e todo caminho deu no mar

e todo caminho deu no mar
"lâmpada para os meus pés é a tua palavra"

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Caio F, cidades e afetos

01 – Sampa, 24 de junho de 1981

... ô Jacqueline, como São Paulo pode ser bonito ás vezes, com uns crepúsculos cor de pêssego querendo amanhecer, demoradíssimos, tão lentos quanto um acorde de Erik Satie. (p. 32/35)


02 – Rio de Janeiro, 24 de maio de 1983

...a cidade é mágica, sensual, afetiva, tesuda. ...O livro chama-se Triângulo das Águas (a água dos rios, dos mares, da chuva). Passam-se à noite. Terminam ao amanhecer. É assim que me sinto: amanhecendo. (p. 52)


03 – Rio, 21.09.83 (A Maria Adelaide Amaral)

... Aqui em cima do morro fico em retiro quase absoluto. Quando vou à cidade, volto irritado. Silêncio, ando obcecado por silêncio. Um silêncio que te permita ouvir o barulho do vento. E o bater do coração. E se possível isso que chamamos de Deus, existindo devagarinho em cada coisa. Existe sim.


04 – Porto, 1º de novembro de 1983

...Uma culpas atravessam. Tivesse sido mais paciente, quem sabe? Horrível confirmação: a décima terceira voz, que eu não compreendia direito – é que foi escrita praticamente toda para Ana – agora faz todo sentido do mundo. Fica claríssima.

(Nesse olhar para a literatura como roteiro existencial, Caio refere-se ao suicídio da poeta Ana C. e à sua novela “Dodecaedro” do Triângulo das Águas (1983)).


05 – Sampa, 09 de julho de 1984

... me puteio por ter me enganado OUTRA VEZ. Mas gosto de perceber que as dores são cada vez mais rapidamente superadas. Acabo sempre no velho Oswaldo: “o amor, ah o amor, o quero porque quero da vida”. E quero, como quero. (p. 84)


06 – Sampa, 1º de agosto de 1984

Um I-Ching me aconselha a “limitação”: um lago não deve querer transbordar seus limites. ... E atravesso os dias, um pouco opaco, com breves iluminações – como há pouco, no portão, olhando o céu.


07 – São Paulo, 24 de agosto de 1984
(não é aniversário do suicídio de Getúlio?)

Fui ver Carmem, de Saura, e meu sangue espanhol ferveu. Quanta paixão. Dá vontade de sair dançando flamenco. E dá uma outra coisa: vontade de viver a humanidade do corpo, com seus vendavais de ciúmes e impulsos homicidas e traições e sedes trágicas.


08 – Sampa, 29 de outubro de 1984 (A Maria Adelaide Amaral)

... De braços abertos é a tua melhor peça. ...Há um grande gesto de bondade sua, de compreensão se derramando sobre todas as personagens. Aí me lembra John Fante, do Pergunte ao pó, que foi o único livro que me fez chorar nos últimos anos. Como a tua peça também me fez. Chorar de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas freqüentemente tão inábeis, mas tão sinceras também, de “acertar”, de fazer as coisas “do melhor jeito”. ... E é por isso que quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. (p. 101/102)


09 – ...odeio São Paulo porque me percebo, às vezes, sendo nas minhas atitudes a própria cidade. (São Paulo, 10.09.91)


Abreu, Caio F. Cartas. Org. Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

2 comentários:

Dani Ricardo disse...

Adorei sei blog, ainda mais falando d Caio F., por quem sou apaixonada.
Postei seu texto "Caio 68" no meu blog, espero q não se importe, qqr coisa me avisa.
Se quiser dar uma passadinha lá: http://www.oazuldasasas.blogspot.com/
Estou te seguindo!
Abraço!

Nonato Gurgel disse...

Seja bem vinda, Dani, e viva Caio. bj