Título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa, de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, o livro narra um surto psicótico da cantora e compositora, e tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos.
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Neste contexto, a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto da autora recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:
“Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.”
“To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. O livro de Adriana é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Pira com lucidez e roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.
A autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas e as cenas ao seu redor, ela contata uma dimensão antes relacionada à loucura, e hoje cada vez mais administrada no meio social, através de pílulas e da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais.
Como nas canções, a escrita de AC possui humor – ingrediente raro em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir, sentir prazer, pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro. Diz muito da nossa condição doída, mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”