e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Porventura


 

Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

  

O poeta marginal
 
Em meio às ondas da hora
e às tempestades urbanas
conectarei as palavras
que trovarão novas trovas.
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
Exporei tudo na rede
sem ganhar nem um vintém:
a vaidade, a fome, a sede,
certo truque, rara mágica.
Que não se engane ninguém:
Ser um poeta é uma África.



Cidade

Para Arthur Nestrovsky

Lembro que o futuro era uma cidade
nebulosa da qual eu esperava
tudo e que, sendo uma cidade, nada
esperava de ninguém. Ah, cidade
sonhada de avenidas macadâmicas,
turbas febris e prédios de granito:
o que era que eu perdera e que, perdido
e em cacos, buscava nas tuas áridas
calçadas e esquinas? Hoje constato
que a névoa do futuro do passado
adensa-se dia a dia. De longe
teus contornos são mais arredondados.
Tu, cidade irreal, aos poucos somes:
já anseio te rever e já te escondes.
 


As flores da cidade
 
Há flores pelo caminho através
da cidade à cidade: naturais,
em canteiros e em árvores, talvez,
mas quase todas artificiais
nos cabelos dos bebês, em cachorros
mimados, em vitrines e revistas
femininas, em cartazes e outdoors,
e – de novo naturais – em floristas,
camelôs na calçada e, sobretudo,
nas mãos do entregador de flores, cujo
olhar esverdeado sobre as rosas
é puro absinto e tudo nos deslembra,
lançando-nos dúvidas hiperbólicas
sobre o próprio destino a uma hora dessas.


 

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