e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Gullar na ABL

...

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Esses versos do poeta Ferreira Gullar fazem parte do poema “Inseto”. Esse poema está no livro “Em alguma parte alguma” de 2009. Como sabemos, este livro faz parte de uma extensa bibliografia que começou a ser construída na década de 50, sendo composta de diferentes formas como a poesia, música, literatura infanto-juvenil, o teatro, crônica, ensaio, tradução, ficção...

Dentre os livros de poesia de Gullar, pelo menos três títulos podem ser lidos como alguns dos textos mais representativos da poesia moderna produzida no Brasil do século XX: “A luta corporal” (1954), “Dentro da noite veloz” (1975) e “Poema Sujo” (1976). Alguns temas e formas desses volumes estão presentes no livro “Em alguma parte alguma”. Nele lemos novamente as frutas podres na quitanda, ou amadurecendo escuras sobre a mesa; vemos os velhos personagens do Maranhão, lemos nomes de ruas do Rio, relemos bichos (haja gato, aranha, rato...) e, dentre outros, relemos um infindo exercício metalingüístico através do qual a trindade corpo-poema-cidade ganha vida e dialoga sem subordinação lingüística ou estética.

Esse diálogo entre o corpo, o poema e a cidade vivifica o ser e o estar no espaço moderno cotidiano. A vida vira um problema de linguagens, uma demanda de espantos. Pequenas epifanias em meio às sombras e cenários em ruínas de cada dia. O escuro ganha necessidade de forma, como na abertura do poema “Bananas podres 4”:  “É a escuridão que engendra o mel/ ou o futuro clarão no paladar”
 
Sol cotidiano

É da esfera luzidia do sol mais cotidiano que Gullar desentranha grande parte da sua escrita. O poeta sente na boca “o alarido do sol”. O cotidiano é sugado pela língua, tragado pelo olho. Paladar e visibilidade engendram esse cotidiano do poeta moderno romanticamente atravessado por relâmpagos e clarões que dão cria. Muitos relâmpagos. Epifanias. Não as epifanias à lá Clarice Lispector e Caio F, onde a luz atravessa, geralmente de forma atordoada e sã, o corpo de quem vê e frui.
 
Em Gullar, a luminosidade faz a sua travessia nas próprias coisas. Luz que atravess as veredas de um cotidiano chão, de onde brota uma poesia feita de pequenos esplendores, assim:
...

mas o perfume daquelas frutas
que feito um relâmpago
desceu na minha carne
... volta a esplender

Aos 84 anos, o ex-poeta de vanguarda esplende, enfim, na ABL. Ele merece as comemorações. Merece prêmios e leituras. Na leitura madura (“A maturidade é tudo”) de Alfredo Bosi que abre o livro “Em alguma parte alguma”, o crítico indaga se materialismo e metafísica “podem conviver em amorosa tensão”. Concluída a leitura, o leitor sabe que os dois temas podem conviver sim. O leitor saber que podem casar luz e osso.

Nesta poética onde Bosi ouve Drummond, meu ouvido também escuta timbres de Minas, mas ouve também Cabral (embora uma tonalidade concretista ecoe, de quando em vez, dos muitos versos entrecortados, de algumas palavras fragmentadas ou de algumas estrofes alinhadas como nos tempos que o mundo era concreto).

Gullar osso, luz: dessa fonte ecoam, desde há muito, “Barulhos”, “Muitas Vozes”...
 
 
 

3 comentários:

Anônimo disse...

Considerei mais do que merecido a eleição de Gullar à estatura de imortal da ABL. Mestre, criei um blog para o Nepe 4. Meu website é o seguinte: casslos.simplesite.com.br . Gostaria que desse uma olhada para opinião pois faltam uns acabamentos. Abraços e tenha uma ótima tarde de domingo. (Carlos -- UFRRJ)

Anônimo disse...

"O leitor saber que podem casar luz e osso"

Nonato Gurgel disse...

Carlos e Anõnimo, o leitor sabe.