Machado século XX. Machado sempre moderno. Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de
Assis. Depois deste, veio o Memorial de
Aires, de 1908, ano de sua morte. Essas duas narrativas tem mais em comum do que o simples fato de serem últimos romances: são livros feitos de cadernos. Textos transcritos de cadernos. Escritos à tinta pujante do solitário Aires.
Esaú e Jacó
é um texto sobre a diferença. Uma prosa sobre a discórdia. Uma narrativa sobre
temperamentos opostos, sejam eles republicanos ou monarquistas.
Uma narrativa sobre as dualidades ideológicas e existenciais que nos circundam.
Um romance sobre a ternura e o tesão, a glória e a agrura, o sublime e o grotesco. Uma ficção do “desacordo no
acordo”, “entre um ato e outro”...
Esaú e Jacó
é um texto sobre o outro. Sobre o leitor. Com ele, Machado dialoga o
tempo inteiro. Nesse dialogismo, o autor pede para voltar a página; sugere
modos de leitura e ratifica ser melhor ler com atenção. Atento à noção de
gênero, ele destingue homens e mulheres como leitores, e poupa o leitor
apressado de alguns porquês. Esse diálogo com quem lê atravessa a
narrativa. Nela predomina o intertexto com autores com os quais Machado dialoga
ao longo de sua produção estética, como Homero, Dante, Cervantes e a Bíblia.
um Conselheiro atravessa dois romances
um Conselheiro atravessa dois romances
Como reza a “Advertência” do
autor, Esaú e Jacó são os seis
cadernos escritos, com tinta encarnada, pelo Conselheiro Aires. Amante
da releitura, cultor das Letras clássicas, Aires escrevia bilhetes e
cartas. Cordato, o diplomata não era chegado a paixões nem casamentos. “Era
homem de todos os climas” (Cap. XXXII), mas preferia a
solidão atravessada a sós, como Pessoa: "suave é viver só".
O sétimo caderno deixado pelo
diplomata transformou-se no Memorial de Aires.
Ambos os livros possuem como cenário a cidade do Rio de Janeiro, onde o autor nasceu
em 1839. Leitores de Machado de Assis, sabemos que, desde meados do século XIX,
quando a cidade do Rio era iluminada por lampiões de rua, este constitui-se seu espaço narrativo recorrente.
No bairro do Catete mora
Aires, o ex-ministro aposentado que oferece almoços - repletos de salmão e
ofícios - para os gêmeos Pedro e Paulo e a bela Flora. É também lá, no Catete, onde
termina o Conselheiro “apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor eterna.”
Alguém vai morrer em Esaú e Jacó; e não é Aires. Ele e o seu memorial estarão
vivíssimos no próximo (e último) romance de Machado.
A forma e o ruminante
Com capítulos curtos de belos e
inusitados títulos, o romance é formado por micro-narrativas. Na verdade, o
autor narra através de pequenos contos, canções sertanejas, quadrinha
espanhola, ditos populares relidos. Seu texto é atravessado por versos ou pequenos
poemas em prosa a serem desentranhados pelo arguto leitor.
Além dessa forma pouco linear para
um romance escrito antes da Semana de 22, o texto apresenta personagens cujos
olhos trazem a ironia acesa nas retinas. Ironia e humor. Há bastante humor em Esaú e Jacó. Humor e metalinguagem. Neste livro, o
autor elucida parte do seu processo narrativo, através de um exercício
metalingüístico que diz: “... porque há estados da alma em que a matéria da
narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo.”
Acerca da leitura crítica,
Machado dialoga com o alemão Schlegel, de Conversa
sobre a poesia e Outros fragmentos que diz: “um crítico é
um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago".
No diálogo que aciona com esse autor romântico alemão, o romancista carioca que
rompeu com a linearidade da nossa narrativa escreve: “O leitor atento,
verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por ele faz
passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade...”
3 comentários:
Profesor Nonato, lembrei-me do poema(pelo menos uma parte)de Fernando Pessoa. (Carlos -- UFRuRJ): O Guardador de Rebanhos
Fernando Pessoa
(...)II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…
Carlos, os rebanhos de Pessoa são sempre bons.
Machado e o leitor, muito bom.
Postar um comentário