e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 20 de agosto de 2013

"Esau e Jacó", crítico e leitor


 
 
Machado século XX. Machado sempre moderno.  Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis. Depois deste, veio o Memorial de Aires, de 1908, ano de sua morte. Essas duas narrativas tem mais em comum do que o simples fato de serem últimos romances: são livros feitos de cadernos. Textos transcritos de cadernos. Escritos à tinta pujante do solitário Aires.

 

Esaú e Jacó é um texto sobre a diferença. Uma prosa sobre a discórdia. Uma narrativa sobre temperamentos opostos, sejam eles republicanos ou monarquistas. Uma narrativa sobre as dualidades ideológicas e existenciais que nos circundam. Um romance sobre a ternura e o tesão, a glória e a agrura, o sublime e o grotesco. Uma ficção do “desacordo no acordo”, “entre um ato e outro”...

 

Esaú e Jacó é um texto sobre o outro. Sobre o leitor. Com ele, Machado dialoga o tempo inteiro. Nesse dialogismo, o autor pede para voltar a página; sugere modos de leitura e ratifica ser melhor ler com atenção. Atento à noção de gênero, ele destingue homens e mulheres como leitores, e poupa o leitor apressado de alguns porquês. Esse diálogo com quem lê atravessa a narrativa. Nela predomina o intertexto com autores com os quais Machado dialoga ao longo de sua produção estética, como Homero, Dante, Cervantes e a Bíblia.


um Conselheiro atravessa dois romances



Como reza a “Advertência” do autor, Esaú e Jacó são os seis cadernos escritos, com tinta encarnada, pelo Conselheiro Aires. Amante da releitura, cultor das Letras clássicas, Aires escrevia bilhetes e cartas. Cordato, o diplomata não era chegado a paixões nem casamentos. “Era homem de todos os climas” (Cap. XXXII), mas preferia a solidão atravessada a sós, como Pessoa: "suave é viver só".

 

O sétimo caderno deixado pelo diplomata transformou-se no Memorial de Aires. Ambos os livros possuem como cenário a cidade do Rio de Janeiro, onde o autor nasceu em 1839. Leitores de Machado de Assis, sabemos que, desde meados do século XIX, quando a cidade do Rio era iluminada por lampiões de rua, este constitui-se seu espaço narrativo recorrente.

 

No bairro do Catete mora Aires, o ex-ministro aposentado que oferece almoços - repletos de salmão e ofícios - para os gêmeos Pedro e Paulo e a bela Flora. É também lá, no Catete, onde termina o Conselheiro “apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.” Alguém vai morrer em Esaú e Jacó; e não é Aires. Ele e o seu memorial estarão vivíssimos no próximo (e último) romance de Machado.

 

A forma e o ruminante

 

Com capítulos curtos de belos e inusitados títulos, o romance é formado por micro-narrativas. Na verdade, o autor narra através de pequenos contos, canções sertanejas, quadrinha espanhola, ditos populares relidos. Seu texto é atravessado por versos ou pequenos poemas em prosa a serem desentranhados pelo arguto leitor.

 

Além dessa forma pouco linear para um romance escrito antes da Semana de 22, o texto apresenta personagens cujos olhos trazem a ironia acesa nas retinas. Ironia e humor. Há bastante humor em Esaú e Jacó. Humor e metalinguagem. Neste livro, o autor elucida parte do seu processo narrativo, através de um exercício metalingüístico que diz: “... porque há estados da alma em que a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.”

 

Acerca da leitura crítica, Machado dialoga com o alemão Schlegel, de Conversa sobre a poesia e Outros fragmentos que diz: “um crítico é um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago". No diálogo que aciona com esse autor romântico alemão, o romancista carioca que rompeu com a linearidade da nossa narrativa escreve: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade...”

 

3 comentários:

Anônimo disse...

Profesor Nonato, lembrei-me do poema(pelo menos uma parte)de Fernando Pessoa. (Carlos -- UFRuRJ): O Guardador de Rebanhos

Fernando Pessoa

(...)II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…

Nonato Gurgel disse...

Carlos, os rebanhos de Pessoa são sempre bons.

Anônimo disse...

Machado e o leitor, muito bom.