e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Lobo bélico


I

 
Os cus de Judas foi publicado por Lobo Antunes em 1979. Detentor de vários prêmios, o romance é uma narrativa feita dos estilhaços de vozes e fragmentos de imagens lidas pelo autor na guerra de Angola. Um livro escrito de ouvido atento ao “...silêncio carregado de ruído que África tem quando se cala...” (p. 34).

 
Como médico e escritor, Antunes viveu nesta guerra colonial portuguesa o medo e a perda, além da sua falta de justificativa. Por isso, em seu romance “os homens caem”, morrem. Terminam feito peixes findando nos confins, nos Cus de Judas. Apesar das quedas e mortes, o narrador não esquece a vida, o sonho: “...mas já imaginou o espaço que sobra para o sonho, não um sonho de mobílias, doméstico, conjugal... ...o sonho à Infante D. Henrique feito de mares desconhecidos, de mostrengos e de especiarias...” (p. 126).


Além dos sonhos e pesadelos, o livro de Lobo Antunes é repleto de seres famintos e aflitos. Personagens cujas existências parecem pautadas no ritmo da “aflição de pedras que respiram”. As falas estilhaçadas do narrador e os nacos de imagens desta guerra africana alimentam uma linguagem fragmentada de diferentes tons. Dessa linguagem, ecoa a dicção nobre – herdada principalmente da literatura do século XIX –, assim como uma boa taxa da oralidade contemporânea que nos circunda.

 
II


Essa oralidade, em Os cus de Judas, é bastante sedutora. O autor seduz o ouvido de quem lê com expressões do tipo “percebe”, “sabe como é’, “escute”, “já reparou”... Essa sedução lingüística é motivada pela noção de diferença que se inscreve desde a especificidade espacial proposta pela guerra, e tem o outro como parâmetro. Ela parece, essa sedução, típica de um narrador que assume estar “a fim de se escutar a si próprio nos ouvidos dos outros”.

 
Neste romance-testemunho, o leitor é bastante convocado. Ele transita literalmente nos "cenários em ruínas" da guerra. Adentra suas derivas sem luz, e visita trevas de suas próprias entranhas. O leitor transita pelos desvios e deslocamentos de uma narrativa atravessada – toda ela – por dois “ingredientes” explosivos, de ruptura, presentes em toda colonização: cultura e violência.


Antunes escreve uma narrativa bélica, de busca. Nela, dualidades infindas e atemporais se cruzam: a história e a identidade, amor e guerra, grotesco e sublime, desejo e morte, memória e testemunho. Todos esses núcleos temáticos ajudam a ler o que lateja na prosa do mundo. Eles podem re-encantar o homem-pós-guerra que, mesmo não acreditando em si, escreve: “me encanta: posso ainda considerar-me um homem para mais tarde... (p. 125). Essa descrença em si é destrutiva, cita nomes, é narrada de forma radical, assim:

 
“Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados... ...Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de troca? A esses, os Camilos Torres, os Guevaras, os Allendes, apressemo-nos a matá-los porque o seu amor combativo nos incomoda...” (p. 136).


2 comentários:

Anônimo disse...

Quem te deu o direito de me decifrar assim?

Anônimo disse...

"uma narrativa bélica, de busca"