e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Surto com rajada de água lusa



Para Vanessa M


Uma versão deste texto foi publicada em março de 2009 em:
http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522
 


 I
Com capas coloridas e título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa (2009), de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, a obra narra um surto psicótico da autora. Essa  narrativa tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície vivido atualmente no universo artístico e cultural, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada mais ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:


Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.

"To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. A narrativa é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nela, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras. Cancela shows, visita hospitais. Surta com a lucidez e os roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.



II

Em sua viagem lusa, a autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (geralmente sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas, as cenas midiáticas e as figurações contextuais ao seu redor, ela contata uma dimensão psíquica antes relacionada à loucura. Hoje, o contato com essa dimensão é cada vez mais administrado nos meios culturais e sociais; seja através do uso de pílulas ou por meio da criação, por parte da psiquiatria, de siglas como TOC e outros transtornos mentais (será mesmo verdade que, ao nomear, o homem perde o medo do que desconhece?).

Como nas canções, a escrita de Adriana Calcanhoto possui leveza e humor – ingredientes raros em nossas letras geralmente comprometidas em documentar algum contexto, representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir. Faz sentir prazer e pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro, e só quem é bobo não saca. Diz muito da nossa condição doída, das identidades em trânsito nesta primeira década do milênio. Mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”
 

Sabemos que toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente ou com alguma coisa que nos integra ou circunda. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin, Byron, Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade...


Embora os tempos não sejam nada platõnicos, concluo com uma pergunta que remete ao filósofo da abstração que cria no sentido eterno, imutável. A pergunta é: haveria nesses criadores citados acima e na própria Saga... de Adriana alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?

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