprir a tarefa, teria de escrever minha própria autobiografia, que, claro,
não tem muita importância. Relembraria, no entanto, que Derrida apareceu em
minha vida quando ainda realizava o curso de Letras na UFBA. Uma excelente
professora de teoria da literatura, Evelina Hoisel, hoje titular da disciplina,
se referia com entusiasmo não só a Derrida mas também a Foucault, Deleuze e
Barthes. Desses, Barthes foi sem dúvida minha primeira paixão e acabou
fornecendo a base da dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio, ainda nos anos
1980, quando lá ensinava Silviano Santiago, organizador do Glossário de Derrida (de 1976). De Derrida, li, inicialmente em
português, a maior parte dos textos de A
escritura e a diferença, da Gramatologia,
de Margens – da filosofia. O
magnífico “A farmácia de Platão” foi o único que li no original antes de ir à
França.
Pois bem, em
1991, recebi uma bolsa de pesquisa do CNPq para acompanhar os seminários de
Sarah Kofman sobre Nietzsche na Sorbonne e também para fazer pesquisas sobre
aqueles autores cujas ideias embasavam meu projeto de Doutorado, justamente os
quatro cavalheiros acima citados, além da própria Kofman e de Kristeva. Por
questões administrativas, demorei a obter uma inscrição na Sorbonne (mas depois
consegui) e assim fui procurar outro professor na Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais. Em função do projeto, fui aceito por Derrida como seu aluno.
Aí começa toda uma história que narrei em dois artigos diferentes, publicados
no “Prosa & Verso”, do Globo (em
2010), e na “Ilustríssima”, da Folha de
S. Paulo (este ano).
Como aluno
efetivo, tinha o direito de discutir regularmente minha pesquisa com Derrida,
chegando a apresentar um trabalho em seu seminário. Fiquei espantado com a
quantidade de livros que ele havia publicado até então, cerca de quarenta,
desconhecidos no Brasil. Em seus textos, reencontrava algumas temáticas e
descobria novas que me acompanham até hoje: a questão da metafísica, a
centralidade do poder e a necessidade do descentramento, a amizade, a
implicação permanente entre vida e morte, a diferença sexual, a alteridade etc.
Assim, acabei escrevendo uma tese a partir do tema da literatura em sua obra,
que se tornaria o livro Derrida e a
literatura. Depois que defendi a tese, em 1995, fiquei mais um ano na
França dando aulas na Université Stendhal, de Grenoble, onde já trabalhava
desde 1993.
Em 1996, retornei
em definitivo ao Brasil, mas mantive contato com Derrida, voltando a visitá-lo
em seu escritório na Maison de l’Homme, em Paris. Em 2001, na segunda viagem
dele ao Brasil, começamos a projetar a ideia de um colóquio internacional sobre
sua obra. Por razões de ordem prática, o colóquio foi adiado, e, quando enfim
pudemos realizá-lo, Derrida já estava muito doente. Apesar disso, ele manteve a
palavra e veio ao grande evento realizado, numa parceria do Consulado da França
e da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Teatro da Maison de France em
2004. Proferiu a conferência de abertura, participou de todos os debates, deu
autógrafos e até concedeu uma entrevista para a GloboNews.
Por um lance
do acaso, essa acabou sendo sua última viagem e também sua última aparição
pública. Pouco antes de vir ao Rio para o colóquio, ele dera uma longa
entrevista ao jornal Le Monde (“Je suis en guerre contre moi-même”
[Estou em guerra contra mim mesmo], concedida a Jean Birnbaum e depois
publicada como o livro Apprendre à vivre
enfin [Aprender a viver, enfim]. Ed. Galilée, 2005), na qual havia uma
referência à sua destinação ao Brasil. Isso chamou a atenção de seu futuro
biógrafo, Benoît Peeters, que, ao começar as primeiras pesquisas, desejou saber
como e porque o pensador tinha feito essa longa travessia do Atlântico, num
momento em que sua saúde já era muito precária. Foi assim que um dia, em 2007, interrompendo
um estágio de pós-doutorado que realizava na Universidade Livre de Berlim, fui
a Paris relatar um pouco de minha relação com o pensamento derridiano, bem como
os acontecimentos daquele derradeiro e belo, mas também muito triste evento.
Essa seria,
em linhas gerais, a pequena história que me tornou personagem de uma vida de fato
filosófica e também muito literária. A despeito ou por causa de tudo o que
disse, não me considero um discípulo de Derrida, mas somente alguém que lê
atentamente seus textos há mais de duas décadas, com o fito de desdobrar seu
pensamento e não apenas o de propor uma explicação fiel ou coisa no gênero.
Como você sabe, tenho escrito e publicado ensaios e ficções que em parte
dialogam com a obra derridiana, mas em parte também fazem algo completamente
diferente. Mesmo quando o cito explicitamente, tenho até certo ponto a
consciência de que o reinterpreto a minha
maneira. No caso da escrita literária, a reinterpretação e o afastamento
são sem dúvida ainda mais radicais. Nunca li Derrida para aplicar de modo
irrefletido seus conceitos (como muitas vezes, todavia nem sempre, ocorre em
textos universitários), mas para que me servissem de ferramenta a fim de
compreender minimamente as coisas da literatura e da cultura em geral. Do mundo,
em suma.
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