e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

domingo, 26 de outubro de 2008

Há um fio narrativo na voz em off, ouça



-- A revista pequena morte completou dois anos e celebrou a data neste dia 15/10 lançando uma antologia poética da qual participo apresentando o poeta Leonardo Gandolfi, autor de No entanto d’água (7 Letras, 2006). A seguir, um trecho do meu texto e um dos mais belos poemas que comporá Os espiões aflitos, o novo livro do poeta --


(...) Nestas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto polifônico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles” (Os espiões).

(...) A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Se a sua poesia inicial sugere “o sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética – isso dá um alívio! Por isso a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Poesia feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo/ do caminho.” (“Mande nem que seja um telegrama”).



Mande nem que seja um telegrama
(“Half away”, W.H. Auden)

O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.

É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.

O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.

Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.

Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.

Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.

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