e todo caminho deu no mar

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"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

segunda-feira, 14 de julho de 2014

uma dose de João


O amor, como a democracia, dá muito trabalho.
Ambos exigem muito investimento, principalmente
de caráter e afetivo.
 
João Antonio

 
Com trânsito bastante produtivo nos universos da literatura e do jornalismo, João Antonio assumia ser o tipo de escritor atraído pela vida e pelas formas que vingam às margens da sociedade brasileira. Ele preferia escrever sobre coisas experimentadas, situações vividas no corpo e na fala. Repórter de ícones importantes da mídia na década de 70, como a revista Realidade e jornal O pasquim, ele atravessou grande parte do Brasil urbano e rural, e parecia fascinado pelas coisas da cultura popular.
 
Alguns dos seus personagens exemplificam aquele narrador clássico, de quem nos fala Walter Benjamin, um narrador calcado na oralidade, conectado com a fala cotidiana e seus desvios. Como sabemos, este tipo de narrador recorre ao seu “acervo” de experiências próprias e alheias, a fim de inscrever a sua aprendizagem, os seus deslocamentos. Ele tem uma norma de vida que deseja repassar, ao vivo, na cara do freguês, como ensina a lição do crítico alemão, a partir da leitura que ele faz do russo Leskov e seus personagens agrários.
 
Esta narrativa que testemunha a experiência vivida e a memória - como lemos no texto de João “Corpo-a-corpo com a vida” - possui uma linhagem vigorosa em nossa literatura. A essa linhagem filiam-se autores da maior importância, como Graciliano Ramos e Lima Barreto. No século XX, estes autores são  parâmetros estéticos e culturais para a abordagem temática do cotidiano das camadas populares, e das linguagens produzidas pelas diferentes culturas brasileiras. Assim como João, os dois autores modernistas não enfeitam. Eles detestam a gordura literária; leia-se: eles deletam o excesso, a grandiloqüência.
 
 
sem cânone nem leitor
 
 
 
Influenciado pelo cinema de Glauber Rocha e pela literatura moderna, João Antonio considerava Lima Barreto o “maior romancista” da chamada República Velha, sendo Afonso Henriques de Lima Barreto o primeiro nome que aparece na dedicatória de Malagueta, Perus e Bacanaço. Por isso, ressalto a leitura de Antônio Arnoni Prado, ao reconhecer a filiação tonal da narrativa de João Antônio à escrita de Lima Barreto; isso se pensarmos em questões como ética, forma social e estética. Questões sugeridas nos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), sucesso de crítica que resultou em dois prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos).


Nas relações traçadas entre as ações dos personagens de João Antonio e suas falas, o texto escrito e o contexto social dialogam de forma determinante para a produção das linguagens que o autor constrói. Essa construção leva em conta a oralidade da tribo na qual ele age, e a visibilidade cortante que perpassa a retina do seu cotidiano concreto e carnal feito de sinucas, garrafas, tampas caídas, cafua, barrigas famintas, lutas, animais, jogos da rua... 
 
Apenas um seleto grupo de leitores conhece a obra de João Antonio. O autor de Malhação do Judas Carioca é lido por poucos e importantes nomes da crítica literária. Sua obra é ainda pouco estudada no universo acadêmico onde merece, sem dúvida, maior divulgação. É urgente a leitura deste autor não inscrito, premiado. Principalmente para os alunos dos cursos de Letras. Talvez não seja uma leitura pela qual o leitor se apaixona de cara, como acontece com Fernando Pessoa, por exemplo. João dá trabalho. Muito trabalho. Como o amor e a democracia.
 
 

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu querido Nonato, mais uma vez, parabéns pelo seu belíssimo texto. Desde que li Malagueta, Perus e Bacanaço, fiquei fã do João. Receba o abraço-forte do seu Carlos Magno!

Nonato Gurgel disse...

Carlinhos querido, vc é um exímio leitor! É muito bom saber que faz parte do seleto grupo que curte João Antonio.

Abraço