O texto a seguir foi escrito durante o curso de mestrado em Estudos da Linguagem, na UFRN, e publicado pela editora da UFRRJ no livro Cidade fundida (2013).
I – Introdução
Inscrevendo
no cenário colonial pernambucano um personagem que jamais tocou o solo
nordestino, o romance Catatau do
escritor Paulo Leminski (1944 –1989) transporta da civilizada Europa para os
trópicos carnavalizados o filósofo René Descartes (1598 – 1650). Numa narrativa
fragmentada e experimental, o criador do Discurso do
Método e pai do discurso analítico é latinizado como
Renatus Cartesius (1). Nesta estetização feita pelo poeta paranaense, em plena
ditadura militar do Brasil nos anos setenta, Descartes perde o método e o
discurso do bom senso. Apesar dessa perda, o filósofo ganha luneta com lentes,
além de um olhar inusitado que mira a margem de outro ângulo.
Para a
leitura desta mirada, deste outro ângulo, este ensaio aborda questões
relacionadas à produção da linguagem, destacando a importância do signo
lingüístico e as múltiplas possibilidades do significante. O texto destaca
temas e procedimentos culturais que possuem relações com a forma artística, a
desconstrução lógica, a estética barroca e, dentre outros, as questões do olhar
e da diferença potencializadas na interação com o outro.
Publicada em
1975, esta primeira obra do autor curitibano despertou a atenção da crítica
literária e, embora conste dos manuais literários, é uma obra
pouquíssimo lida. Marcou pouca presença no universo acadêmico. O livro originou-se de um conto enviado ao I concurso de Contos de
Paraná, em 1968. Com o título “Descartes com Lentes”, o
referido texto ganhou o 1º lugar “mas não levou o prêmio”. Somente em 1987 este
fato foi justificado. Segundo o crítico literário Fausto Cunha – um dos cinco
membros do júri –, o voto do jurado Léo Gilson Ribeiro para o conto do Leminski
foi inválido por questão de erro na identificação do referido texto.
Segundo
Leminski, “Catatau
já começou sob o signo do equívoco e do qüiproquó”. Para ele, o texto “trazia
em si um princípio de crescimento”, “como uma alegoria barroca”. Seguindo tal
princípio, o livro expande-se no contexto pernambucano do século dezessete e
tem como personagens, além do filósofo René Descartes, dois outros que se
escondem na narrativa: Occam – o “monstro que habita as profundezas do texto”
(e que o autor suspeita ser “o primeiro personagem puramente semiótico,
abstrato, da ficção brasileira”) e Artiscewski – o explicador esperado por
Cartésio (Descartes).
Assim como a
linguagem de Cartésio aponta para deslocamentos de sentidos e direções, quando
distanciada do espaço central onde foi produzida, o título da obra de Leminski
remete a vários significados. Segundo Leminski, Catatau tem origem
“provavelmente onomatopaica”. Em Portugal, significa “uma surra”, “uma determinada
carta de baralho” ou “pênis”. No Brasil, “designa tanto uma coisa grande (um
catatau de papéis) quanto uma coisa pequena (um nanico, um baixote)”. Outros
significados como “zoada”, “discussão”, “espada velha” e expressão tipo “feio
como o catatau” (ouvida na Bahia), atestam ser o referido vocábulo um dos mais
polissêmicos do idioma.
Além desta
polissemia do título, o texto do poeta é um amálgama lingüístico /literário.
Sua construção tem por base inúmeros significantes oriundos de várias línguas,
como italiano, latim, francês, holandês, tupi, inglês e alemão, além da criação
de neologismos (os processos de aglutinação ou afixação e justaposição são
constantes). A produção destes neologismos pode ser aferida no uso de
expressões as mais inusitadas como, por exemplo, catedrástica galgueja pantedra
estratagédia assassignou oxaliás testenenhuma cadástrofe observidão
molequemaluco nenhures quálculo depresságio chacadaqualham desdom polisinfônica
nenhúmida padremestre nataúde almanhã animalculos enigmagina narravarro
rascunheço comovimentam labirinfúndio.
Além dos
neologismos criados num idioma cultuado às margens do processo cultural do
cidente, múltiplas questões enveredam pelo labirinto textual do Catatau. Sem um roteiro preciso nem uma
história linear, o texto trata de si próprio (Occam é considerado o “orixá do
texto”) e de questões relacionadas à arte e filosofia. Trata principalmente de
temas ligados à literatura e ao processo da criação artística e da crítica
literária, envolvendo a tradição cultural, os ritmos do corpo e da escrita, a
presença de Deus, o sentido da norma, as relações do sonho com a produção
estética, o duplo no espelho, a construção da lógica e do sentido.
Dentre as
questões mencionadas, a forma aparenta repetir-se mais que as demais,
perpassando todo o texto (“Peço proteção a um poder geométrico”, diz o narrador
na página 91). Tamanha preocupação com o exercício da forma é facilmente
explicável, não fosse Leminski o poeta conciso e formal que é. Segundo ele,
“todo artista é limitado já a priori por uma língua e por um estoque de formas”
(cf. o ensaio “Poesia: A Paixão da Linguagem” in Os Sentidos
da Paixão).
A história do
Catatau mostra, desde o início, que
algo novo e radical surgiu no mundo das letras e linguagens, no espaço semiótico
da cultura brasileira. Catatau é uma
usina de signos (2). Quando do seu lançamento, um convite prometendo coquitel
dizia que o autor ficaria “muito feliz” com as presenças dos leitores e
convidados. Um belo cartaz com fotografia de um atlético e barbudo Leminski
avisava na Curitiba de 1975: PREPAREM-SE. O CATATAU VEM AÍ.
II – Pelos
Labirinterários do Catatau
“A história deixou a memória/ em estados
interessantes”
Cartésio
A prosa
experimental do Catatau foi escrita
por Paulo Leminski durante oito anos. Lançada em 1975, a narrativa remete ao
contexto histórico e cultural do século XVII e aos 24 anos da experiência
holandesa no Brasil. As imagens e linguagens deste livro estetizam as
possibilidades políticas e econômicas da margem na qual se situa o país, em
relação aos discursos colonizadores produzidos pela visão eurocêntrica daquele
contexto.
Para tornar
inscritível sua escritura no panorama da historiografia literária, Leminski
patrocina duas rupturas: uma com os conceitos de gêneros literários (a sua
prosa contém alto teor poético) (3), e outra com a história diacrônica do país
(logo ele que era professor de História), invertendo os signos pátrios que
narram a história oficial.
Colocando no cenário barroco
brasileiro os personagens de sua narrativa, o poeta de Caprichos & Relaxos coloca o criador do Discurso do Método na companhia do príncipe Maurício
de Nassau, na tentativa de estabelecimento da Companhia das Índias Ocidentais
no Brasil. Aqui chegando, ela conquistou Pernambuco, Maranhão e Sergipe.
A sincronia de
Leminski com os holandeses corresponde ao interesse destes por nós. Segundo o
poeta, : “... não resta menor dúvida que os holandeses da Companhia, no século
XVII, trouxeram para o Brasil instituições mais avançadas que as ibéricas;
capitalismo (e não feudalismo cartorial), liberdade de culto e de pensamento,
tecnologias superiores.” Neste contexto no qual “fomos da Holanda”, Maurício de
Nassau representava os interesses econômicos e culturais da burguesia holandesa
no contexto periférico do Brasil colônia. Ele vivia cercado de artistas e
sábios (Golijath, Marcgravf, Wagener, Post, Eckhout, etc.). Construiu um
observatório astronômico e erigiu Recife – “a primeira cidade da América a ter
um traçado arquitetônico regular” (Leminski).
Além dos
artistas e sábios, Mauritzius de Brasilianen (cognominação dos holandeses) era
amigo de um grande pensador francês que foi seu oficial nas guerras da Europa:
René Descartes. É com base nestas informações históricas, que Leminski recria
nossa história colonial introduzindo no palácio de Vrijburg (Olinda) o pai do
discurso analítico. Como a possibilidade na qual ancorou a colonização
holandesa no Brasil, a estadia do filósofo europeu nos hortos e zoológicos
tropicais transforma-se também em signo de uma possibilidade. Como
conseqüência, torna-se possível a escritura leminskiana. Se Descartes
(filósofo, matemático, físico, biólogo, anatomista, católico...) esteve ou não
tropicalista é uma questão menor. Importa saber que: se o projeto de Nassau não
vingou em Vrijburg (pronuncia-se Fraiberg – a cidade livre), o roteiro
narrativo de Leminski tornou-se viável via Descartes em Olinda.
O texto de
Paulo Leminski parece sincronizado com o estilo barroco predominante por ocasião
da permanência dos holandeses nestas plagas. O próprio autor remete o seu Catatau a “uma alegoria barroca”. Estilo
surgido em contraposição ao classicismo da alta Renascença, o Barroco
patrocinou uma prosa preocupada com a expressividade, o exagero, as leis “das
dobras” e “de curvatura”, as inquietações do corpo e da alma.
Enveredando
por vários campos da arte (pintura, escultura, música, poesia), a luminosidade
barroca não exclui as tensões das trevas, nem deixa de luzir sobre as massas e
corpos de formas as mais esdrúxulas, prolixas. Contanto que tais formas
expressem vigor. Para o escritor Jorge Luís Borges, o Barroco é lido como a
etapa final da toda arte. Em sintonia com esta leitura, Leminski representa no
Catatau a problemática da representação na modernidade, mostrando-se barroco
neste sentido borgeano. O fato de romper com a tradição e com os discursos
instituídos pelo centro é já indício do que seja moderno. Digo: barroco.
III - “Homem Olha
Coisas” (Cartésio)
Latinizado
Renatus Cartesius, o filósofo René Descartes perde agora o método e o discurso
do bom senso. Batizado por Leminski como Cartésio, ele ganha luneta com lentes,
além de um outro olhar no qual o espaço periférico ganha nome e inscrição. O
projeto do “Discurso do Método” tem como objetivo conduzir bem “a própria razão
e procurar verdade nas ciências”. Logo de início proclama a superioridade do
“espírito bom” e a necessidade de “aplicá-lo bem”. Dizendo-se nutrido nas
Letras (Gramática, História, Poesia, Retórica) (4), Descartes busca ainda
encontrar, na sua filosofia, a verdade habitante das paixões da alma e “de toda
a natureza do homem”. Tamanha ambição remete a Cartésio e seus “complexos
cartesianos”, suas paixões.
Na análise
filosófica e cartesiana das paixões, os movimentos dos músculos possuem como
causa o encolhimento de um membro o alongamento do seu oposto. Para a
compreensão dessa ambigüidade, o filósofo apresenta uma explicação racional: “a
única coisa que faz um músculo encolher-se mais do que seu oposto é que recebe,
por pouco que seja, mais espírito do cérebro do que o outro”.
Tratando das
“redobras da matéria”, o filósofo Gilles Deleuze descarta o cartesianismo. Para
o autor de A Dobra,
faz-se necessário distinguir os “labirintos” nos quais estão envolvidos o corpo
e a alma. Segundo ele, Descartes não conseguiu penetrar tais espaços porque
“procurou o segredo do contínuo em percursos retilíneos e o segredo da
liberdade em uma retidão da alma”. Dessa forma, o homem do “Método” ignorou a
“inclinação da alma” e a “curvatura da matéria”. Além disso, o projeto
cartesiano separava o corpo da alma. Postulava um pensamento puro – algo bem
diferente das misturas e das transformações que ele descobre nas culturas que
foram construídas em terras nordestinas.
Ainda com
relação ao estudo de Leibniz e o Barroco em A Dobra,
Deleuze credita outro “erro” a Descartes: “acreditar que a distinção real entre
partes trazia consigo a separabilidade”. O filósofo francês assegura que “a
ausência de coerência ou de coesão” é o que “define um fluido absoluto”. A
fluidez cartesiana jamais seria absoluta: ignorando a intuição em prol da
razão, não existe possibilidade de qualquer coesão.
Voltemos,
pois, ao plano da narrativa. No romance Catatau,
o homem que agora olha as coisas como se as visse pela primeira vez não mais
possui os rigores da lógica. Nem a completude do sentido. Diz Cartésio: “Óbvio
que nem tudo é ambíguo. Eu é que perdi os sentidos. Os cinco vêm diversos, num
mesmo universo: nuliverso – contrasenso”. (p. 44). Depois o personagem anuncia:
“Sentido que é uma beleza não faz, vibrar sim. ... não tem sentido completo mas
uma direção constante.” (p. 151). E complementa mais adiante, frente ao novo
mundo que as terras periféricas revelam: “Perdi um punhado de sentidos...
Fiquei muito sentido!” (p. 169)
Apesar de
reconhecer na perda do sentido a possibilidade de vivenciar a compreensão nos
trópicos, Cartésio busca a luz do entendimento e enquanto não a vislumbra
indaga: “agora o que vai ser dos sentidos meus cinco?” (p. 162). Atentando-se
para uma conceituação que remete ao universo teórico bartheano, vê-se que seria
ele agora definido também pela sua imaginação e não apenas pelas idéias; o que
resultaria num “homem estrutural”. (5).
Na
recomposição deste novo sujeito que habita os trópicos, as margens, o cogito
cartesiano – a conceituação lógica do EU, “primeiro conceito” (segundo Deleuze)
– cede agora lugar ao conhecimento via intuição. Cartésio ganha outro olhar.
Agora, o espanto baliza o abismo. Cartésio questiona-se: “Se nossos superiores
disseram que o espelho gera trindade... Como pode haver mais de um Deus se sou
só um eu, um sou?” (p. 120) E totalmente esquecido do antigo conceito do EU
produzido no espaço central do discurso, ele avisa: “... ai de quem for achado
como eu, desleixado do eu, esquecido do eu. Me esqueci, amnésia à toa,
mensageiro passageiro: querendo exibir um mínimo de existência, bate asas no
vazio, o vazio só com ele, e ele sozinho.” (p. 84)
Nesta solidão
compartilhada com plantas e bichos tropicais, parece que o “Método” cartesiano
pesa: “Mal posso com meus grilos, como fazer sala a jibóias, e tatus, e
preguiças?”, indaga Cartésio, para afirmar depois a nova realidade na qual se
instalou: “... indício da irrupção de novas realidades. Que signos abriram as
cortinas que separavam meus métodos das tentações dos Deuses destas paragens?”
Uma coisa parece clara para Cartésio /Leminski: ambos buscam a liberdade de
suas linguagens. (6)
Nesta outra
margem habitada por Cartésio, o trânsito livre pelas linguagens permite a
formação permanente de novos conceitos. Isso remete a Deleuze: “cada conceito
remete a outros conceitos”; o que o leva a concluir que “os conceitos vão pois
ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada”. Admitindo “que
cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado
ou retalhado”, Deleuze relê Descartes atentando para as questões conceituais de
tempo e espaço. Para o autor de O que é a
Filosofia?, o tempo que Kant introduz no cogito de Descartes é diferente do
tempo da “anterioridade” de Platão. (7)
O plano
revolucionário traçado por Kant ultrapassa o cartesiano. O seu conceito de
tempo “torna-se forma de interioridade” e não remete apenas ao tempo sucessivo
como queria Descartes. A conceituação de Kant para o tempo envolve três
componentes: sucessão, simultaneidade e permanência. Estes conceitos remetem a
Cartésio, cujas noções de tempo e espaço lidos em plagas brasileiras não
combinam com o cogito de Descartes.
O Discurso do Método não se sustenta nos trópicos,
quando transplantado para o discurso da temporalidade feito por Cartésio.
Segundo o personagem, “nada como um ano dentro de um dia, nada como a
eternidade num lugar. A noite cai sob o peso da lua, os espaços estelares não estão
com sua forma característica”. (p. 90). Esse mesmo discurso diz: “Volta devagar
olhando o rio, o mar, o mundo e o lugar comum ao tempo e ao espaço! Chega a
tempo, a eternidade para sanar e salvar os encurralados...” (p. 123). Essa
temporalidade é ratificada da seguinte maneira: “Convivo um tempo feito por
obra e ordem do espírito, e que tempo não é feito, que tempo existe por si só,
quanto tempo consegue escafander os galparélagos e as ardimalhas dos
experimentos físicos?” (p. 165). Como ouvimos, não são nada lineares e
sucessivas as noções de tempos e espaços que figuram no novo discurso de
Ranatus Cartésius.
IV - O Outro e Outra
Ótica
A nova ótica
de Cartésio diferencia-se da ótica criada por Descartes, enquanto disciplina
científica – Dioptria (refração da luz) – parte da Física. Perdido em seus
“exercícios de exílios”, Cartésio instala-se na idade do ícone (8) e contempla:
“A contemplação não dispõe da mínima consideração: a teoria termina com o
desfile dos arquétipos...” (p. 162) Reconhece sintático e em letras maiúsculas
na primeira pagina do romance: “CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS
NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA” (Catatau, p. 13)
Estas novas
“imagênesis” não impedem que o filósofo abdique de sua função criadora de elaborar
conceitos. E enquanto fuma uma nova er(v)a e lê o seu novo universo utópico,
fragmentado, Cartésio parece inverter os princípios do “Método” anterior,
cônscio de sua multiplicidade e da pluralidade de formas: “Dou-me a
multiplicidade, salvando-me dos ermos de mim: deixe uma margem de
circunstâncias para minha segurança”, afirma. E, menos singular e metódico que
sugerem os discursos produzidos na metrópole, o personagem prossegue em torno
das estruturas:
· “Eu assumo várias formas"
(p. 19)
· “... peguem a forma da folha:
mimeses. E a forma? Coisas da vida! Vinde a mim, geometrias, figuras perfeitas,
- Platão, abri o curral de arquétipos e protótipos; Formas geométricas, investi
com vossas arestas únicas, ângulos impossíveis, fios invisíveis a olho
nu...” (27)
· “O próprio desta morada é o
minguado pensar: uma geometria, o mínimo de discurso”
(p. 29)
· “Sinto em mim as forças e
formas deste mundo...” (p.36)
· “Solsuposto, lugar geométrico,
emendas suspeitas, o espelho deforma. O estertor do interior é
apenas uma onda do mar exterior: o interior, um inferior, - o íntimo, último
interno em contorno.” (Catatau, p.
69)
· “A mente tem excessos que o
corpo não excetua” (p. 84)
· “Reino ali. Sou a ordem interna,
a circulação dos humores e a perfeição geométrica”
(p. 91)
· “Peço proteção a um poder
geométrico” (p. 91)
· “A crise, não mantenho essas
formas, não sustento as curvas!” (p. 92)
· “Insídia e assédio, formas e
graus do mesmo fasto” (p.
113)
· “... rompantes e requintes, o
continente produzindo conteúdos!” (p. 129)
· “Provar geometricamente que
outros existem” (p. 151)
· “A forma, primeiro peso” (p. 157)
· “Substância, toma corpo,
pronta para a forma, matéria se relacionando, platônica e puramente” (p. 203)
Aberto às
possibilidades e aos novos códigos do cenário periférico para onde foi
transplantado, segue Cartésio e suas formas a “lei das dobras”. Ele assume a
sua porção barroca, clama por ângulos invisíveis e, de olho no outro, proclama:
“Altura altera largura, sei mais de mim que de outros mas tem muitos em mim,
que eu não sei”.
Esta preocupação com o outro que
o compõe, esta tentativa de abolição do EU (“... a palavra mais forte manda ser
a mais fraca das coisas: eu.”), desemboca na possibilidade de vivenciar a
leitura formal do outro, como parâmetro para conceituar sua própria existência:
“Incompossibilidade: posso ser eu se, e somente se, vir outro eu ser para mim o
que para ele serei...”
Tais
possibilidades de interação com outrem são compartilhadas com um outro filósofo
– Deleuze. Segundo ele, “outrem é um mundo possível, tal como existe num mundo
que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade. Neste
sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto
existente, linguagem real ou fala”. Desses componentes, Cartésio mostra-se
inteirado ao dizer: “Só com outras consciências retroagindo existe a impostura
do eu, lógico e infere-se nos trabalhos da comunicação...”
Para Cartésio,
a relação que envolve a diferença nunca é fácil: “Dei de ser outro. Outro é bom
mas é muito longe. Último suspiro, o zero da equação. Natura esconde o jogo.
Deus, causa, raro aparece. O último que veio, foi o que se sabe”. (p. 59)
Apesar da distância e das dificuldades do jogo, Cartésio confirma sua busca no
novo cenário que lhe é dado viver, e propõe “voar para dentro do outro”. (p.
197).
O outro
esperado por Cartésio, assim como Descartes, também existiu (historicamente
falando). Segundo Antonio Risério, “trata-se do fidalgo polonês Kristof
Arciszewski, general das tropas holandesas, que foi expulso da Polônia por suas
idéias anti-jesuíticas”. Articzewski (a grafia é mutante no texto) é “o explicador”,
embora ele seja menos citado e mais esperado que o outro personagem que, com
Cartésio, forma a trindade de Catatau:
Occam – “uma alegoria do texto”. Articzewski foi oficial de Nassau. Na
narrativa tropical leminskiana, ele passa a ser o outro esperado por Cartésio,
para “esclarecer dúvidas que atormentam” a vida do filósofo.
Enquanto
espera, Cartésio conscientiza-se de que “aboio de bicho busca apoio em outro
berro”. (p 22). Parece lembrar que “um galo sozinho não tece manhã” (10).
Parece também em sintonia com outra fala de Leminski: “o eco dum berro dum
bicho é o berro de outro bicho”. Por fim, ARTYSCHEWSKI (última grafia na última
página do Catatau) surge bêbado. O
eco do berro de Cartésio chegara a seus ouvidos? Cartésio AUMENTA o telescópio.
Não sabe se será visto “com outros olhos ou com os olhos dos outros” (p. 206),
nem se terá compreensão: “Bêbado, quem me compreenderá?” Essa é a mais uma
dúvida que atormenta sua mente.
Enquanto
produzi dúvidas e outras indagações no novo mundo, Cartésio mostra um novo
olhar “em prol de uma alteração nas coisas”: “Só pensado não dá para chegar lá:
tem que andar, olhar bem para os lados, atirando ao menor movimento, o maior
olhar”. (p. 205) Este novo olhar, neste outro mundo, leva Cartésio a cultivar
nos jardins tropicais a criação a partir do zero. Como um cientista, ele olha,
observa, experimenta. Nada julga. Sua longa espera anuncia uma busca que a cada
novo signo torna-se mais intensificada, continua em aberto... E, em meio a
bichos e seres da tradição (“Não somos os ossos de Ovídio?”), poderia indagar:
Onde é que nós estamos que já nos reconhecemos conhecidos? (10)
NOTAS
01 – O filósofo francês René
Descartes é presença marcante na obra do poeta paranaense Paulo Leminski. Além
de aparecer latinizado de Renatus Cartésius, como personagem principal de Catatau, o autor do Discurso do
Método é homenageado com umpoema pelo autor de L
avie en close. Publicado em 1991 (edição póstuma), La vie em
close é o último livro de Leminski (1944-1989). Discípulo dos
jesuítas, Descartes é citado por Leminski em “Quando fomos Holanda” (último
texto escrito pelo poeta, e publicado no jornal Nicolau) do seguinte modo: “...Fiz com que ele afundasse na
aventura de entender Mundos Novos, como este, ao mesmo tempo que naufraga na
própria linguagem com que tenta realizar a experiência de compreender o
Brasil”. Assim sendo, Descartes está no 1º livro do poeta paranaense, é tema de
uma mini-oração no último livro do poeta e torna-se destaque do último texto
escrito por Leminski para um jornal. Segundo o Nicolau, “Leminski deixara o texto cuidadosamente datilografado
dentro de um exemplar de Catatau –
sua aventura rosajoyceana entre nós, summa e opera máxima”.
02 – Além de ser um dos temas
mais constantes do Catatau (“...a
arte gráfica cristaliza o manuscrito em arquitetura de signos...”(30) ), o
signo aparece com freqüência na obra leminskiana. Na Epístola a Régis diz
Paulo: “...o signo é nosso destino/ nossa desgraça e nossa glória/ uma aranha
sempre sabe/ que depois desta teia/ virá outra teia e outra teia e outra/ uma
aranha não duvida...” Em carta datada de 1977 para Régis Bonvicino, Leminski
trata da “guerrilha dos signos”, cita Peirce (inventor da Semiótica – teoria
dos signos), e diz da geração de signos: “signos geram signos/ por
cissisparidade por hibridismo por mutação”.
03 – Seguindo a linha evolutiva
da tradição literária traçada por Pe. Antonio Vieira, Gregório de Mattos,
Oswald de Andrade, Guimarães Rosa e Haroldo de Campos, dentre outros, Leminski
elabora um texto “excêntrico” (Leda Estela S. Boll – bibliotecária responsável
pelo fichamento da 2ª edição do Catatau),
no qual os conceitos de gêneros literários diluem-se. No Catatau, os signos intercalam-se. Pode-se dizer dele o que escreveu
Jakobson acerca das perfeições sígnicas: “os mais perfeitos dos signos” seriam
aqueles nos quais o caráter icônico, o caráter indicativo e caráter simbólico
estão amalgamados em proporções tão iguais quanto possíveis.
05 – Este homem estaria
sintonizado com a “atividade estruturalista” proposta por Roland Barthes.
Segundo o teórico francês, consiste tal “atividade” em tomar o real e o
decompor. Depois o recompor, produzindo algo novo, diferente.
06 – “Tudo é claro, estou
compreendendo. Atenção. Quero a liberdade de minha linguagem. Vire-se.
Independência ou silêncio. As núpcias da Essência e da existência. Vir a ser é
assim” (Catatau, p. 58)
“Quero ver o que digo feito à
margem e imagem do pensado, ouvido no mais difícil e azedo do falado; essa voz
me agradifica do que ignoro porque isso sei, com tanta certeza como se nada
mais soubesse”. (Catatau, p. 69)
07 – “Descartes tinha criado o
cogito como conceito, mas expulsado o tempo como “forma de anterioridade” para
fazer dele um simples modo de sucessão que remete a criação contínua. Kant
reintroduz o tempo no cogito, mas um tempo inteiramente diferente daquele da
anterioridade platônica. Criação de conceito. Ele faz do tempo um componente de
um novo cogito...” (Gilles Deleuze, O Que é a Filosofia?,
p. 45).
08 – Segunda Peirce, o conceito
de ÍCONE pertence à nossa experiência passada. Para o filósofo americano, o ícone
só existe como uma imagem no espírito. Dentre as tricotomias criadas por
Peirce, existe uma que envolve “a relação do signo com seu objeto dinâmico”.
Além do ÍCONE, pertencem a tal tricotomia o ÍNDICE e o SÍMBOLO. Leminski parece
antenado com as idéias triádicas peirceanas e proclama no Catatau a necessidade de “olhar dentro da trindade e ver o truque”.
(p. 177)
09 – 1º verso do poema “Tecendo
a Manhã” do livro A Educação Pela Pedra,
João Cabral de Melo Neto. O referido livro foi publicado em 1966 com 48 poemas.
10 – Paráfrase composta a partir
de um verso do CATATAU: ONDE É QUE ESTAMOS QUE JÁ NÃO RECONHECEMOS OS
DESCONHECIDOS? Para Cartésio, reconhecer-se conhecido significa que, apesar de
uma “fera” que “urra dando a luz”, apesar do “desvario”, do “desvio”, sua
luneta consegue vislumbrar o outro na subida. Se vem bêbado, vai compreendê-lo,
vê-lo com outros olhos, não importa. Vale saber que a espera não foi em vão.
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RISÉRIO, Antonio. “Catatau: cartesanato” in Catatau. 2ª ed.
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SANTAELLA, Lúcia. O Que é Semiótica. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
SANTAELLA, Lúcia. “Ilha Eletrônica” in Nicolau nº 24. Curitiba-PR, Junho 1989.
SARTRE, Jean-Paul. A Imaginação.
1ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).
Um comentário:
· “Peço proteção a um poder geométrico”
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