e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

o poeta de "todas as cidades que existem"



Cicero, comecemos pelo título. Por que um advérbio?

AC: Por que não? “Guardar” é um verbo. Mas quem melhor explica esse título é Antonio Carlos Secchin, na orelha do livro. Ele diz: “O advérbio ‘porventura’, afirma-nos o Houaiss, é empregado especialmente em perguntas delicadas. Já o sentido de ‘ventura’ oscila entre ‘felicidade’ e ‘risco’ – dois combustíveis perpétuos do poema”.


“Que não se engane ninguém: / ser um poeta é uma África.” (“O poeta marginal”). O que sugere ao leitor a conclusão desse eu poético?

AC: Já que o Secchin citou o Houaiss, vou citar o Aurélio, para o qual “áfrica” é “façanha, proeza, feito”. Assim, ser um poeta é uma façanha, uma proeza, um feito. Usa-se com minúscula, mas prefiro com maiúscula, quando a façanha fica ainda maior e mais misteriosa, como o continente negro.


Tem nome ou referente a “Cidade” que você constrói para Arthur Nestrovsky?

AC: Não. A cidade de A cidade e os livros é o Rio de Janeiro, mas seus lugares “abriam-se em esquinas infinitas / de ruas doravante prolongáveis / por todas as cidades que existiam”. A cidade de Porventura é a que se compõe de todas as cidades que existem. O poema é dedicado ao Arthur Nestrovsky porque surgiu quando ele me encomendou um poema para publicar, não me lembro mais em que periódico.

 
Um “entregador de flores” rouba a cena no poema “As flores da cidade” (Porventura). Há garotos em canções e poemas como “Onda” (Guardar) e “Vitrine” (A cidade e os livros). Gostaria que comentasse a presença deles na sua poética, e de saber se existe sintonia entre essas “musas” e o eu poético que se ouve no “Balanço”, suspeitando se será “plenamente adulto”.
 
AC: Do meu ponto de vista, não há grande sintonia entre eles. É que o sujeito que jamais será plenamente adulto é o sujeito do poema, o poeta. De fato, como poderia ser considerado adulto, sério e maduro alguém como eu, que jamais seguiu carreira alguma, que não tem profissão, emprego ou aposentadoria, alguém que, como diz Borges, “se aplicó a las simétricas porfias / del arte, que entreteje naderías”? A entreter naderias, envelheço, mas jamais cheguei ou chegarei a ser maduro ou adulto. É isso que, entre outras coisas, penso estar dizendo ali.

Já o garoto de “Onda” se origina no Hino Homérico a Hermes. Hermes é o mensageiro dos deuses, correspondente a Mercúrio ou Exu. O autor do Hino fala dele como

[...]

um garoto versátil, manhoso,

ladrão, boiadeiro, pastor de sonhos, olheiro

da noite, manjador de portões, que logo mais

brilharia por seus feitos entre os mortais.

[...]

Transplantando o cenário, da Arcádia para o Arpoador, e modificando um tanto esse trecho do poema, escrevi:

[...]

Garoto versátil, gostoso,

Ladrão, desencaminhador

De sonhos, ninfas e rapsodos

[...]

“a flor/ da onda” vem de Alcman (fr.26).

“Vitrine”, por outro lado, é produto da percepção do comportamento e da divagação sobre o narcisismo e sobre os sonhos de consumo e de virtuosismo futebolístico de tantos rapazes brasileiros.

Quanto a “Flores da cidade”, trata-se de um poema que foi feito a partir de minha experiência de caminhar pela cidade. Adoro tais caminhadas, durante as quais observo muitas coisas, algumas terríveis, outras belas, e às vezes troco olhares ambíguos, equívocos, polissêmicos com os rapazes bonitos que atravessam o meu caminho.

 
Desde Guardar, você vem atualizando a memória e o imaginário urbanos, através de um profícuo diálogo com a mitologia e com alguns autores representativos da cultura clássica. Qual é a importância desse diálogo para a poesia contemporânea?

AC: Posso falar somente da importância desse diálogo para a minha poesia. O que ocorre é que penso em toda a poesia canônica, principalmente na poesia do mundo clássico, que pertence tanto ao Brasil quanto a qualquer outro país, como um thesaurus, um tesauro, um reservatório de figuras. O poeta romântico inglês Keats dizia, com razão, que o poeta não tem personalidade, pois é um camaleão. Pode-se dizer que, enquanto poeta, ele não tem um ser particular. Homero era retratado – a partir, é claro, do retrato que ele mesmo fez do poeta Demódoco, como cego. Interpreta-se isso como a significar que o que ele canta não vem de sua própria experiência, mas do sopro das Musas. Mas a cegueira quer dizer também que ele não se limita ao que vê: não se limita ao presente. Assim é todo poeta enquanto poeta. Por isso, digo em “O poeta cego”:


Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Sem ser nem ver ele verseja.

[...]

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